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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Na Hora da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA-9




Fui ao cemitério deixar flores para a Gisela. Não contive o choro. Não vejo como realizar o luto. Não há perda maior do que a perda de um filho, carne da nossa carne. Trouxe-a no ventre, amamentei-a, brincámos juntas, fez-me rir quantas vezes com os seus comentários infantis, a música das suas primeiras palavras, a expectativa das prendas de surpresa no natal. A vida de uma mãe deixa de fazer sentido quando já não é mãe, quando a fatalidade lhe roubou a luz dos seus olhos.

Preciso de viver e não sei como.

Estive com a minha mãe. Foi necessário telefonar-lhe primeiramente não se desse o caso de não estar em casa, ocupada como anda, ou parece, com a sua paixão adúltera, não desejava de modo nenhum aparecer em casa de repente e deparar com o meu pai sombrio e apagado como uma vela gasta. No fim da conversa gostei de estar com ela. Enfrentou a minha pergunta frontal sobre o amante com algum desconforto, mas depressa se recompôs: «Está certo, minha filha, mais tarde ou mais cedo tínhamos de conversar sobre isso, sei tudo sobre ti, julgo eu, e tu não poderias desconhecer o que passa comigo. Não quero mal ao teu pai, fui feliz com ele tempo suficiente para o estimar, é bom homem e foi um bom pai para ti. Provavelmente o caso em que me envolvi passará um dia destes, não será talvez mais do que uma fuga aos silêncios que pesam sobre esta, casa que já foi ruidosa quando tu e a minha netinha nos visitavam, o teu marido, ou ex-marido, também, não deves esquecer quanto ele era alegre e generoso connosco e convosco, mas, enfim, não falemos dele…Cometeu um desleixo trágico, inqualificável, muito embora eu talvez lhe houvesse já perdoado, mas tu não lhe perdoas, e tens as tuas razões, o amor é um sentimento muito delgado, como um fino fio, quebra-se e desaparece por uma palavra que se diga, um acto que se pratica…Sei do que falo, em relação ao teu pai sucedeu isso e não cometeu o mesmo horror que o teu ex-marido, provocar a morte da filha porque estava ao telefone não sei com quem, e logo ele que conduzia sempre irresponsavelmente depressa…Mas não falemos disso, é assunto que não esqueces mas queres esquecer, o teu problema é não conseguires fazer o luto, matutas, matutas, e dás cabo da cabeça e da tua vida, só tens uma vida, bem sabes, já não és uma jovem, o tempo passa depressa, sei bem isso! Tens que refazer a tua vida, eu não tenciono, está descansada! refazer a minha vida com o Bártolo, falemos no nome dele porque pelos vistos já o conheces, não tenciono não, continuarei com o teu pai, a não ser ele que não o queira, é uma traição? Uma deslealdade? Pois será, mas permite, minha filha, que eu resista à velhice que chega, ao tédio, à frustração, tive uma vida cheia, trabalhei bem, fui respeitada, trazia dinheiro para casa, não mereço, acho eu, um resto de vida infeliz com um homem que me ignora, que desperdiça economias no jogo e na bebida, não sei o que lhe sucedeu para se transformar num pobre-diabo, diria que foi a aposentação, mas não me parece, nunca o vi trabalhar com empenho, parece que nasceu um fracassado. Mudemos de assunto…Não sirvo para te dar conselhos, sobretudo agora que não convives facilmente com o meu comportamento extra-conjugal, eu sei, não vale a pena estarmos com evasivas, contudo deixa-me dizer-te o que me parece melhor para ti, para ti que és a minha única filha: já pensaste em ter outro filho? Evidentemente que não substituirá nunca aquele que perdeste, mas será um consolo, uma nova entrega, uma espécie de remissão da tua dor…Com quem, de quem? Não surgiu ninguém na tua vida, não te apaixonaste, não tens um amigo especial? Não tens ou não sabes? Fechaste-te em ti mesma, trabalho-casa, necessitas de sair, conviver, descobrir amizades, olha: nem que seja através destes meios modernos, refiro-me à Net, dizem que se fazem bons casamentos através da Net…Olha lá, tu até nem precisas de recorrer a isso, ainda és uma mulher bonita, com quarenta anos és uma mulher madura, desejável para muitos homens, bastaria que saísses da casca onde te escondes, cuidasses mais de ti, não vais às compras? Não frequentas um ginásio? Tens dinheiro de sobra para isso! Estás divorciada, és uma mulher livre e emancipada…luta por ti, vai em frente! Traz-me um netinho, talvez até seja bom para o teu pai, talvez alegre esta casa tristonha, insuportável. Não queres casar novamente? Pois não cases! Namora o mais que quiseres e puderes, minha filha, vida só há uma e tu já a gastaste pela metade…»

Quando saí de ao pé da minha mãe vinha absorta. Admirada com o discurso dela, desenvolto, afirmativo, que bem lhe anda a fazer o tal Bártolo! E vim a matutar no que ela me disse…um filho, porque não? Vou pensar nisso com a razão. Calcular as estratégias. Mãe solteira. Seleccionar o homem certo para essa função. Exclusiva função de dar-me um filho.

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