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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

Diário do professor Ramos -3


Agora que estou aposentado, nestes anos sem a adrenalina das aulas com miúdos travessos, acabavam por irem-se aquietando com o decorrer dos meses e do conhecimento recíproco, com raras excepções, nem quero recordar e menos registar aqui os casos mais negros que sofri, que um ou outro me fez sofrer, agora que estou retirado penso ainda mais na minha vida passada do que alguma vez pensei, eu, que sempre fui de cogitações, de exames de consciência, de perfeccionismo moral frequentemente inflexível (há muitos, muitos anos, era ainda um professor noviço, recusei receber em casa um senhor que se apresentou como pai de uma aluna – numa breve troca de palavras pelo intercomunicador do prédio – que me trazia um peru (imagine-se: um peru!) pelo natal, e eu recusei, o ano escolar ainda nem a meio estava, não lhe disse mas pensei «Subornos? Nunca!», era assim, quase intolerante, sem às vezes distinguir o bem intencionado do mal intencionado, mas realmente provoquei situações ingratas que poderia ter facilmente evitado, simplesmente gabava-me a mim próprio de ter a consciência limpa, de sempre respeitar os mais velhos e os mais novos, impacientava-me, tornava-me mesmo irascível quando me dirigiam uma insolência, uma ameaça, era raro, mas sucedia, fui aprendendo alguma coisa, mas pouco, que o temperamento não muda, somente com a velhice o corpo já receia os confrontos físicos, tem que ser, o contrário seria uma perfeita estupidez; agora que me retirei longe dessas lides diárias, para esta casa que o meu corpo mal habita, o silêncio que escorre pelos cantos da casa e da memória - as recordações são sempre silenciosas -, as lembranças assaltam-me sem precisarem de estímulo algum, chegam, plantam-se na memória sem cor e sem ruído, tento afastá-las, arrumá-las nas gavetas, no baú, elas hão-de voltar, insidiosas, contumazes, pintadas de negro e sinistras.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

interessante o "artificio" literário de diálogos ficticios.

anseio pela publicação da novela. em livro.

ou será que está publicada?

abraço

Nozes Pires disse...

Obrigado, é um estímulo. Retribuo.

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.