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terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

Diário de Marta – 12



Sempre que visito a Gisela na sua campa, para substituir as flores, para rezar por nós ambas, por ela para que possa brincar eternamente no lugar onde estará, por mim para que Aquele que nos observa tenha misericórdia da minha miserável condição, sempre que a visito culpo-me por aquilo que não fiz, censuro-me pelo horror que outro cometeu, choro convulsivamente e lamento não estar ali em vez dela. Regresso ao trabalho e ocupo-me desesperadamente.


……As revoltas, a revolução ou lá o que chamar a estas convulsões que abalam a sociedade toda…A greve geral paralisou ontem o país. As manifestações sucedem-se nas ruas, Lisboa é pandemónio, até esta cidade onde resido não foge à regra geral. Protestam os funcionários do Estado, os operários, os professores e os estudantes, os enfermeiros e os médicos, os motoristas e os agricultores…O governo já não tem mão em nada. E até eu sinto a mesma vontade de gritar qualquer coisa contra qualquer coisa, a mesma que sentia quando era estudante, quando era adolescente, quando saía daquelas aulas do professor Ramos que me deixavam a cabeça a escaldar.


Para onde vai este país não o sei, por agora está na bancarrota. A urgência do hospital funciona porque não brincamos com o serviço. Há dias em que os feridos pelas escaramuças entram em filas ininterruptas, sem nos darem tréguas. Se não vou para a rua gritar, cuido dos que gritam. O mundo está cheio de dor. A dor do mundo não diminui a minha.


Diário do professor Ramos -1


Há anos que não pegava no meu diário. Houve um tempo, longo de resto, que escrevinhava furiosamente ao serão, relatando, criticando, analisando, o que sentia, o que observava, a cada dia, um exame de consciência, nem sempre consciente, um julgamento não poucos vezes auto-complacente, raras vezes alegre, frequentemente pessimista e lembro-me que esse hábito, ou vício, começou, se não estou enganado, se a memória não me atraiçoa, durante, ou logo depois, a queda, o desmoronamento do chamado mundo socialista. Se existiam dois mundos, ficou só um, a menos que, afinal, os mundos fossem vários. Não me senti órfão, senti-me desiludido, como se um cansaço indefinível, insidioso, chegasse inexoravelmente após muitos anos de enérgico combate. Não desisti, porém a resistência já não era a mesma, nem no vigor, nem na crença.


Retomo estas páginas do meu diário, desperto o que estava adormecido, provavelmente porque tanto a Marta como o Carlos me confessarem que redigiam os seus diários. Foi aproximadamente com a idade deles que também iniciei o meu, para mais tarde o interromper. A certa altura, creio que foi isso, descobri, ou fizeram-me descobrir, como podem ser comprometedores os diários, sem que necessariamente confessem crimes ou vícios inenarráveis, bastam as confissões, as interrogações, os dilemas do coração ou do espírito, os equívocos que provocam em quem os possa vir a ler. Por isso deixei de escrever e tenciono não repetir. Um diário ou é estritamente confessional, pessoalíssimo portanto, e então deve ser destruído, lançado às chamas no dia seguinte, quando o sol ilumina a consciência, afasta das trevas da noite, ou, então, um diário deveria constituir um verdadeiro exame racional do irracional, um tribunal da razão destemperada, um julgamento das ilusões e das quimeras, a cicatrização das feridas, um triunfo do juízo sobre o desespero.


Esforçar-me-ei para que seja uma arma de combate, mais do que um estado de alma.


O estado em que se encontra o meu país é demasiado grave, o seu destino demasiado imprevisível, para que não me exija uma opinião reflectida.

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