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sábado, 5 de março de 2011

Crise financeira...ou de superprodução?

" (...) A grande depressão dos anos 1930 colocou em evidência os limites da teoria neoclássica dominante na época. Sua explicação sobre o funcionamento do capitalismo se fundamenta na lei de Say, duramente criticada por Keynes [17] na Teoria Geral, e sobre o equilíbrio dos mercados através de um ajuste automático dos preços, impedindo teoricamente o surgimento espontâneo de uma crise. Como esta última crise – que muitos insistem em classificá-la de financeira – uma realidade que é difícil de negar. A maior parte dos autores neoclássicos (e dos comentaristas econômicos que a vulgarizaram na grande imprensa) interpreta a crise a partir de fatores externos aos mercados, em particular a intervenção do Estado ou a influência dos sindicatos dos trabalhadores, ou pelos excessos no comportamento dos agentes econômicos, que vai da cobiça desmesurada às fraudes, passando pela governança corporativa, que perturbam o livre jogo das forças do mercado. A lógica da concentração da propriedade e da riqueza privada assim como a da maximização, não são problemáticas, somente os casos de incompetência ou de corrupção são questionados.


As políticas neoliberais estão, portanto, em declínio, mas ainda exibem muita força e vigor. A gravidade da crise recolocou em cena as teses de John Maynard Keynes, crítico agudo da visão neoclássica de um ajustamento autoregulado do capitalismo. Há alguns anos, uma parte dos teóricos neoclássicos começou a abandonar certas posições mais duras da teoria, não para converterem-se ao keynesianismo, mas para relançarem a ambição da absorção dele pelo paradigma walrasiano, através da chamada segunda síntese neoclássica, realizada desde os anos 1940 por Sir John R. Hicks e Paul A. Samuelson. Encontramos, atualmente, entre os seus herdeiros mais eminentes, que permanecem fiéis à teoria neoclássica padrão, mesmo ao preço de algumas adaptações (sobre os ajustamentos de preços, as antecipações ou à concorrência imperfeita) Joseph Stiglitz, Paul Krugman e Olivier Blanchard. O primeiro, prêmio Nobel de economia em 2008, foi vice-presidente do Banco Mundial e não precisa de maiores apresentações. Krugman, prêmio Nobel em 2008, encerra seu livro, "A crise de 2008 e o retorno da depressão econômica", escrevendo que "Keynes – que compreendeu a Grande Depressão [dos anos 1930] está atualmente, mais do que nunca, na ordem do dia". [18] O terceiro, durante muito tempo professor no MIT, assessora ao mesmo tempo o diretor gerente socialista do FMI, Dominique Strauss-Kahn, como economista-chefe dessa instituição, e o prêmio Nobel da Paz de 2009, Barack Obama, como conselheiro dos Federal Reserve Banks de Nova Iorque e de Boston.

Todavia, é forçoso reconhecer que, apesar deles frequentemente divergirem quanto às proposições relativas ao grau de intervenção do Estado, as interpretações desses "novos keynesianos" e dos neoclássicos "tradicionais" fazem parte da mesma matriz político-ideológica da teoria econômica. Para os mais avançados dentre eles, apesar das nuances, variantes e sutilezas que os diferenciam, as propostas que eles apresentam são apenas a introdução de pequenas modificações no funcionamento do capitalismo, para que esse sobreviva o maior tempo possível (esse foi também o objetivo de Keynes). Quase todos aceitaram, temporariamente, uma intervenção direta e maciça do Estado através da compra de ações dos bancos, de companhias de seguros e de caixas de poupança à beira da falência, isso sem mesmo reivindicar direito de voto e muito menos de controle das empresas estatizadas. Pode-se perceber algumas medidas keynesianas nos pacotes anti-crise aprovados pelos governos dos Estados Unidos, desde o primeiro plano proposto pela equipe de George W. Bush no primeiro semestre de 2008 (como a devolução de uma parte do imposto de renda que havia sido pago, como tentativa de estimular a demanda de consumo) até, sobretudo, no programa do presidente Barack Obama (obras de renovação de infra-estruturas). Entretanto, a predominância é, claramente, de medidas de políticas neoliberais visando salvar o máximo de riqueza financeira, quer dizer, do capital fictício acumulado pelos oligopólios da alta finança [19] .


A conversão dos planos emergenciais de salvamento do capitalismo em um intervencionismo do Estado através dos Bancos Centrais, acionados de forma muito pouco democráticas pelos dirigentes dos governos neoliberais do Norte, não deve trazer ilusões. A combinação de fortes reduções nas taxas de juros com a abertura de gigantescas linhas de crédito e de compra de ativos bancários permanecem dentro das concepções ortodoxas e seus idealizadores estão muito longe de escaparem dos dogmas da teoria dominante. O "Relatório da Comissão Stiglitz" [20] fornece uma boa ilustração. Redigido entre 2008 e 2009 a pedido do presidente da Assembléia Geral das Nações Unidas, Miguel d´Escoto, o documento final não questiona verdadeiramente os fundamentos da ideologia neoliberal, apesar dela estar debilitada pela crise. Segundo este relatório, as antigas certezas do neoliberalismo devem ser revistas, mas certamente não devem ser abandonadas. Os regimes cambiais devem permanecer flutuantes, as virtudes do livre comércio são reafirmadas frente ao perigo do protecionismo, as falhas da governança corporativa devem ser corrigidas, a gestão dos riscos financeiros continua a ser confiada aos próprios oligopólios privados e a regulação do sistema mundial continua submetido ao imperialismo estadunidense. Assim, estamos cada vez mais longe das manifestações de rejeição expressas cada vez mais pelos países do Sul, da China à Venezuela, contra a liberalização financeira mundial claro que dentro de certos limites, dificuldades e contradições, é verdade.


Por outro lado, uma parte dos economistas liberais, minoritária mas significativa, continua a se radicalizar e se aproximam das teses ultra-liberais austríacas inspiradas em Ludwig Von Mises e Friedrich August Von Hayek. Tendo como fundamento a reafirmação sobre o caráter do equilíbrio automático dos mercados essas análises da crise, das quais encontramos uma bela amostra na página internet do Instituto Von Mises [21] , são embaraçosas para nossos neoliberais "novos keynesianos" na medida em que elas defendem, desde o início, que a crise é o resultado do excesso de intervenção do Estado e que o Estado não deveria, de forma alguma, salvar os bancos e empresas problemáticas [22] . O que deveria ser feito, segundo eles, seria acabar com todas as regulamentações estatais que limitam a livre ação dos agentes econômicos nos mercados. As políticas públicas de habitação, financiadas por Fannie Mae e Freddie Mac , pretendiam, de maneira populista, que todos os cidadãos tivessem acesso ao mercado imobiliário. O mercado demonstrou que é impossível, nem todos podem ter sua casa própria. Os ultra-liberais desenvolvem seus argumentos contra os planos anti-crise e, em particular, contra a regulamentação externa das taxas de juros pelo Banco Central. Os mais radicais dentre eles chegam a defender a supressão pura e simples das instituições estatais, instituições públicas, do banco central e da moeda estatal [23] . Eles estão conscientes de que tais medidas conduziriam o sistema capitalista ao caos, mas sua confiança nos mecanismos de mercado os conduzem à defesa de que esse caos será benéfico para o capitalismo e que o capital se reconstituirá muito mais rapidamente e mais vigorosamente do que se for apoiado pelas intervenções estatais artificiais, que tomam a forma de diferentes auxílios públicos às empresas condenadas à falência.


Nenhuma dessas correntes de pensamento sugere uma reflexão sobre as condições de um processo que permita a superação do capital enquanto relação social de exploração e opressão – inclusive as propostas da esquerda que demandam a reforma do FMI, do Banco Mundial ou a criação de uma nova "moeda mundial". Entretanto, existem vários defensores de que a crise atual conduzirá, provavelmente, ao colapso do capitalismo.



No início dos anos 1990, Robert Kurz [24] , em diversas obras, já defendia que o modo de produção capitalista estava em vias de extinção e que o século XXI abriria um período de transição para uma nova forma de sociedade. Immanuel Wallerstein, que estuda as tendências longas do capitalismo a partir das teorias do sistema mundo, declarou em uma entrevista ao Le Monde em outubro de 2008: "Eu penso que há 30 anos entramos na fase terminal do sistema capitalista. A situação torna-se caótica, incontrolável pelas forças que a dominavam até agora, e vemos a emergência de uma luta, não entre os detentores e os adversários do sistema, mas entre todos os agentes para determinar o que vai substituí-lo. Eu reservo a palavra 'crise' à esse tipo de período. Bem, estamos em crise. O capitalismo atinge o seu fim." [25] Ele acrescentou, em outra entrevista, ao jornal Público de Madri: "Nós podemos estar seguros que em 30 anos não viveremos mais sob o sistema-mundo capitalista." [26] Essas interpretações alinham-se com certas análises da conjuntura mundial do capitalismo, principalmente a equipe do Global Europe Anticipation Bulletin (GEAB – LEAP), cujas previsões sobre a crise continuam cada vez mais pessimistas. "Desde fevereiro de 2006, o LEAP/E2020 tinha avaliado que a crise sistêmica global se desenrolaria segundo quatro grandes fases estruturantes, a saber as fases de eclosão, de aceleração, de impacto e de decantação. Esse processo descreveu bem os acontecimentos até hoje [15/02/2009]. Mas, [...] a incapacidade dos dirigentes mundiais em medir a crise, caracterizada principalmente pela sua obstinação há mais de um ano em tratar das conseqüências da crise ao invés de atacar radicalmente suas causas, fará com que a crise sistêmica global entre em uma 5ª fase a partir do 4º trimestre de 2009: a fase chamada de deslocamento geopolítico mundial." [27] Em seu boletim mais recente, GEAB 39 de 15/11/2009, avaliam que: "Para o ano de 2010, tendo como pano de fundo uma depressão econômica e social, e de um maior protecionismo, essa evolução vai condenar um grande número de Estados à escolher entre três opções brutais, a saber: a inflação, a forte alta da pressão fiscal ou a cessação de pagamentos. Um crescente número de países (USA, Reino Unido, Eurolândia, Japão, China...), tendo gasto todos seus cartuchos orçamentários e monetários na crise financeira de 2008/2009, com efeito não podem mais ter outra alternativa." (...)
Esta é uma versão modificada e atualizada do artigo "Crise financière ou crise de surproduction? Éléments pour une critique marxiste des mesures anti-crise", elaborado para publicação na revista La Pensée (no prelo).


[*] Professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFES. Presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política .

[**] Pesquisador do CNRS (UMR 8174 – Centro de Economia da Sorbonne, Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne) e Coordenador do Fórum Mundial das Alternativas .

O artigo completo encontra-se em http://resistir.info/ .

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