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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

NOTAS SOBRE OS MATERIALISMOS

Espinosa: Elementos de Ética


Texto de Gilles Deleuze


« III- Desvalorização de todas as «paixões tristes»


(Em proveito da Alegria)


Espinosa O Ateu

Se a Ética e a Moral se contentassem em interpretar os mesmos preceitos, a sua distinção seria somente teórica. Mas isso não acontece. Espinosa, ao longo de toda a sua obra, não cessa de denunciar três espécies de personagens: o homem das paixões tristes; o homem que explora estas paixões tristes, que delas necessita para estabelecer o seu poder; e, por último, o homem que se entristece com a condição humana e com as paixões do homem em geral (que tanto pode zombar como indignar-se, mas não deixando a própria zombaria de ser um mau riso). Trata-se do escravo, do tirano, e do sacerdote. Jamais, depois de Epicuro e de Lucrécio, se mostrou melhor o vínculo profundo e implícito existente entre os tiranos e os escravos: «O grande segredo do regime monárquico, e o seu interesse profundo, consiste em enganar os homens, disfarçando, sob o nome da religião, o temor a que se quer sujeitá-los; e de tal modo que estes combatem pela sua servidão como se tratasse da sua salvação». É que a paixão triste é um complexo que reúne o infinito dos desejos e a confusão da mente, a concupiscência e a superstição. «Os mais zelosos em abraçar qualquer espécie de superstição são inevitavelmente os que mais imoderadamente desejam os bens exteriores». O tirano necessita da tristeza das almas para triunfar, tal como as almas tristes necessitam de um tirano para se acolherem e propagarem. O que de qualquer modo os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. Em Espinosa há efectivamente uma filosofia da «vida»: ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos os valores transcendentes que se orientam contra a vida, unidos às condições e às ilusões da nossa consciência. A vida está pervertida pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e do perdão. O que perverte a vida é o ódio, inclusivamente o ódio a si mesmo, a culpabilidade. Espinosa segue passo a passo o terrível encadeamento das paixões tristes: em primeiro lugar a própria tristeza, a seguir o ódio, a aversão, o escárnio, o temor, o desespero, o morsus conscientae, a piedade, a indignação, a inveja, a humildade, o arrependimento, a humilhação, a vergonha, o desgosto, a cólera, a vingança, a crueldade…A sua análise vai tão longe que, até na esperança e na segurança, acaba por encontrar esse grãozinho de tristeza que as converte em sentimentos de escravos. A verdadeira cidade deve então propor aos cidadãos o amor da liberdade mais do que a esperança das recompensas ou mesmo a segurança dos bens, uma vez que «é aos escravos e não aos homens livres que se dão recompensas pela sua boa conduta». Espinosa não é, em suma daqueles que pensam que uma paixão triste tem algo de bom. Muito antes de Nietzsche, ele denuncia todas as falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais depreciamos a vida: nós, rigorosamente, não vivemos; mantemos apenas uma aparência de vida, apenas pensamos em evitar a morte, e toda a nossa vida é um culto da morte.»


Deleuze, Gilles, ESPINOSA E OS SIGNOS, Rés Editora,

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