“”"Entrevista com o
sociólogo Zygmunt Bauman, autor do famoso “O mal-estar da pós-modernidade”.
É impressionante a forma
como o sociólogo estabelece conexões entre muitos dos temas que têm baliado
muitas das nossas relações. Valerá a pena rever algumas dessas questões do nosso
tempo.
Como amar em um
mundo assustador?
Há anos o sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, professor emérito da Universidade de Leeds e de Varsóvia,
dedica-se a retratar as desastrosas consequências sociais de uma modernização
que privilegia apenas uma minoria. Prestes a completar 80 anos, o autor dos
best-sellers “O mal-estar da pós-modernidade” e “Amor líquido” está mais activo
do que nunca: dois novos livros estão chegando ao Brasil, ambos pela Jorge Zahar
Editor. Em “Vidas
desperdiçadas”, Bauman faz um prognóstico assustador: o crescimento
incontrolável do “lixo humano”, pessoas descartáveis ou “refugadas”, como
prefere que não puderam ser aproveitadas e reconhecidas numa sociedade cada vez
mais seletiva. O outro lançamento é “Identidade”, uma
entrevista que concedeu ao jornalista italiano Benedetto
Vecchi, em que reforça seus conceitos sobre a crise de identidade
imposta pela modernização.
Em entrevista exclusiva
ao jornal O Globo, 5-11-05, Bauman analisa a fluidez dos
relacionamentos amorosos, compara a vida em sociedade ao “Big Brother”, critica
o combate militar ao terrorismo, comenta o “jeitinho brasileiro” e nega o rótulo
de pessimista: “Acredito fortemente que um mundo alternativo seja possível”, diz
ele.
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No seu livro “Amor líquido” é um sucesso comercial no Brasil. Na sua opinião, por que as pessoas têm se interessado tanto pelo assunto? Por que a idéia de durabilidade das relações amorosas nos assusta tanto?
ZYGMUNT BAUMAN: As relações amorosas
estão hoje entre os dilemas mais penosos com que precisamos nos confrontar e
solucionar. Nestes tempos líquidos, precisamos da ajuda de um companheiro leal,
“até que a morte nos separe”, mais do que em qualquer outra época. Mas qualquer
coisa “até a morte” nos desanima e assusta: não se pode permitir que coisas ou
pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo de vida.
Compromissos de tempo indeterminado ameaçam frustrar e atrapalhar as mudanças
que um futuro desconhecido e imprevisível pode exigir. Mas, sem esse compromisso
e a disposição para o auto-sacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar no
amor verdadeiro. De facto, é uma
contradição sem solução. A esperança ainda que falsa é que a quantidade poderia
compensar a qualidade: se cada relacionamento é frágil, então vamos ter tantos
relacionamentos quanto forem possíveis.
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O senhor está casado com a mesma mulher há 56 anos (a também socióloga Janina). Há segredo para uma união duradoura em tempos de “amor líquido”, em que os parceiros são descartados de acordo com a sua funcionalidade?
BAUMAN: Quanto mais fácil se torna
terminar relacionamentos, menos motivação existe para se negociar ou buscar
vencer as dificuldades que qualquer parceria sofre, ocasionalmente. Afinal,
quando os parceiros se encontram, cada um
traz a sua biografia, que precisa ser conciliada, e não se pode
pensar em conciliação sem fazer concessões e auto-sacrifício. Eu e Janina,
provavelmente, consideramos isso mais aceitável do que a perspectiva de ficarmos
separados um do outro. No fim das contas é uma questão de escolha, do valor que
se dá a estar junto com o parceiro e da força do amor, que torna o
auto-sacrifício em prol do amado algo natural, doce e prazeroso, em vez de
amargo e desanimador.
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A sociedade fragmentada que o senhor apresenta em “Vidas desperdiçadas” não estimula a individualização e o sentimento de medo ao estranho que foram apresentados em “Amor líquido”?
BAUMAN: Claro. Nos comportamos
exactamente como o tipo de sociedade apresentada nos “reality shows”, como por
exemplo, o “Big Brother”. A questão da “realidade”, como insinuam os programas
desse tipo, é que não é preciso fazer algo para “merecer” a exclusão. O que o
“reality show” apresenta é o destino e a exclusão é o destino inevitável. A
questão não é “se”, mas “quem” e “quando”. As pessoas não são excluídas porque
são más, mas porque outros demonstram ser mais espertos na arte de passar por
cima dos outros. Todos são avisados de que não têm capacidade de permanecer
porque existe uma cota de exclusão que precisa ser preenchida. É exactamente
essa familiaridade que desperta o interesse em massa por esse tipo de programa.
Muitos de nós adoptamos e tentamos seguir a mensagem contida no lema do programa
“Survivor”: “não confie em ninguém!” Um slogan como esse não prediz muito bem o
futuro das amizades e parcerias humanas.
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Em “Vidas desperdiçadas” o senhor menciona a questão criada por “imigrantes” em busca de um Estado que os proteja e lhes dê sobrevivência. De que modo os recentes atentados terroristas nos EUA e Europa são uma conseqüência dessa “marginalização” de seres humanos?
BAUMAN: A globalização negativa cumpriu
sua tarefa. As fronteiras que já foram abertas para a livre circulação de
capital, mercadorias e informações não podem ser fechadas para os humanos.
Podemos prever que quando e se os atentados terroristas desaparecerem, isso irá
acontecer apesar da violência brutal das tropas. O terrorismo só vai diminuir e
desaparecer se as raízes sociopolíticas forem eliminadas. E isso vai exigir
muito mais tempo e esforço do que uma série de operações militares punitivas. A
guerra real e capaz de se vencer contra o terrorismo não é conduzida quando as
cidades e vilarejos arruinados do Iraque ou do Afeganistão são devastados, mas
quando as dívidas dos países pobres são canceladas, os mercados ricos são
abertos à produção dos países pobres e quando as 115 milhões de crianças
actualmente sem acesso a nenhuma escola são incluídas em programas de
educação.
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O que o senhor acha da afirmação de alguns acadêmicos que a globalização acabou e que o momento que vivemos agora é de vácuo pós-globalização?
BAUMAN: Não sei o que esses “acadêmicos”
têm em mente. Até agora, a nossa globalização é totalmente negativa. Todas as
sociedades já estão abertas. Não há mais abrigos seguros para se esconder. A
“globalização negativa” cumpriu seu papel, mas sua contrapartida “positiva” nem
começou a actuar. Esta é a tarefa mais importante em que o nosso século terá que
se empenhar. Espero que um dia seja cumprida. É questão de vida ou morte da
Humanidade!
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O que será preciso acontecer para que nossa sociedade se dê conta da armadilha que caiu em busca da suposta “modernidade”?
BAUMAN: A civilização moderna não tem
tempo nem vontade de reflectir sobre a escuridão no fim do túnel. Ela está
ocupada resolvendo sucessivos problemas, e principalmente os trazidos pela
última ou penúltima tentativa de resolvê-los. O modo com que lidamos com
desastres segue a regra de trancar a porta do estábulo quando o cavalo já fugiu
e provavelmente já correu para bem longe para ser pego. E o espírito inquieto da
modernização garante que haja um número crescente de portas de estábulos que
precisam ser trancadas. Ocasiões chocantes como o 11 de Setembro, o tsunami na
Ásia, (o furacão) Katrina, deveriam ter servido para nos acordar e fazer agir
com sobriedade. Chamar o que aconteceu em Nova Orleans e redondezas de “colapso
da lei e ordem” é simplista. Lei e ordem desapareceram como se nunca tivessem
existido.
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O senhor aponta uma “crise aguda da indústria de remoção de refugo humano”. É possível criar mecanismos de inclusão dos seres humanos “excessivos” e “redundantes”? A modernização implica, necessariamente, uma “lixeira humana”?
BAUMAN: Esse excesso de população precisa
ser ajudado a retornar ao convívio social assim que possível. Eles são o
“exército reserva da mão-de-obra” e lhes deve ser permitido que voltem à vida
activa na primeira oportunidade. Os “redundantes” são obrigados a conviver com o
resto da sociedade, o que é legitimado pela capacidade de trabalho e consumo. Em
vez de permanecer, como era visto anteriormente, como um problema de uma parte
separada da população, a designação de “lixo” torna-se a perspectiva potencial
de todos. Há partes do mundo que se confrontaram com o antes desconhecido
fenômeno de “população sobrando”. Os países subdesenvolvidos não se disporiam,
como no passado, a receber as sobras de outros povos e nem podem ser forçados a
aceitar isso.
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Países como Brasil, Índia e China são constantemente apontados como estratégicos para o século XXI. Ao mesmo tempo, são três países com grande número de “lixo humano”, com alto índice de desemprego. Isso não é uma contradição?
BAUMAN: Certamente. Isso fica ainda pior
quando os gigantes do século XXI, China, Índia, Brasil, entram no “processo de
modernização”. O número de “pessoas desnecessárias” crescerá. E aí há o grande
problema que mais cedo ou mais tarde teremos que enfrentar: capacitar ou não
China, Índia e Brasil a imitar o modelo de “bem-estar” adotado nos Estados
Unidos em uma época em que “modernização” ainda era um privilégio de poucos?
Para dar vazão, seriam necessários três planetas, mas nós só temos um para
dividir.
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Um dos mais importantes compositores brasileiros, Chico Buarque de Holanda, afirmou que “uma nação grande e forte é perigosa, mas que uma nação grande, forte e ignorante é ainda mais perigosa”. Ter uma nação grande, forte e ignorante no comando do mundo como parecem ser os Estados Unidos da Era Bush não pode acirrar ainda mais o “refugo” dos seres humanos?
BAUMAN: Lamento não conhecer Chico
Buarque: ele toca no cerne da questão. Até onde vai a situação de nosso planeta
com um único superpoder, confundido e subjugado pela ilusão de sua repentina
ilimitada liberdade? A elevação súbita dos Estados Unidos à posição de
superpotência absoluta e uma incontestada hegemonia mundial pegou líderes
políticos americanos e formadores de opinião desprevenidos. É muito cedo para
declarar a natureza deste novo império e generalizar seu impacto no planeta. Seu
comportamento é, possivelmente, o fator mais importante da incerteza definida
como “Nova Desordem Mundial”. Um império estabelecido pela guerra tem que se
manter por guerras. Acabamos de ver isso no Iraque, apesar de todos saberem que
era óbvio que bombardear e invadir o país não aniquilaria o
terrorismo.
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No Brasil, temos uma expressão muito popular, “jeitinho brasileiro”, que representa a capacidade do povo de superar adversidades, sejam elas pequenos problemas do cotidiano ou não. O senhor acredita que há nações com seres “redundantes” que saibam sobreviver melhor do que outros?
BAUMAN: O que vocês chamam de “jeitinho
brasileiro” é a maneira que a modernização nos obrigou a reagir. Um dos
resultados cruciais da modernização é a dependência dos processos da vida humana
pelos “jeitinhos”. Isso implica o outro lado da mesma moeda: a vulnerabilidade
crescente dos legítimos modos instruídos de viver.
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Aos 80 anos, sua produção intelectual ainda é grande. O que o motiva a continuar escrevendo?
BAUMAN: Pierre Bourdieu ressaltou que o
número de personalidades do cenário político que podem compreender e articular
expectativas e demandas está encolhendo. Precisamos aumentá-lo, e isso só pode
ser feito apresentando problemas e necessidades. O próximo século pode ser o da
catástrofe final ou um período no qual um novo acordo entre os intelectuais e as
pessoas que representam a Humanidade seja negociado e trazido à tona. Vamos
esperar que a escolha entre estes dois futuros ainda seja nossa.
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Todas suas obras apresentam um cenário bastante pessimista do mundo. Temos razão para acreditar em dias melhores?
BAUMAN: Rejeito enfaticamente essa
afirmação. Optimistas são pessoas que insistem que o mundo que temos é o melhor
possível; os pessimistas são os que suspeitam que os optimistas podem ter razão.
Portanto eu não sou nem optimista nem pessimista, porque acredito fortemente que
outro mundo, alternativo e quem sabe melhor, seja possível. Acredito que os
seres humanos sejam capazes de tornar real essa
possibilidade.
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