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sexta-feira, 1 de maio de 2009

O ENCONTRO

Era um dia chuvoso e frio de Abril, sexta-feira. Gastara duas horas no interior do ‘Monumental’, vi um filme, não era mau, engolira um café lenta e pausadamente, olhando sem ver pessoas andando para trás e para diante, vinha-me à memória não a história do filme mas o livro que acabara de ler no serão de domingo passado, isolado no meu covil confortável, Quando Nietzsche chorou, de Irvin Yalom, um autor para mim desconhecido, um nome claramente judaico, Freud também o foi, e talvez Breuer, narrando com extrema perícia as improváveis entrevistas do filósofo com o médico ilustre, Breuer. Não me apercebi do olhar fixo em mim. Concentrado na minha solidão, na solidão de Nietzsche, na paixão de Breuer pela sua paciente Ana O., não via que estava sendo visto. De súbito, como às vezes sucede por uma misteriosa interpelação, senti que devia olhar para trás. E vi-o. Era eu! Não, pois que é impossível que fosse eu, era eu sem ser eu. Não vestia como eu, tinha menos quarenta anos, pelo menos, que eu. Mas eu reconhecia-me nele, abriu-se na memória uma fotografia de mim próprio com essa idade, estudante universitário, cabelo negro, olhos escuros e densos de melancolia, a barba negra que mal deixava despontar. Não afastou os olhos quando eu o encarei, apenas sorriu quase imperceptivelmente ao notar com certeza a minha profunda perturbação. Depois ergueu-se com aquele jeito de se movimentar que eu tinha naquela idade. Estremeci, dirigia-se para mim. «Posso?», e sentou-se. Eu, naquela idade, era mais tímido (ou orgulhoso, não fosse receber uma recusa). Comecei eu (engasguei-me):
-Estou a sonhar? Terei um irmão sem o saber? Um filho varão?
-Não serás tu o meu sonho?
-Ou alguém sonha-nos…
-Talvez. Eu sinto-me bem real, e tu? Notas em ti sinais de que sonhas? Tu, que ensinas Psicologia…
-Como sabes??
-Se eu apenas for um sonho que estás sonhando, sei tudo sobre ti…
-Bem se vê que és novato…se sonhamos é precisamente porque algo não sabemos de nós mesmos. Alguma coisa nos impede. Mas ponhamo-nos à prova a ver qual de nós sonha dormindo…
-Ou sonha acordado. Bem vês, não eras tão noviço com a minha idade quanto dizes. Bem, põe-me à prova!
- Quem faleceu primeiro: o meu pai ou a minha mãe? Quantos irmãos tive, estão ainda vivos todos eles? Qual foi o nome da minha primeira namorada, um amor que jamais esqueci?
-Pára por um momento, é de rajada! Eu respondo.
(E acertou em todas as perguntas. A primeira perturbação que me deixara extremamente nervoso, dava agora lugar ao espanto e ao fascínio irreprimível da curiosidade. Os acasos, naquilo que têm de misterioso, sempre me conduziram tanto para largos caminhos como para abismos. E lancei-lhe mais umas perguntas.)
- Que idade tens?
-22 anos. Fazemos anos em Agosto.
-Estudas?
-Claro. Na Universidade. O mesmo que tu estudaste. Um grande mestre influenciou-me tal como te aconteceu.
-Que ensinava ele? Professor no Liceu?
-Sim, do 6º ano no teu caso, o que equivale hoje, mais ou menos, ao 11º ano. Professor de Filosofia. Falava-nos à mente e ao coração, bem humorado mas não divertido, escrevia bem, dedicava-se à fotografia nos tempos livres, fez-me gostar de música clássica, tinha uma especial predilecção por Freud e Marx, mas reservava a exploração desses temas e de outros para os nossos encontros no café…
-Na esplanada…observando e comentando as pessoas que passavam…
-Exacto. E namorei uma colega da turma, tal como tu.
-E deixaste-a, abandonaste-a miseravelmente…
-Tal como tu. Uma imensa paixão que arrefeceu subitamente.
-És, ou eras então, muito novito. Perdoa-te a ti mesmo.
- E tu? Perdoaste-te?
(Silêncio.)
- Tenho 22 anos. O que me espera?
- Alegrias e sofrimentos, na mesma proporção, mas por esta ordem: primeiro uma intensa alegria, depois uma dolorosa agonia. Porém, sobreviverás.
- Aprenderei o sentido da vida?
-Questão mal formulada: o sentido da tua vida. Provavelmente não aprenderás. Retirarás somente conclusões, lições não.
- A vida, a minha ou doutrem, não é um projecto?
- Sê-lo-á sim se quiseres e preferires. Mais do que um. E sempre corrigível.
-Sei tudo sobre ti, o que fizeste, o que não fizeste, o que sonhaste, o que perdeste. Vou vivê-la. Repetirei a tua vida.
-Se és eu, não te resta outra alternativa. Torna-te no que és, escreveu alguém muito sábio que viveu a solidão como forma de vida. Não a solidão do eremita, mas daquele que, convivendo, agindo, amando, nunca desesperou.
- «Percebo que a chave para viver bem é primeiro desejar aquilo que é necessário e, depois, amar aquilo que é desejado.»
(Encarei-o com surpresa redobrada: acabara de citar uma frase do livro Quando Nietzsche chorou…)
Saímos juntos. Perguntei-lhe onde morava, respondeu-me ‘numa residência de estudantes’.
- Ver-nos-emos algum dia? Se vais repetir a minha vida…
(Fixou-me um olhar com um subtil brilho matreiro)
- Se alguém estiver, afinal de contas, a sonhar-nos, a vida de ambos é apenas um sonho…
(E partiu, apressado, para o Metro. Durante toda a viagem de regresso a minha casa, esfreguei os olhos várias vezes. Não notava em mim sinal algum de que estava, ou estivera, dormindo.)

2 comentários:

helena disse...

Os espelhos. Por vezes labirínticos, são outras, portais. E no jogo 'especulativo': o self (lacaniano?)retro/ projectado no tempo, revelando/dissumulando aquele que olha.... do outro lado. A sombra, o alter-ego e o ajuste de contas com a vida, a miragem da duplicação da existência... tudo isso condensaste aqui.
Lembrei-me ainda do belíssimo livro "O Retrato de Dorian Gray", mas numa lógica processual inversa. Gostei muito!

Bjus

helena disse...

Afinal quem sonhou quem? Quem vê quem? Quem é o espelho de quem? Bom, a esta respondeste... tu és o original - o outro o simulacro, o discípulo.
Ideal de Paideia platónico que se entranha em todos que fizeram do ensino a sua razão de existência - não só a 'minha' liberdade, mas fundamentalmente a das gerações vindouras. Não uma lição qualquer... mas uma lição de existência.

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