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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.), novela.

DIÁRIO DE CARLOS - 9


Já não sinto a mesma surpresa que me tomou de todo: de facto, os acasos, as coincidências existem, Marta pode habitar realmente na mesma região que a minha, até a mesma cidade, a maior parte do tempo passo-o em Lisboa, ela terá vindo a residir em Torres Vedras recentemente, até mesmo muito recentemente, nos tempos em íamos acompanhando a vida um do outro ela habitava na casa dos pais para os lados de Alcântara e em Lisboa terá residido depois de casar. Com o casamento dela perdi-lhe o rasto. É bem possível que recentemente haja decidido habitar numa região que oferece melhor qualidade de vida do que o inferno da capital, os jovens saem daqui, os mais velhos regressam ou escolhem-na pelo interior sossegado, pelas praias. Enfim, o país é pequeno, até o mundo o é.

Fui visitar novamente o Professor. Na idade que alcanço, nesta viragem da vida ou crise como alguns classificam, fazemos o balanço e a conclusão a que chego é que não produzi nada que valesse a pena. Nunca me identifiquei com coisa alguma, não me comprometi com pessoas e causas. Nunca pertenci a nenhum partido político, nunca a política me seduziu, nem as artes, ao contrário da falecida, toda entregue à galeria, às transacções e às viagens de negócios. Cada vez me distanciava mais dela, apenas quando a sua doença fatal se revelou nos aproximámos, por cumplicidades, hábitos, compaixão. Desconheço quantos amantes teve, resguardava-se habilmente mas não mentia, se eu lho perguntasse ela confessava; eu limitava-me a fingir indiferença, distracção. No fundo, incomodava-me, e estou absolutamente convicto que também a incomodava a ela; provavelmente vingava-se da minha indiferença, vingava-se sobretudo das amantes que eu tinha, sempre mais novas do que ela. Um casamento de disfarces: ambos nos disfarçávamos com as respectivas ocupações. Na verdade, ela é que andava sempre atarefada, produzia, as coisas aconteciam pela mão dela; eu arrastava a minha moleza, desenhava no gabinete sem inspiração, por rotina, ainda que não fosse sempre medíocre o que desenhava, contudo sem paixão. Nesta fase da vida agarrei-me ao projecto da ponte como quem envereda por uma religião salvadora subitamente iluminado. Eu sei que é uma evasão, mas a minha vida é toda ela feita de fugas e contra-fugas. Filho de pais ricos, amamentado por uma ama e servido por um cortejo de criadas, nunca me faltou nada que eu desejasse, bastava choramingar com astúcia para receber automaticamente o brinquedo cobiçado (e logo desprezado). Talvez com as mulheres tenha sucedido o mesmo. Seduzia, era seduzido, fruía, largava.

Encontrei o Professor no seu quintal. O jardim de Epicuro, como ele designa com ironia aquele pedaço, quase breve, de terra (a minha casa paterna possui um vasto terreno), toda coberta de uma espantosa variedade de flores, produtos hortícolas, árvores de fruto, não sei como cabe tudo em tão curto espaço. Calça uns botas de borracha, tem um chapéu de palha na cabeça. Sorri com simpatia quando chego. Sentados a saborear um excelente vinho branco («Compro o vinho nas adegas ou mesmo no produtor», diz-me), contou-me, desta vez, episódios da sua vida (Estranhei estas confidências que nele não são habituais): « Com o avançar da idade, no inverno –na minha idade um inverno soma-se ao outro- vem-me uma dorzita aqui na perna direita. Sofri um grave acidente de viação há muitos anos, tinha eu vinte ou vinte e um anos, éramos quatro dentro de um pequenito carro, íamos para Lisboa, dois rapazes e duas raparigas, transportávamos uma mala cheia de jornais clandestinos, o Avante!, apenas o condutor sabia o que levava, perdeu o controlo do carro e despistámo-nos, o automóvel incendiou-se e na fogueira pavorosa morreu uma das raparigas, escutei os seus gritos lancinantes, ainda os tenho nos ouvidos, como tenho na cabeça os gritos de soldados que morreram na guerra colonial que também fiz…Enfim, os pides foram dos primeiros a chegar, deparou-se-lhes um mar de jornais clandestinos na estrada, soube que estava sob prisão quando me encontrava no serviço de urgência do hospital, entre a vida e a morte. Pela facto estranho dos pides estarem ali, espalhou-se a notícia de que foram eles que disparam sobre o carro, nunca soube ao certo, não minto nem desminto. O resto pertence à pequena ou grande história dos perseguidos pela pide, das prisões políticas, dos interrogatórios inclementes, das celas solitárias, das torturas. Eu fui apenas um caso, outros sofreram anos e mais anos de prisão, no meu caso houve a tragédia daquela morte horrível que não esqueço nunca mais.»

Fiquei a olhar fixamente para o meu antigo e admirado Professor. Nunca nas aulas confidenciou aos alunos fosse o que fosse. Contava-me agora. Com um chapéu de palha e umas botas de borracha no seu jardim de Epicuro. E senti uma espécie de amor viril por aquela figura modesta, franzina, sobre a qual o tempo implacável socavava os alicerces. Li-lhe nos olhos uma infinita tristeza, embora as palavras soassem com serena resignação.

Quando parti, uma interrogação atravessou-se-me na mente: Será que a sua solidão o conduz ao suicídio?

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