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sábado, 26 de setembro de 2009

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.)

Diário de Marta 2




Fui jantar a casa dos meus pais, acabei por aceitar o convite. Preferia estar sozinha, mas era insuportável atender a mãe ao telemóvel constantemente e as desculpas já soavam a mentiras. Odiava mentir. A mãe também, mas a frontalidade dela era diferente da minha, era incómoda, tutelar, invasora, inoportuna, chegava a ser opressiva, sem respeito, sem compreender a necessidade de isolamento da filha.


Comemos peixe, obrigatório naquela casa. Mastigava com a boca seca pequenas tiras do peixe-espada, lembrando-me do apetite que sempre tivera noutros tempos. Observava o cabelo pintado da mãe, que negava a idade, a sua boca rodeada de rugas abrindo-se e cerrando-se conforme falava e comia. Observava e temia que em qualquer momento a mãe voltasse a falar da Gisela. Percebia nas reticências e insinuações a tentação, lançava-lhe um olhar fixo para a conter. A mãe no falar era desbocada, sempre fora, agora com a velhice acentuava o gosto e o vício. Quando trabalhava fora de casa, era conhecida por esse pendor. Verdade se diga que não era de fofoquices e, por isso, tinha sempre amigas no trabalho, nas pequenas escolas onde leccionou dezenas de anos, os pais das crianças gostavam dela. Era a minha mãe, com os seus defeitos e as suas qualidades melhores que os defeitos. Porém, actualmente, não tenho paciência para ela, para o pai um pouco mais, é reservado, silencioso, discreto. Um casal com quarenta anos de vida comum, completa-se, de outro modo não sobreviveria.


Não quero pensar na minha filha, tão pequena, tão mimosa, morta e enterrada, contudo ela está aqui, ao meu lado, provocando a avô com as suas traquinices, fingindo não querer comer para que ela lhe prometa o que lhe apetecer pedir por brincadeira, um jogo em que a idosa cai sempre na armadilha tecida por uma petiz.


Quando estou para terminar a sobremesa, que como com algum gosto, talvez precise de açúcares, tocam os primeiros acordes da Ode Triunfal no telemóvel. Atendo. É o Rogério. Médico, meu colega no serviço, somos amigos mas ele parece desejar mais do que isso. Não possuo nada para lhe dar, nem desejo, nem ternura. Mesmo os esforços que ele faz para me distrair maçam-me. Desistiu de me convidar para discotecas e outros locais ruidosos, ficou-se pelo convite para cinema, ainda assim com uma condição prévia: que não tenha mortes. Regra difícil de respeitar nos filmes de agora. Tarantino ainda suporto, as mortes são teatrais, coreografadas e as histórias são soberbas e irónicas. O filme errado que eu não devia ter visto, foi «Expiação», baseado no livro homónimo de Ian McEwan, o mesmo escritor que me arrasou com «A criança no tempo». Evito, no entanto nem sempre consigo tão premente é o meu gosto pela leitura, até para me distrair, ocupar-me nas horas infindáveis que passo sozinha, isolada, com o gato e a caturra na gaiola.


Digo ao Rogério que me dói a cabeça, não estou capaz de sair para parte nenhuma, mas ele insiste, a noite está esplêndida, um saltinho a Santa Cruz, ir e voltar, e a mãe que escuta a conversa e acena com a cabeça e murmura «Diz que sim, diz que sim!».


Quinze minutos depois toca a campainha, entra, cumprimenta os meus pais com desenvoltura, traz a abundante cabeleira que já começa a clarear bem penteada, uma camisa de ganga que lhe fica bem, um sorriso radiante. No hospital não é galanteador para as enfermeiras, pelo menos à minha frente, apesar de algumas serem bem atrevidas; porém, há qualquer coisa nele de sofisticado que o torna um pouco pedante, pouco natural. Ou simplesmente não me sinto disponível.


No automóvel dele, estacionados no redondel ao lado da Havaneza, tenta beijar-me ao fim de meia hora de conversa. Recuso. Definitivamente estragou tudo. Definitivamente talvez nem tanto, mas fico de sobreaviso e estabeleço os limites. Nada disso me interessa. Com ele não, e não vejo que haja outro.


Estamos sentados num banco altaneiro, atas a casa onde viveu João de Barros, o escritor que me deu a conhecer Homero quando era miúda, as escadarias na falécia, a praia, o oceano. Um dos pontos de Santa Cruz que mais frequento nas horas de evasão, quando a infelicidade é insuportável. Estou absorta, ele fala mas não entendo o que ele diz, apenas fixo o mar e escuto-o a deslizar sobre as areias. Subitamente um minúsculo ser aparece iluminado pelo luar, saltitando na espuma, recuando e avançando. Estremeço, a brisa torna-se gelada. Apetece-me descer a escadaria aos gritos «Gisela! Gisela!». O braço dele sobre os meus ombros, desperta-me. Gisela não está ali.


No regresso viemos silenciosos. O acto precipitado e algo vulgar dele despertou-me a lembrança desagradável do meu marido. Do meu ex, digo. Não sei por onde anda, não faço nem quero fazer a mínima ideia. Culpo-o pela morte da Gisela, e isso é um facto que não estou nada predisposta a alterar. Odeio-o e não lhe perdoo. Preferia que ele me fosse indiferente, mas tal seria libertá-lo da responsabilidade na tragédia que vitimou a nossa filha. A minha filha. Nunca foi dele: é estéril, levámos dois anos a concluir que a causa cabia-lhe a ele não a mim, um ano inteiro para Sua Ex. se decidir a aceitar a inseminação artificial. Portanto, Gisela era minha, não dele. E por causa dele, morreu.









3 comentários:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Mas que grande volta levou este blogue!
Gosto mais deste visual, os blogues a negro não (me) são atractivos.

Quanto aos textos, continuas brilhante!
Abraço

Joaquim Moedas Duarte disse...

Esqueci-me de dizer:

Sugiro que ponhas o "arquivo" mais para cima, para não termos de dar ao "roller" como quem tira água à nora...
É que apetece de vez em quando ler outras coisas que ficaram para trás.

Por outro lado parece-me que este tipo de letra, a branco e de tipo maior, é de leitura muito mais fácil, mas fica melhor se não for "justificado". Percebe-se porquê.
Abraço

Meg disse...

Amigo J.A.

Li. Li tudo. Fui mesmo lá atrás, no blog, e não entendo por que estão estes textos aqui... quando deveriam estar publicados.

Mergulhar na tua escrita traz-me um certo desassossego, angustia-me por vezes o ritmo, quero sair e não consigo... fico presa à força de emoções que me ultrapassam...

Uff...!!!

E estou de acordo com o Méon, o arquivo está lá para os confins do blog... quase inacessível.
E também gosto mais desta cor.

Um abraço

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.