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sexta-feira, 17 de abril de 2009

UM DIA COMO OS OUTROS

Despertei bem disposto. Repousado, sem ramelas nos olhos, sem aquela secura na garganta que, às vezes, me incomoda madrugada dentro. Contudo, a boa disposição durou apenas aquele instante fugidio e efémero em que julgamos que o sonho que sonhávamos é a realidade. Sonhara que a nossa casa não era esta, a verdadeira, mas uma outra, entre o mar e a terra, de cujo alpendre de madeira pintada de branco eu via o oceano e escutava o marulhar das ondas esfregando-se carinhosamente nas areias que se enxaguavam ao sol da manhã, e, nas traseiras, do lado da ampla cozinha, estendia-se um vale verdejante, salpicado de papoilas e margaridas. Quando a minha mulher se ergueu a resmungar e a queixar-se daqueles períodos mensais que elas herdam e dos quais estou a salvo, embora as consequências caiam em cima de mim normalmente com estrondo, quando insultou o chinelo que não estava à mão, ou seja, ao pé, quando as crianças irromperam pelo quarto dentro à bulha disputando o telemóvel de que ambas se serviam em dias alternados, quando o cão emitiu com um latido furioso a urgência de defecar na rua, quando o dever doloroso de lutar contra o tempo implacável me obrigou a antever alucinadamente uma turma de pequenos tiranos a aguardarem-me com sono e desconforto daí a menos de uma hora, saí da cama aos tropeções. Vesti o que tinha à mão, degluti a chávena de café com o estômago a recusar tudo que fosse sólido, ajudei a dispor as mochilas das crianças com as mesmas coisas de todos os dias mas que, apesar disso, nunca preparavam com antecedência, deitei água na fervura do mau humor da mulher, levei o cão à rua, esperei com a impaciência do condenado que ele defecasse onde e quando lhe aprouvesse, apanhei o presente, pisei o dejecto fresco do horroroso mastim que a senhora sua dona havia largado enquanto ela bocejava tranquilamente, empurrei o meu medíocre cachorro pelas escadas acima como quem empurra o desterro, confirmei se a torneira do gás ficava fechada, apaguei as luzes acesas, verifiquei que as crianças já estavam prontas com aquele rigor e destreza que só a mulher consegue ter mesmo nos períodos difíceis, preparei a minha mala com as manuais das aulas deste dia, acto que nunca pratico na noite anterior, e todos descemos com aquele aprumo e silêncio que vemos numa manada de bisontes em fuga. O citroen não pegou à primeira. Respirei fundo, a mulher disse qualquer coisa que não ouvi mas que era desagradável, as crianças arranharam-se lá atrás uma à outra, pegou à terceira, suspirei, fiz um esforço para repor nas retinas a casa com o mar em frente e um pomar de laranjeiras, e parti para o meu destino. Larguei as crianças na creche e na escola, a mulher no emprego, fiquei entupido na avenida com o trânsito, desemboquei na sala de aula, aquietei meia dúzia de hiperactivos, redigi e ditei o sumário, interroguei a turma sobre o teste a que se submeterão oito dias depois, recebi respostas sem clareza e sem conteúdo, tentei que um monossílabo se convertesse numa simples frase, expliquei pela nonagésima vez o significado e a função das falácias, e, enquanto respondiam por escrito a uma ficha de autoavaliação, soltei-me, evadi-me daquele ruído de fundo, bati as asas para longe da realidade dura e crua, mergulhei nas águas cálidas daquele mar que escutei no sonho, auscultei a saúde das laranjas no laranjal, descalcei-me e corri com a liberdade dos meus sete anos de idade sobre o lençol húmido das papoilas e margaridas.

1 comentário:

helena disse...

Lindo! pela exasperante crueza e exactidão como enumeras a alucinação inescapável (?) do dia-a-dia onde nos deparamos, incrédulos, já caçados e dominados, como todos os outros. EU... EU pensei que escaparia...

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