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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA – 13


A última conversa com o professor Ramos fez-me despertar muitas recordações de há vinte anos atrás. Neste instante em que escrevo são 11 horas da noite. Esta semana o trabalho tem sido muito no hospital. Ando estafada. Os choros e os gritos dos doentes, o ruído do trânsito caótico nas ruas e das multidões que regularmente as percorrem aos gritos, já não me excitam os nervos. Há uma espécie de letargia no meu corpo que, todavia, não me impede de ser minuciosa no trabalho. Uma parte de mim cerrou a porta e as janelas. Sou uma casa semi- habitada. Sei que é uma estratégia de auto-defesa, por isso deixo-me andar assim. Há vinte anos era agia rapidamente por intuição ou por instinto. Uma palavra estúpida de um colega, um piropo grosseiro (era habitual o «Ó Marta, dá-me a tua rata!»), deixava-me em fúria, voavam livros e às vezes bofetadas. Era um animal feroz. O meu comportamento irreverente, a minha maneira de vestir, o convívio liberal na associação de estudantes, provocavam nos energúmenos a confusão entre o ser liberal e libertina, os estudantes da Direita eram os piores, armavam-se em machos e não me largavam as canelas, umas bestas.

DIÁRIO do professor Ramos-2

Tem sido agradável reencontrar o Carlos e a Marta. Não foram os únicos antigos alunos que me reconhecem e agradecem, de modo nenhum, o que é privilégio, uma gratificação, estes dois, contudo, visitam-me, o que não sucede frequentemente é claro, por vezes alguém me descobre na internet, envia-me um e-mail, ou no facebook, é uma recompensa para mim dos anos duros que também atravessei, encontro-os casualmente aqui ou ali, neste ou naquele emprego, ao balcão de uma loja, numa empresa de informática, ou dizem-me que são professores, advogados, funcionários em Bruxelas…Dá-me um gosto enorme encontrá-los na Festa do Avante! Numa viagem que fiz à Polónia veio cumprimentar-me uma antiga aluna à entrada do campo de concentração de Auschewitz…

O Carlos é um caso à parte. Pertence aquele escasso número dos que me visitam, com quem tomo uma bica e ficamos à conversa e acabamos por consolidar uma amizade agora sem diferenças. Feitas as contas ele deve andar aí pelos quarenta anos de idade, a Marta muito perto disso. A coragem que esta demonstrou ao visitar-me na minha própria casa, depois de um primeiro encontro num centro comercial de Lisboa, deixou-me surpreendido, depois percebi que ela transporta uma insuportável dor, ainda não descortinei a causa, provavelmente não encerrou ainda o luto pelo divórcio – é óbvio que é uma mulher divorciada! -, não sei.

DIÁRIO de Carlos – 15

Já adivinhei que a Marta se encontra com o professor Ramos! Nada perguntarei até ele mesmo mo dizer. Se não mo disse ainda, lá terá as suas razões. Respeito. Quando ele achar que é oportuno um encontro dos três, ele mo dirá.

Ando animado com a construção da minha ponte. Vai-se erguendo como se tratasse do desenho de um Velasquez, de um Goya, fragmento a fragmento, linha após linha, até o objecto a duas dimensões adquirir profundidade e se converter numa coisa viva, que nos contempla.

Sem comentários:

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