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quarta-feira, 24 de março de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE CARLOS -18


Projectos. O projecto da ponte, o projecto do Centro de Cultura. A ponte já quase está erguida, menina dos meus olhos. O segundo projecto está quase terminado. Não sou um espírito analítico, ou vejo a coisa toda inteira duma só vez, ou recomeço. Não me serve de nada caminhar por etapas, a pensar em cada uma por sua vez. Ou sai o todo, ou ando meses a pensar nele. O Centro de Cultura brotou da minha cabeça como Vénus da coxa do Pai. Gostei. Se os outros não gostarem, paciência. Passei metade da vida a construir casas ao gosto do freguês. Mercadoria. Vendo-me por um salário (enfim, não é nada mau), produzo um projecto que a firma e o freguês encomendam, submeti-me sempre ao interesse da firma e ao gosto do comprador. Produzi, não criei. Vendi-me, não sou livre. Quinze anos de rotinas. A ouvir o Vasconcelos «Faz assim!». A ouvir o freguês «Quero assado!». O prestígio que granjeei , qualquer que seja o mérito, é uma treta: foi muito maior o desprazer em produzir do que o prazer. Somente a ponte que projectei e vejo a erguer-se me apaixonou. As paixões nunca foram o meu forte e, por isso, nunca foram a minha fraqueza. A minha vida foi um sucedâneo de acontecimentos sem significado. Transcendente, pelo menos. Nem profundo, nem transcendente. Elos de uma cadeia de factos: chega uma encomenda ou uma oportunidade – mais um encargo que oportunidade – e cumpro (raramente dentro dos prazos). A pequena ponte, modesta na sua dimensão, sem a grandiosidade das pontes que atravessam os grandes rios, ao contrário de centenas de moradias, mobilizou e despertou as energias mais adormecidas, que eu nem acreditava que possuísse.

Ambiciono fazer do projecto do Centro de Cultura uma obra igual ou maior. Imagino-o como um pólo atractor, uma fonte de dinamismo, de convívio comunitário e criador, uma escola de aprendizagens várias, que desenvolverão os gostos, o carácter, a personalidade de inumeráveis crianças e jovens. Se ainda estiver vivo quero vê-las entrar apressadas e a saírem felizes. É o meu contributo cívico. Nunca fiz nada que tal merecesse. Nunca pertenci a um partido, nunca ingressei em movimento algum, nunca dei um pataco a nenhuma causa, nunca chorei uma lágrima de comoção ou de compaixão. Tudo me era indiferente. Jamais, ou quase, seduzi uma mulher com as artimanhas do costume, sempre achei uma perda de tempo, deixei-me seduzir e apenas quando quis. Foram-se embora, deixá-las ir. A bem dizer nem sequer amei a mulher com quem estive casado quinze anos. Gostei dela, é tudo. Tive amantes ocasionais, nunca pedi perdão por isso. Quando ela passou a imitar-me, achei justo, estávamos quites. Se ela o fez por vingança não me apeteceu pensar nisso. Nunca tivemos filhos para haver dramas.

Ganhei bom dinheiro, gastei-o como e quando quis. Todo. Chapa ganha, chapa gasta. Bares e restaurantes caros, bons hotéis para uma noite de sexo, nem frio nem ardente.

Subitamente despertei da letargia. Não foi a morte da mulher (ou foi?), talvez fosse o projecto da ponte, o projecto do Centro de Cultura para crianças desprotegidas. Talvez. Ou talvez, antes disso, a relação com a Carla. Iniciar uma jovem mulher fez-me sentir um Pigmaleão, a tal peça do Bernard Shaw. Como se desejasse ser melhor do que eu era efectivamente; e ao tentá-lo, ficar e ser realmente melhor. Encontrei-me? Não sei. Encontrei através dela a minha juventude. Capaz novamente de sonhar. De acreditar. A partida dela não foi um fracasso, um desastre, uma derrota. Foi um fim de um ciclo.

1 comentário:

São disse...

Agradou-me o texto.

Tudo de bom.

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