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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela,cont.)

DIÁRIO DE CARLOS -14



O arquitecto é um artista, não é um industrial mas um artesão no mais genuíno sentido da palavra. O seu traço. O seu desenho, a sua maqueta, são objectos de arte. É um artista plástico, ainda que utilize a máquina do computador. O engenheiro, o engenheiro de pontes, por exemplo, é um técnico, um produtor industrial, raramente é um artista. A racionalidade que utiliza é uma razão instrumental. O seu critério é a eficiência, não é a beleza. Se a ponte que calcula é bela o seu pensamento liberta-se dos tampões da razão instrumental, das limitações que o orçamento e os outros colaboradores lhe impõem, transcende a técnica, é um criador de formas que provocam admiração, surpresa, comoção. É raro. Existem modestas pontes de madeira que são obras de arte, o transeunte sente-se obrigado a parar, a contemplar, como a belíssima ponte que dá o título e é o leit-motiv do inesquecível filme de Clint Eastwood. Tenho visto documentários filmando a construção de grandes pontes, na América do Norte, no Japão, em Portugal, embora não sejam feias de modo nenhum, porém o que admiramos, sobretudo, é a engenharia, a eficácia, a rapidez de construção e a grandiosidade que as tecnologias permitem, a modulação por computadores, o trabalho dos operários. São emblemas da técnica, sofisticados avatares das revoluções industriais. Quantas delas constituem objectos de arte? Para mim a arte distingue-se da técnica, ainda que sem esta não haja arte. A técnica é um saber fazer, a arte é um fazer sentir. A primeira é um objecto de uso, a segunda é um determinado uso de objectos. Normalmente as pontes são sólidas, principal ou mesmo única preocupação, raramente se querem esbeltas, elegantes, provocativas. Eu não sou engenheiro de pontes, sou arquitecto, por isso não me contratam para a construção de pontes, mas para a construção de edifícios. O mérito do Vasconcelos, do chefe do nosso gabinete, foi haver conseguido que o governo regional nos convidasse. O governo central não o teria feito, um consórcio de privados talvez, mas dificilmente, o primeiro quer exclusivamente poupar nos custos, o segundo quer exclusivamente extrair o máximo lucro. A criação de Regiões, de governos regionais eleitos e autónomos foi um grande passo, as comunidades participam, discutem, referendam. O Vasconcelos soube jogar nesse tabuleiro, introduzir-se no jogo, convencer as comunidades. Os engenheiros constroem agora a ponte, nós, os arquitectos, eu especialmente, desenhámo-la. Todos os longos anos em que trabalhei construí casas, não sei se alguma ficará para a história, pontes nunca pensei vir a desenhar. É por essas razões que a minha ponte é minha, o projecto da minha vida. Amo-a como amaria uma mulher, um filho, sem reservas, sem condições. Nunca me tomei como um artista, esta é a minha oportunidade, a primeira e espero que não seja a última.


Quando namorava a Clara pedi-lhe opiniões, sugestões, embora admitisse apenas aquelas que tiveram o meu acordo. A Clara era a espectadora ideal: imaginativa, sensível, intuitiva, sem conhecer escolas e correntes, liberta de preconceitos académicos, quase ingénua na sua inexperiência de vida. E sincera, principalmente sincera. Tenho saudades dela. Daquele olhar limpo, daquelas delicadas mãos que sabiam moldar, construir, corrigir. Sem propensão para teorizar calculo as dificuldades que enfrenta num curso tão teórico como aquele que está a terminar. Quando vejo a ponte a erguer-se dia após dia apetece-me telefonar-lhe, convidá-la, mas não, não me atenderia sequer, cortou toda e qualquer comunicação comigo, eliminou da internet tudo que a comprometesse comigo. Fez-se morrer para mim, matou-me para ela.

1 comentário:

Meg disse...

"A técnica é um saber fazer, a arte é um fazer sentir..."

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