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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Na Hora da Nossa Morte (novela, cont.)

Diário de Carlos – 11



Ontem realizou-se a cerimónia do lançamento da primeira pedra para a minha ponte. Iniciaram-se as obras. Hoje, pela manhã, já lá fui e acompanhei os primeiros trabalhos de terraplanagem das arribas onde os pés hão-de assentar. O rio naquela zona estreita bastante, as arribas são elevadas, retirada a terra aparece a rocha. Furar o granito, enfiar nos poços as colunas, despejar cimento. Um único tabuleiro, suficientemente largo para o trânsito automóvel e para bermas seguras para os peões. Justificava-se que levasse apenas um arco, porém levará dois, verdadeiramente não serão arcos perfeitos, mas inclinados cada um para o lado oposto, ficarão com uma vibração harmoniosa, cada um a cair para o extremo oposto, dois contrários que se equilibram, lembro-me ainda bem das aulas de filosofia, de Heráclito, o filósofo obscuro mas divino, como explicava o professor Ramos, os arcos da lira, imaginemos duas liras, ou dois arcos, duas forças oponentes, duas forças que jamais se derrotam uma à outra. A minha ponte há-de ser a imagem da identidade das contradições, digo eu, que não sou filósofo, porém não sou estúpido, vivi o bastante para descobrir que as contradições estão por todo o lado, tanto se aniquilam uma à outra, como se equilibram desde que o peso, ou a massa, ou a energia, sejam equivalentes. É esta tensão que aprecio. É esta tensão que traduzi na minha ponte.

A cerimónia decorreu como é costume: o governador civil, o presidente da Câmara e os vereadores, os deputados municipais, a bênção do pároco, um destacamento de bombeiros e representantes engalanados de associações e colectividades. O ministro das Obras Públicas baldou-se, enviou um sub-secretário. O senhor presidente da Câmara fez um discurso empolado, em que falou mais dele do que de mim, mais das obras que promete do que a ponte que estava ali a começar. Tocou a charanga dos bombeiros e ainda foi o que melhor se ouviu. Não houve porco assado no espeto, a populaça depressa debandou.

Tenho saudades da Carla. No fundo, talvez me apeteça é outra mulher. Porque me lembra a Carla? Provavelmente porque não me apareceu outra. Todavia, a Carla rejuvenesceu-me, aquele corpo jovem e sensual mexia comigo. Aprendia depressa tudo que lhe ensinava. Suspeito que já o sabia, em teoria convenhamos pois que era virgem. Que energia naquele corpo sem as neuroses da mulher madura! Tenho quarenta e um anos, ela vinte e poucos, vinte e dois mais exactamente, noutro mundo poderíamos viver juntos, talvez casássemos, teríamos filhos…Mas não, nenhum de nós estava preparado, para casamentos não estou apto, por enquanto pelo menos, e a rapariga ainda menos: um curso superior para terminar, projectos de realização profissional, rapazes da sua idade para explorar. Que fui eu para ela? Uma iniciação. Que foi ela para mim? Uma aventura inconsequente? Que possuía ela a mais sobre as outras que conheci? Esse longo reportório…Talvez tivesse, nenhuma folha de árvore é idêntica à outra. Só as pontes se podem copiar…Será que projectei na minha ponte os arcos dançantes do corpo da Carla? Bailarina, tensão de opostos…

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