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segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Encarreguei-me eu mesmo de vistoriar e dar um destino aos bens que ele deixara. O apartamento sendo embora pequeno ( e para que necessitava de um maior um homem só sem família?) acolhia quem lá fosse com a dose certa de bom gosto e comodidade. Ismael habitara-o durante vinte anos, episodicamente entrecortados de viagens que empreendera sempre sozinho conforme me relatara. Foi precisamente na Sicília, na semana transacta, que eu o encontrei pela última vez, por mero acaso, quando saímos, eu e os meus companheiros, a dar um passeio pelas avenidas de Messina, numa esplanada, sozinho, já no seu terceiro uísque. Não pude prolongar a conversa, retirei-me quando os demais haviam terminado o giro nocturno, demos um abraço afectuoso e prometemos reciprocamente um lauto jantar um dia próximo em Lisboa, talvez na Festa do Avante! Conhecêramo-nos uns vinte anos antes, precisamente numa edição da Festa, porém enquanto nessa altura as nossas conversas haviam decorrido sobretudo sob o signo da política, com um intervalo dedicado aos livros que lêramos na juventude e que tanto nos marcaram, à música que escutávamos agora com nostalgia, aos livros que escrevêramos e que nunca publicáramos, em Messina, pelo contrário, os sessenta minutos de conversa foram quase todos ocupados por mim, relatando com minúcia as viagens que já fizera e inventariando aquelas que ainda tencionava fazer. Sobre isto ele pouco disse, do passado alguma coisa, do futuro, nada.
Soube da sua morte primeiro que ninguém (se é que alguém daria conta do seu cadáver num apartamento entre dezenas de outros num prédio urbano de cinco andares), soube do dia e da hora da sua morte. O envelope que me entregou na Sicília era para ser aberto somente nesse dia, ignorando eu porquê. Regressei no sábado já noite cerrada, após as duas viagens de avião: Palermo-Roma, Roma-Lisboa. Fizéramos ambos as mesmas viagens mas o contacto fora reduzido, primeiro porque andei atarefado com o meu grupo excursionista e, segundo, porque ele se distanciara propositadamente. O envelope continha uma carta cujo relato me pôs num estado de estupefacção completa e me fez acorrer imediatamente à morada nele indicada, ontem pela manhã, num táxi, sem direito ao repouso merecido pelos atrasos e trâmites das viagens. A carta era para ser aberta ontem e foi o que fiz. O seu conteúdo era simplesmente espantoso:
«Fui três pessoas ao mesmo tempo desde a adolescência: fui professor, militante político e amante. Tudo o mais foram fugas e contra-fugas, como na música. Entreguei-me com generosidade e lealdade às três dimensões: ao ensinar, ao mesmo Partido de sempre e à mesma mulher. No ensino e no Partido geri o melhor que pude as hipocrisias, traições, ingratidões, mas conservei-me igual a mim próprio, intolerante com as baixezas e sacanices, sempre próximo do que de melhor pulsa nos jovens e nos adultos, senão em todos, pelo menos em alguns. Com as mulheres somente amei uma, das outras apenas gostei: nas paixões o real amor é raro, ao contrário do que queremos crer então. Conheci o amor da minha vida, o único, na escola primária, íamos sempre de mão dada desde as respectivas casas de ambos –éramos vizinhos – caminhando a pé, de lancheira na mão (trocávamos os almoços, porque o do outro sabia sempre melhor), e separávamo-nos em salas de aula distintas. Ela fez o exame da quarta classe e o de candidatura ao Liceu. Eu também. Frequentámos o mesmo Liceu, nesse tempo de desorientação e inquietude em que tememos que nos faltem amigos e em que namoriscamos com mais do que um; ela fez isso e eu também. Todavia, na hora certa, no sítio certo, lá estávamos sempre os dois. Foi com ela que troquei o meu primeiro beijo, foi comigo que ela perdeu a virgindade, nem cedo nem tarde demais. Afastámo-nos na universidade: seguiu um curso diferente, talvez ao gosto dos pais. Foi a primeira vez que nos perdemos um do outro,, mais viriam mais. No termo do curso já ela era noiva de outro, talvez também mais ao gosto dos pais. Antes de casar hesitou e procurou-me. Era Agosto: pusemos uma mochila às costas e partimos de comboio e às boleias até Paris, a cidade que ansiávamos conhecer. A felicidade foi tamanha que, houvesse acaso paraíso, ele seria sempre assim. Mas nada dura aqui na terra. A dureza da vida chamava por nós: empregou-se numa clínica como psicóloga e eu ingressei no ensino público. Casou um ano depois, eu casei duas vezes e em todos elas falhei. Sempre que me divorciava procurava-a e sempre ela me aceitou, porque na verdade não era amor que sentia pelo marido, ou, se preferires, o amor não era igual. Porém, não sendo igual, amava o marido (não é isto um paradoxo?) e, sobretudo, tinha duas filhas e um elevado bem-estar que nunca usufruiria comigo. Como o marido veio a saber da nossa relação (aliás sempre episódica ou entrecortada) e o casamento soçobrava, decidi afastar-me: escolhi uma escola longínqua e parti resolvido a não voltar. A minha vida ruiu definitivamente. Nunca mais fui o mesmo. Enfronhava-me nas leituras, na escrita, na política, nas viagens, cada vez mais solitário e ensimesmado. Dez anos se passaram num fôlego, num ápice, e certo dia caiu-me à frente dos olhos num jornal uma notícia devastadora: «Faleceu a Dra…..de doença prolongada». Não fui ao funeral. Embebedei-me literalmente dias a fio, ou mesmo semanas, até que um medico amigo me internou e sujeitei-me a uma cura pelo sono. Meti sucessivas baixas médicas e nunca mais me entreguei ao ensino como dantes, nem à política. Escrevi um diário, deves encontrá-lo num armário. Esta viagem à Sicília foi a última. Quando chegar a casa suicido-me. Trata, por favor, do destino das tralhas que encontrares em minha casa, fica com elas, faz o que entenderes, não tenho ninguém a quem deixar os livros e as músicas que ajudaram a suportar a mais terrível das solidões.
Adeus amigo. Se acaso houver paraíso lá nos encontraremos todos. O suicídio não é uma cobardia, é uma aposta: se houver paraíso, pois será óptimo, se não houver, que é o mais provável, com a morte acaba-se a memória.»
Fiquei a tremer como uma criança com medo do escuro. Encontrei-o já cadáver deitado como se acabasse de adormecer. Depois de resolvidos os trâmites necessários, a ambulância, a polícia, etc., antes mesmo de fazer o inventário dos bens, procurei com uma ânsia desconhecida o diário. Encontrei-o num armário na verdade, porém não era um caderno, mas dezenas deles. E folheando um a um somente encontrei uma palavra, um nome: «Sara». Nada mais escreveu em milhares de linhas.

2 comentários:

Meg disse...

Experiência prenhe de emoções e sentimentos avassaladores... estou sem fôlego.
Devíamos parar mais vezes para pensar que a vida é isto.
E o Amor também...
Para reler e meditar.
Um abraço

Sara Gonçalves disse...

“Uma história de amor trágica, impossível.”

Li este texto com todo o cuidado e saboreei cada uma das palavras. A sensibilidade que envolve as frases minuciosamente pensadas (mas não por isso menos sinceras) torna a história doce, e esse seu doce vicia-nos, faz-nos querer ler mais e mais. Durante a minha leitura, surgiram-me vários pensamentos acerca desse “Ismael” que a vida se encarregou de tornar prisioneiro da solidão: o mais importante de todos, verdadeiramente importante para ser dito, é que esse homem nunca se conheceu inteiramente. Caso contrário, não teria dito que fora apenas três coisas; era também (com toda a certeza) um grande escritor que deveria ter publicado os seus livros enquanto era tempo, pois daria uma obra-prima à Humanidade, e, acima de tudo, era um ser humano com qualidades e defeitos, com sentimentos, alegres ou tristes. Só nos conhecemos verdadeiramente quando enfrentamos o espelho e nos questionamos quem somos; apesar de parecer paradoxal, é esse o clímax da maturidade.
Há quem diga que os homens não são tão sensíveis a escrever como as mulheres; quem o diz, com toda a certeza, nunca leu nada escrito por si. Os meus sinceros parabéns.

Sara Gonçalves

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