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quarta-feira, 25 de julho de 2012

O pai da Hermenêutica


A Consciência da História: Gadamer e a Hermenêutica
Ernildo Stein
O filósofo Hans-Georg Gadamer, que ficou conhecido como o autor de "Verdade e Método - Esboços de uma Hermenêutica Filosófica", morreu aos 102 anos de idade, no dia 14 de março, 42 anos após a publicação de sua obra-prima. O subtítulo do livro não agradou ao editor por ser pouco inspirado, teria que ser precedido pelo título propriamente dito: "Compreender e Acontecer". Depois se encontrou o título que faria fortuna, "Verdade e Método" (publicado no Brasil pela editora Vozes).
Durante décadas, a obra concentraria a discussão filosófica na Alemanha: Ela primeiramente foi recebida como uma contraposição às ciências do espírito que interpretaram mal a palavra "compreender" como método. O livro tinha por objetivo apresentar o compreender do intérprete como fazendo parte de um acontecer que decorre do próprio texto que precisa de interpretação.
O que estava em jogo era o fato de que as ciências históricas do espírito tinham estremecido a confiança da filosofia numa razão que perpassa a história. Gadamer tinha compreendido a nova tematização do "tempo" em "Ser e Tempo" (1927), de Heidegger: se o tempo é o horizonte de toda compreensão, todas as teorias devem converter-se inelutavelmente em formações históricas, e isso afetara o núcleo da razão.
Gadamer percebera, pelo seu estudo dos gregos, da filosofia clássica alemã e da fenomenologia, que a tradição não podia mais se apoiar, num sentido filosófico relevante, nas interpretações metafísicas da razão. O diagnóstico da perda da possibilidade de um compromisso possível de nossas orientações fundamentais para a vida numa tal tradição leva Gadamer a introduzir a perspectiva hermenêutica.
Temos assim, segundo v filósofo, para substituir nosso apoio na metafísica, a perspectiva de os próprios participantes se empenharem na apropriação viva de tradições que os determinam. O ser humano esclarecido só tinha, como participante da tradição, uma interpretação das próprias condições históricas que, vindas da tradição, o determinam.
É assim que Gadamer se volta para o trabalho de encontrar o caminho para a consciência histórica, numa apropriação da tradição que preserve para esta a força do compromisso. Esse caminho a hermenêutica filosófica explora na crítica da falsa auto-compreensão metodológica das ciências do espírito. O filósofo pretende salvar a substância da tradição por meio de uma apropriação hermenêutica..
É assim que a filosofia hermenêutica de Gadamer encontra na força civilizatória da tradição a autoridade de uma razão diluída do ponto de vista da história efetiva. Gadamer, portanto, não traz de volta a metafísica nem mesmo uma ontologia salvadora; o que lhe importa é mostrar como a razão deve ser recuperada na historicidade do sentido, e essa tarefa se constitui na auto-compreensão que o ser humano alcança como participante e intérprete da tradição histórica. Se nós formos limitar a indicação dos motivos determinantes que estão presentes num tal estilo de pensamento, poderíamos encontrar as seguintes etapas: o diálogo e a dialética em Platão, a hermenêutica e o diálogo, a arte como paradigma da experiência hermenêutica, o estabelecimento das tarefas de uma hermenêutica filosófica e a universalidade da experiência hermenêutica e, por fim, a aplicação como momento do compreender, a hermenêutica como filosofia prática.
Gadamer afirma, na introdução de seu livro, o seguinte: "As análises que seguem começam (por isso) como uma crítica da experiência estética, para defender a experiência de verdade que nos é dada pela obra de arte, contra a teoria estética que se deixa estreitar pelo conceito de verdade da ciência. As análises, entretanto, não param na justificação da verdade da arte. Elas procuram antes desenvolver, desde esse ponto de partida um conceito de conhecimento e de verdade que corresponde ao todo de nossa experiência hermenêutica. Assim como temos que nos haver, na experiência da arte, com verdades que ultrapassam basicamente a esfera do conhecimento metódico, do mesmo modo algo semelhante vale para o todo das ciências do espírito, nas quais nossa tradição histórica é transformada também em objeto da pesquisa, em todas as suas formas, mas ao mesmo tempo ela mesma passa a falar em sua verdade. A experiência da tradição histórica ultrapassa fundamentalmente aquilo que nela é pesquisável. Ela não apenas é verdadeira e não-verdadeira, no sentido sobre o qual decide a crítica histórica - ela medeia constantemente a verdade na qual importa tomar parte".
Portanto "Verdade e Método" fala-nos de um acontecer da verdade no qual já sempre estamos embarcados pela tradição. Gadamer vê a possibilidade de explicitar fenomenologicamente esse acontecer em três esferas da tradição: o acontecer na obra de arte, o acontecer na história e o acontecer na linguagem. A hermenêutica que cuida dessa verdade não se submete a regras metódicas das ciências humanas, por isso ela é chamada de hermenêutica filosófica. É desse modo que Gadamer inaugura um lugar para a atividade da razão, fora das disciplinas da filosofia clássica e num contexto em que a metafísica foi superada.
Mas, apesar de a hermenêutica filosófica desenvolver-se numa perspectiva crítica da metafísica, ela apresenta uma pretensão de universalidade. Porém tal universalidade assume uma forma não dogmática, restando-lhe, portanto, uma universalidade que se move muito próxima da universalidade da crítica. Jürgen Habermas foi um dos primeiros a serem ' tocados pela pretensão de universalidade da hermenêutica.
Ele reconhece-lhe assim algumas características importantes: a) a hermenêutica é capaz de descrever as estruturas da reconstituição da comunicação perturbada; b) a hermenêutica está necessariamente referida à práxis; c) a hermenêutica destrói a auto-suficiência das ciências do espírito assim como em geral elas se apresentam; d) a hermenêutica tem importância para as ciências sociais, na medida em que demonstra que o do- mínio objetivo delas está pré-estruturado pela tradição e que elas mesmas, bem como o sujeito que compreende, têm seu lugar histórico determinado; e) a consciência hermenêutica atinge, fere e revela os limites da auto-suficiência das ciências naturais, ainda que não possa questionar a metodologia de que elas fazem uso;f) finalmente, hoje uma esfera de interpretação alcançou atualidade social e exige, como nenhuma outra, a consciência hermenêutica, a saber, a tradução de informações científicas relevantes para a linguagem do mundo da vida social.
Ainda que as observações de Habermas reconheçam aspectos da universalidade da hermenêutica filosófica, ele o faz, em contraste, com a pretensão de universalidade da crítica com a qual ele pretende atingir campos onde a hermenêutica filosófica não saberia trabalhar. Não é só por parte de Habermas que se ouvem essas críticas à hermenêutica filosófica, ela também é objeto de crítica da filosofia analítica. Esta vê na historicidade da linguagem e na pré-compreensão como condição de todo- discurso uma falta de recursos para examinar pretensões de validade dos textos que são interpretados ("Tugendhat").
Na medida em que a hermenêutica filosófica trabalha com o sentido, a analítica reduz a linguagem à unidade mínima que é o significado. Mas espíritos mais conciliadores se contentam em afirmar que a hermenêutica sem a filosofia analítica é cega e a filosofia analítica sem a hermenêutica é vazia.
Virada hermenêutica Gadamer nos deu, com sua hermenêutica filosófica, uma lição nova e definitiva: uma coisa é estabelecer uma práxis de interpretação opaca como princípio, e outra coisa bem diferente é inserir a interpretação num contexto - ou de caráter existencial, ou com as características do acontecer da tradição na história do ser - em que interpretar permite ser compreendido progressivamente como uma autocompreensão de quem interpreta. E, de outro lado, a hermenêutica filosófica nos ensina que o ser não pode ser compreendido em sua totalidade, não podendo assim, haver uma pretensão de totalidade da interpretação.
O filósofo produziu realmente uma virada hermenêutica do texto para a auto-compreensão do intérprete que como tal auto-compreensão somente se forma na interpretação, não sendo, portanto, possível descrever o interpretar como produção de um sujeito soberano.
Para encerrar essas considerações, convém ouvir o filósofo falando de sua talvez mais surpreendente afirmação: "Ser que pode ser compreendido é linguagem".
"É assim que sempre me esforcei, de minha parte, para guardar para o espírito o limite imposto a toda experiência hermenêutica do sentido. Quando eu escrevia: 'O ser acessível à compreensão é linguagem', importava ver, nessa fórmula, que o que é não pode jamais ser compreendido em sua totalidade. Em tudo o que uma linguagem desencadeia consigo mesma, ela remete sempre para além do enunciado como tal."
In Mais, caderno especial de Domingo da Folha de São Paulo, 24/03/02.

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