Translate

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Pós-modernidade: sim ou não.

CHEVITARESE, L. (2001): “As ‘Razões’ da Pós-modernidade”. In: Analógos. Anais da I SAF-PUC. RJ:


Booklink. (ISBN 85-88319-07-1)

As “razões” da pós-modernidade

Sem os punhos de ferro da modernidade,

a pós-modernidade precisa de nervos de

aço1.

Apresentação

Frederic Jameson considera os anos 60 como o início da pós-modernidade,

entendida por ele como lógica cultural do capitalismo tardio. Mas apenas a partir da

década de 70 o debate em torno do tema torna-se mais inflamado. As raízes da

discussão encontram-se na crise cultural que se faz sentir, principalmente, a partir do

pós-guerra. O desencanto que se instala na cultura é acompanhado da crise de conceitos

fundamentais ao pensamento moderno, tais como “Verdade”, “Razão”, “Legitimidade”,

“Universalidade”, “Sujeito”, “Progresso”, etc. O efeito da desilusão dos sonhos

alimentados na modernidade se faz presente nas três esferas axiológicas por ela mesma

diferenciadas: a estética, a ética e a ciência. Tal efeito, apresenta-se nos mais diversos

campos de produção cultural, tais como a literatura, a arte, a filosofia, a arquitetura, a

economia, a moral, etc.

Surgem questões que se tornam alvo de intenso debate na atualidade: estaríamos,

nessa “crise cultural”, vivendo uma crise da modernidade? Seria a crise o anúncio de

um obituário, que nos convidaria a falar em “pós-modernidade”, como superação ou

ruptura com a modernidade? Poderia a noção de “pós-modernidade” servir para

caracterizar a cultura contemporânea?

1 BAUMAN, Zygmunt: Modernidade e Ambivalência. RJ. Jorge Zahar Editor. 1999. Pág. 259.

Em 1979, Jean-François Lyotard publica La Condition Postmoderne, no qual

apresenta o problema da legitimação do conhecimento na cultura contemporânea. Para

Lyotard, “o pós-moderno, enquanto condição da cultura nesta era [pós-industrial],

caracteriza-se exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso filosóficometafísico,

com suas pretensões atemporais e universalizantes”2. Por outro lado,

Habermas prefere compreender a modernidade como um “projeto inacabado”,

sugerindo que “deveríamos aprender com os desacertos que acompanham o projeto”3.

Será que “dizer que somos pós-modernos dá um pouco a impressão de que deixamos de

ser contemporâneos de nós mesmos”4? Mas se ainda reivindicarmos nossa “condição

moderna”, como tratar de todas as mudanças que marcam a cultura contemporânea, e

que a tornaram tão estranha a certas noções fundamentais à modernidade?

O que pretendo, aqui, é investigar brevemente a aplicação do conceito de “pósmodernidade”

à cultura contemporânea e as possíveis “razões” dessa aplicação.

Articula-se, logo de início, uma problemática: se a pós-modernidade, como o próprio

termo sugere, caracteriza-se em primeira instância como uma reação (ou rejeição) à

modernidade, seria ela o triunfo do irracionalismo, ou a pós-modernidade pressupõe, em

última análise, algum conceito de “razão”, para além de seu relativismo epistêmico mais

superficial? Caso a resposta seja positiva, quais são “As ‘razões’ da pós-modernidade”?

A Modernidade e o Desencanto na Cultura

2 LYOTARD, Jean-François: O pós-moderno. RJ. Olympio Editora. 1986. Introdução, viii.

3 HABERMAS, J.: “Modernidade – um projeto inacabado”. In: ARANTES, O. & ARANTES, P.: Um

ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. SP. Brasiliense. 1992. Pág. 118.

4 ROUANET, S. P.: As razões do iluminismo. SP. Companhia das Letras. 1987. Pág. 229.

O termo “pós-modernidade” encontra-se ligado à significação de

“modernidade”, até por que não faria sentido ser “pós” alguma coisa que não se sabe o

que é. O “pós-moderno” representa alguma espécie de reação ou afastamento do

“moderno” 5. Contudo, não basta apenas a análise do conceito de modernidade, pois o

próprio prefixo “pós” articula problemáticas situadas em diversas áreas. Krishan Kumar

chama à atenção que o prefixo “pós”, de “pós-modernidade”, é ambíguo: pode significar

um novo estado de coisas, no sentido do que vem depois; ou pode ser usado como o

post de post-mortem, sugerindo fim, término6.

Será então necessário ressaltar primeiro as perspectivas fundamentais da própria

“modernidade”, para então estabelecermos em que sentido podemos falar de uma

“posterioridade” na “pós-modernidade”.

No início do século XX, Max Weber já caracterizava o advento da modernidade

como um processo crescente de “racionalização intelectualista”, intimamente ligado ao

progresso científico, que leva ao “desencantamento do mundo”7. Vejamos o que

Habermas nos diz, comentando Weber:

Max Weber caracterizou a modernidade cultural, mostrando que

a razão substancial expressa em imagens de mundo religiosas e

metafísicas se divide em três momentos, os quais apenas

formalmente (mediante a forma de fundamentação

argumentativa) ainda podem ser mantidos juntos. Uma vez que

as imagens de mundo se desagregam e os problemas legados se

cindem entre os pontos de vista específicos da verdade, da

justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser

tratados, respectivamente como questão de conhecimento, como

questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos tempos

5 Cf. HARVEY, David: Condição pós-moderna. SP. Edições Loyola. 1992. Pág. 19.

6 Cf. KUMAR, Krishan: Da sociedade pós-industrial à pós-moderna. RJ. Jorge Zahar Editor. 1997. Pág.

79.

7 Cf., p.ex., WEBER, Ciência e Política. Duas vocações. SP. Cultrix, 1968. Págs. 30 / 31.

modernos uma diferenciação de esferas de valor: ciência, moral

e arte.8

O conjunto de idéias e perspectivas que caracterizam a modernidade parece

constituir um grande sonho que a humanidade elaborou para si mesma9, ou ainda um

audacioso projeto da Razão como libertadora. O Discurso iluminista de emancipação

pela revolução, ou pelo saber, sustenta essa confiança na capacidade da Razão10.

Habermas chama a atenção para o que ele denomina projeto da modernidade, e que tem

sido amplamente discutido na atualidade, como demonstra David Harvey:

Embora o termo “moderno” tenha uma história bem mais

antiga, o que Habermas chama de projeto da modernidade

entrou em foco durante o século XVIII. Esse projeto equivalia a

um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas

“para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei

universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica

interna destas”. A idéia era usar o acúmulo de conhecimento

gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em

busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida

diária.11

A aplicação ampla da racionalidade na organização social prometia a segurança

de uma sociedade estável, democrática, igualitária (incluindo o fim de estados

teocráticos, de perseguições sociais produzidas pela superstição, de abusos de poder por

parte dos governantes, etc). A possibilidade de domínio científico representava o aceno

de uma ambicionada segurança, que nos afastaria dos infortúnios ligados a

imprevisibilidade do mundo natural (desde condições climáticas e de relevo, a doenças

físicas e mentais): a natureza deveria submeter-se ao poder da Razão humana.

8 HABERMAS, J.: “Modernidade – um projeto inacabado”. In: ARANTES, O. & ARANTES, P., op. cit.,

1992. Págs. 109 / 110.

9 Bauman, p.ex., denominou “sonho da razão legislativa”. Cf. BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 29.

10 Cf. CASSIRER, Ernest: A Filosofia do Iluminismo. SP. Editora da Unicamp. 1994. Pág. 21.

11 HARVEY, op.cit., 1992. Pág. 23, meu grifo.

Estes foram sonhos demasiadamente caros para a humanidade, pelos quais se

permitiu a hipervalorização do conhecimento objetivo e científico. O que Ken Wilber,

p.ex., prefere chamar de desastre da modernidade: “uma patologia, que logo permitiu

que uma poderosa ciência monológica colonizasse e dominasse as outras esferas (a

estético-expressiva e a religiosa-moral)”12.

Naturalmente, o investimento cultural na racionalidade universal e na ciência

(que nos protegeriam do caos e da aleatoriedade) exigiu uma restrição da liberdade

individual. Harvey observa que “há a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava

fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca de emancipação humana num

sistema de opressão universal em nome da libertação humana”13.

A expectativa quanto aos frutos da ciência foi dolorosamente interrompida por

eventos que marcaram profundamente a sociedade atual. O principal deles foi, sem

dúvida, a catástrofe da Segunda Guerra Mundial e a insuportável lembrança de

acontecimentos como Auschwitz e Hiroshima: “cortada ao meio pela guerra fria, cética

em relação à construção ‘comunitária’ que lhe propõem tecnocratas e políticos, a

Europa dos anos 50 deixou de acreditar no futuro”14.

A ciência perdeu boa parte da aura de autoridade que um dia

possuiu. De certa forma, isso provavelmente é resultado da

desilusão com os benefícios que, associados à tecnologia, ela

alega ter trazido para a humanidade. Duas guerras mundiais, a

invenção de armas de guerra terrivelmente destrutivas, a crise

ecológica global e outros desenvolvimentos do presente século

poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensores do

progresso por meio da investigação científica desenfreada15.

12 WILBER, The Marriage of Sense and Soul: integrating science and religion. New York. Random

House. 1998. Pág. 55, meus grifos.

13 HARVEY, op.cit., 1992. Pág. 23.

14 DELACAMPAGNE, C.: História da Filosofia no Século XX. RJ. Jorge Zahar Editor. 1995. Pág. 233.

15 GIDDENS, A. : “A vida em uma sociedade pós-industrial”. In: BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony &

LASH, Scott: Modernização Reflexiva. SP. UNESP. 1997. Pág. 109.

Já não parece claro que a investigação científica possa “garantir” o que quer que seja.

Além disso, a dúvida sobre os “benefícios” trazidos pela tecnologia torna-se cada vez

mais cotidiana, doméstica, principalmente à medida em que se intensifica a dependência

a esta mesma tecnologia crescente (incluindo, p.ex., a dependência cada vez maior de

aparelhos eletrodomésticos, automóveis, computadores, etc – sem os quais, para muitos,

tornou-se “impossível” viver).

Na medida em que as expectativas criadas não se puderam realizar efetivamente,

surgiram a frustração, o relativismo e o niilismo16. Mas a própria exigência de

radicalidade crítica da modernidade já trazia consigo a “armadilha da dúvida”:

(...) as sementes de niilismo estavam no pensamento

iluminista desde o início. Se a esfera da razão está inteiramente

desagrilhoada, nenhum conhecimento pode se basear em um

fundamento inquestionado, por que mesmo as noções mais

firmemente apoiadas só podem ser vistas como válidas “em

princípio” ou até “ulterior consideração”. De outro modo elas

reincidiriam no dogma e se separariam da própria esfera da

razão que determina qual validez está em primeiro lugar.17

Esta é uma tese que considero particularmente importante: o Desencanto na

Cultura, entendido como perda de horizontes, sensação de caos, incerteza e relatividade,

é algo que desde o início da modernidade encontrava-se embrionário, implícito nas

próprias exigências críticas da Razão – o que gostaria de chamar de “a outra face da

moeda iluminista”. Mas se não há mais otimismo quanto aos rumos da cultura moderna,

esse desencanto vem acompanhado da rejeição a tudo que é tido como opressivo, da

desconfiança a todo discurso que pretenda dizer ‘o que são as coisas’, ‘o que devemos

fazer’, ‘como sentir’. É a dúvida quanto às possibilidades de fundamentação racional, a

16 Diversos teóricos demonstraram a relação entre o niilismo e a pós-modernidade. Ver, p.ex.,

VATTIMO, Gianni: O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Lisboa.

Editorial Presença. 1987.

17 GIDDENS, As consequências da modernidade. SP. Unesp. 1991. Pág. 54, meu grifo.

suspeita quanto às narrativas globalizantes, que caminha lado a lado do clamor por

liberdade. A pós-modernidade configura-se como uma reação cultural, representa uma

ampla perda de confiança no potencial universal do projeto iluminista18.

O Ataque à Ciência e o Irracionalismo pós-moderno

Lyotard inicia sua tentativa de desmascarar a pretensão de legitimidade da

ciência, pela evidência de que não se pode prescindir do recurso a outra narrativa (nãocientífica)

para responder a pergunta: como provar a prova? As duas principais

narrativas às quais recorre a ciência moderna são as de emancipação filosófica e política

produzidas pelo iluminismo. Elas se diferenciam das narrativas pré-modernas, que se

centravam na tentativa de retornar, redescobrir e reviver uma verdade originária, pois

são essencialmente teleológicas, visam a um determinado objetivo final, e dependem de

uma idéia de progresso temporal. Segundo Lyotard, o descrédito em relação a tais

narrativas de grande envergadura (grands récits), de caráter totalizante, e a falência das

pretensões de legitimação através delas estão no fundamento da condição pós-moderna:

“simplificando ao extremo, considera-se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos

metarrelatos”19.

Segundo Bauman, a dúvida que problematiza o conhecimento, e que se torna

mais evidente na condição pós-moderna, é aquela que “desafia o direito de a ciência

validar e invalidar, legitimar e deslegitimar – em suma, de traçar a linha divisória entre

conhecimento e ignorância”20. A condição pós-moderna nos faz encarar o “demônio da

improcedência da certeza”, que em sua forma mais assustadora suscita a suspeita de que

18 Cf., p.ex., FEATHERSTONE, Cultura de consumo e Pós-modernismo. SP. Studio Nobel. SESC. 1995.

Pág. 66.

19 Idem. Introdução, pág. xvi.

20 BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 257.

a ciência pudesse ser apenas uma forma de mitologia sofisticada, “apenas uma versão

dentre muitas”21. Todavia, o “enfrentamento” da incerteza pode ser vivido como

desqualificação total da ciência e sua igualação a outras formas de saber , ou como

consciência da incerteza e da ambivalência pós-modernas, que exige uma nova relação

com a questão da legitimação e da certeza do conhecimento. De qualquer modo, o

Ataque à Ciência pode ser compreendido como um advento da reação cultural que

acompanha a perda de confiança na objetividade da Razão.

A ansiedade pós-moderna pela plenificação da liberdade reflete a profunda

descrença cultural em um “caminho seguro” para a felicidade. Por outro lado, ao mesmo

tempo em que se intensifica o sentimento de liberdade (nas palavras de Dostoievsky:

“se Deus está morto, tudo é permitido”), cresce a insegurança em relação ao que fazer,

i.e., a capacidade de decidir “corretamente” no exercício da liberdade. A permissividade

total mostra-se culturalmente tão assustadora quanto uma cruel limitação: “poder tudo”

é tão angustiante quanto “não poder nada”.

É inteiramente diferente viver com a consciência pós-moderna

de que não há nenhuma saída certa para a incerteza; de que a

fuga à contingência é tão contingente quanto a condição da qual

se busca fugir. O desconforto que tal consciência produz é a

fonte de mal-estares especificamente pós-modernos22.

A condição pós-moderna nos traz a consciência da incerteza e da ambivalência.

Respostas em suspenso. Mal-estar diante de um mundo caótico. “A cultura já não pode

mais proporcionar uma explicação adequada do mundo que nos permita construir ou

ordenar nossas vidas”23. É por isso que Giddens afirma que “não há nada de misterioso

21 Idem. Pág. 258.

22 BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 250.

23 FEATHERSTONE, Mike: O Desmanche da Cultura. SP. Studio Nobel. SESC. 1997. Pág. 15.

no surgimento do fundamentalismo no mundo moderno tardio”24. Adotar uma única

resposta é evitar a experiência angustiante da dúvida radical, cujo fascínio advém da

promessa de livrar os convertidos das agonias da escolha individual. O

fundamentalismo25, é um exemplo de ausência crítica, ou irracionalismo pós-moderno,

uma forma de usar a liberdade para tentar fugir dela.

Baudrillard, por sua vez, afirma que a única coisa que dá sentido às massas é o

espetáculo26. O fascínio pelo espetacular torna-se cada vez mais evidente na condição

pós-moderna, o que não pode ser dissociado do desenvolvimento da tecnologia de

informação e de transformações econômicas que fazem, p.ex., Jameson tomar a pósmodernidade

como “lógica cultural do capitalismo tardio”.

Muitos teóricos têm caracterizado a cultura atual como sociedade de consumo, o

que corresponde a aceitar que o mapeamento deste mundo simulacional das mercadorias

é um dos eixos centrais para a compreensão da cultura. Se outrora o consumo era apenas

uma conseqüência da produção de mercadorias, “hoje é preciso produzir os

consumidores, é preciso produzir a própria demanda, e essa produção é infinitamente

mais custosa do que a de mercadorias”27. O consumo de produtos e serviços está

mergulhado no sonho que envolve cada signo-mercadoria. Campbell, p.ex., desenvolve

uma análise do consumo, identificando suas relações com o romantismo, com o sonho,

com a busca imaginária de realização: “a atividade essencial do consumo não é a

24 GIDDENS,: “A vida em uma sociedade pós-tradicional”. In: BECK, GIDDENS & LASH, op.cit.,

1997. Pág. 123.

25 “O fundamentalismo é um remédio radical contra esse veneno da sociedade de consumo conduzida

pelo mercado e pós-moderna – a liberdade contaminada pelo risco (um remédio que cura a infecção

amputando o orgão infeccionado – abolindo a liberdade como tal, na medida em que não há liberdade

livre de riscos)”. BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade. RJ. Jorge Zahar Editor. 1998. Pág. 228.

26 Cf. BAUDRILLARD, À sombra das maiorias silenciosas. SP. Editora Brasiliense. 1993. Pág. 14.

27 BAUDRILLARD, op.cit., 1993. Págs. 26/27.

seleção, a aquisição ou o uso real dos produtos, mas a procura imaginária do prazer a

que se presta a imagem do produto”28.

A preocupação com o estilo de vida passa a ser um indicativo fundamental.

Baudrillard ressalta que “o lúdico do consumo tomou progressivamente o lugar do

trágico da identidade”29. Esta tendência de irracionalismo pós-moderno afirma: “dizme

o que consomes e dir-te-ei quem és”. (E não é pequeno hoje em dia o número de

pessoas que tenta “resolver” – ou pelo menos adiar – suas crises de identidade pessoal

ou social entregando-se compulsivamente ao consumo).

Apreciamos a diversidade de “sentidos” como imagens que se deslocam numa

tela de vídeo. Para Baudrillard, vivemos em uma cultura na qual “a televisão é o

mundo”: somos submetidos a uma torrente interminável de imagens, a um

bombardeamento de signos sem profundidade ou fragmentados, que constituem um

convite ao fascínio estético e à recusa de juízos morais. “Por toda parte já vivemos

numa alucinação ‘estética’ da realidade”30.

Todavia, se a estetização da realidade é uma “tendência cultural dominante”31,

não há mais autonomia nas esferas culturais, que surgem mergulhadas num turbilhão de

imagens ou “intensidades multifrênicas” (para usar um termo de Jameson). Tem-se,

então, a colonização pela estética das demais esferas da cultura: “as diferentes esferas

culturais – a estética, a ética, a teórica – perdem sua autonomia, por exemplo, o reino

estético começa a colonizar as esferas teórica e moral-política”32.

28 CAMPBELL, C.: The Romantic Ethic and the Spirit of Modern Consumerism. Oxford. Blackwell.

1987. Apud FEATHERSTONE, op. cit., 1997. Pág. 45.

29 BAUDRILLARD, A Sociedade de Consumo. Lisboa. Edições 70. 1981. Pág. 240, meu grifo.

30 BAUDRILLARD, J.: Simulations. New York. Semiotext. 1983. Pág.148. Apud FEATHERSTONE,

op.cit., 1995. Pág. 102.

31 Cf. JAMESON, Frederic: Espaço e Imagem: teorias do pós-modernos e outros ensaios. RJ. Editora da

UFRJ. 1994. Pág. 136.

As “razões”da pós-modernidade

A pós-modernidade pode ser caracterizada como uma reação da cultura ao modo

como se desenvolveram historicamente os ideais da modernidade, associada à perda de

otimismo e confiança no potencial universal do projeto moderno. Em especial,

configura-se como uma rejeição à tentativa de colonização pela ciência das demais

esferas da culturais, o que vem acompanhado do clamor pela liberdade e

heterogeneidade, que haviam sido suprimidas pela esperança de objetividade da Razão.

Enquanto reação cultural, a pós-modernidade traz consigo fortes tendências ao

irracionalismo, o que pode ser exemplificado, tanto pelo fundamentalismo

contemporâneo, como pela sociedade de consumo, que convivem em um universo

cultural de colonização pela estética da ciência e da ética.

Estaríamos, então, vivendo uma crise da modernidade, ou seria melhor concebêla

como uma crise na modernidade? Não haveria um equívoco em rejeitar por completo

o projeto moderno, em função do que teria sido seu desastre inicial, i.e, o

agigantamento dos sonhos iluministas e a tentativa de colonização pela ciência? Tentar

“demitir-se” da modernidade não seria, na verdade, aprofundar seus “descaminhos”?

Não é possível lutar contra a modernidade repressiva senão

usando os instrumentos de emancipação que nos foram

oferecidos pela própria modernidade (...) Demitir-se da

modernidade é a melhor forma de deixar intata a modernidade

repressiva33.

Se aceitarmos que está interditada a possibilidade de abrir mão totalmente de certos

pressupostos básicos da modernidade, como a própria idéia de crítica, isto implica que,

se há crise, é na modernidade. Conforme Bauman nos indica,

32 KUMAR, op.cit., 1997. Pág. 128.

33 ROUANET, op.cit., 1987. Pág. 26.

a pós-modernidade é a modernidade que atinge a

maioridade, a modernidade olhando-se a distância e não de

dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas,

psicanalizando-se, descobrindo as intenções que jamais

explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes

e se cancelam. A pós-modernidade é a modernidade chegando a

um acordo com a sua própria impossibilidade, uma

modernidade que se automonitora, que conscientemente

descarta o que outrora fazia inconscientemente.34

Bauman (que utiliza o termo para caracterizar a cultura contemporânea) procura deixar

claro que a “pós-modernidade” é a condição atual da modernidade. Giddens, por outro

lado, prefere a noção de “modernidade tardia” ou “modernidade radicalizada”, como

mais adequada para referir-se à cultura em que vivemos:

A ruptura com as concepções providenciais de história, a

dissolução da aceitação de fundamentos, junto com a

emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro

e o “esvaziamento” do progresso pela mudança contínua, são

tão diferentes das perspectivas centrais do Iluminismo que

chegam a justificar a concepção de que ocorreram transições de

longo alcance. Referir-se a estas, no entanto, como pósmodernidade,

é um equívoco que impede uma compreensão

mais precisa de sua natureza e implicações. As disjunções que

tomaram lugar devem, ao contrário, ser vistas como resultantes

da auto-elucidação do pensamento moderno, conforme os

remanescentes da tradição e das perspectivas providenciais são

descartados. Nós não nos deslocamos para além da

modernidade, porém, estamos vivendo precisamente através de

uma fase de sua radicalização35

Ora, poderiam os homens modernos, na medida em que se assumem radicalmente

enquanto tais, deixar de realizar uma grave crítica à própria modernidade? Segundo

Bauman, “os mais brilhantes e mais fiéis filhos da modernidade não podiam expressar

34 BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 288, meu grifo.

35 GIDDENS, op.cit., 1991. Pág. 56/57, meu grifo.

sua lealdade filial senão se tornando os seus coveiros”36. Ou ainda: como não esperar

que tentassem ser “pós-modernos”?

Sendo assim, o “pós” de “pós-modernidade” não pode denotar, de fato, ruptura

ou esgotamento da modernidade, não pode significar seu obituário, mas, ao contrário,

revela uma crise na modernidade (portanto, jamais uma crise da modernidade), revela,

digamos, um modo de “experimentar” a modernidade.

Isto significa, por outro lado, que podemos tomar o conceito de “pósmodernidade”,

enquanto tentativa de caracterização da cultura contemporânea, como

sintoma da crise na modernidade. Em outras palavras, ele seria “autêntico em sua

inadequação” 37 à caracterização de uma época de crise, uma época de transição. Ou

simplesmente, como Jameson argumenta, não podemos não usá-lo – ainda que para

tanto sejamos obrigados, todas as vezes, a enfrentar as contradições internas, e a

inconsistência de representação implícita ao termo 38. Sustento, portanto, que vivemos

em uma cultura pós-moderna.

A pós-modernidade não abandona os imperativos de racionalidade crítica, ao

contrário, leva a crítica às mais profundas conseqüências, questionando os conceitos e

pressupostos da modernidade. E há boas “razões”39 para isso, que se revelam pela

própria crise na cultura moderna. As “razões” da pós-modernidade são “razões” para

que se reavaliem os “desacertos do projeto”, para que sejam revistas as noções mais

fundamentais da modernidade, incluindo o próprio conceito de “Razão”; são “razões”

para que se mantenha a autonomia das esferas culturais, evitando reducionismos

36 BAUMAN, op.cit., 1998. Pág. 98.

37 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza: Pela Mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. SP.

Cortez. 1997. Pág. 77.

38 Cf. JAMESON, op.cit., 1996. Pág. 25.

39 Entendo por “razões”, aqui, neste contexto, as justificativas críticas de revisão da modernidade – o

fundamento da reação cultural que vivemos – , que se têm tornado cada vez mais evidentes a partir da

crise na modernidade. Por outro lado, também uso “razões”, em “razões da Pós-modernidade ”, no

sentido mais fraco, de “razões” (ou justificativas), para o uso do termo “pós-modernidade”.

de qualquer espécie – seja do cientificismo, ou, na condição pós-moderna, do

esteticismo. A cultura pós-moderna não tem mais “Razão”, tem “razões”.

A sombra do irracionalismo paira na pós-modernidade, penetrando nos mais

diversos aspectos do “modo de vida global” que é a cultura. Segundo Jameson, a

“completa estetização da realidade” é tendência cultural dominante no universo pósmoderno.

Ainda que possamos delinear as “razões” da pós-modernidade como

“razões” críticas para a revisão dos descaminhos da modernidade, na cultura

contemporânea a opção do irracionalismo permanece sempre à disposição. Talvez

como a tentação capital do “demônio da improcedência da certeza”.

Sem comentários:

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.