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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

LUCIEN GOLDMANN - Um importante filósofo hoje esquecido

Estudos Avançados

Print version ISSN 0103-4014

Estud. av. vol.19 no.54 São Paulo May/Aug. 2005

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142005000200022 

HISTÓRIA CULTURAL

A sociologia da literatura de Lucien Goldmann


Celso Frederico



RESUMO
OS ESTUDOS literários de Lucien Goldmann conheceram duas fases distintas. Na primeira, apoiando-se principalmente nas contribuições do jovem Lukács (A alma e as formas e Teoria do romance), Goldmann buscou estabelecer uma homologia entre a forma romanesca e a vida social e, ainda, recorrendo à História e consciência de classe, procurou dar um tratamento historicista e dialético àqueles textos juvenis do pensador húngaro, ao interpretar a literatura como expressão articulada das "visões do mundo" das diversas classes e grupos sociais. Numa segunda fase, marcada pelo pessimismo e pela influência das idéias estruturalistas, então em voga, os ensaios goldmannianos afastaram-se da busca de mediações entre a obra e a vida social. Surpreendido pelo vendaval de 1968, Goldmann empreendeu um movimento autocrítico, interrompido pela morte prematura em 1970.
Palavras-chave: Literatura; marxismo; estruturalismo; sociologia do romance.

ABSTRACT
LUCIEN Goldmann's literary studies fall into two distinct phases. In the first, relying mainly on contributions of the young Lukács (Soul and form and The theory of the novel), Goldmann sought to establish a homology between the novelistic form and social life. Moreover, falling back on History and class-consciousness, he sought to give a historicist and dialectical treatment to the youthful texts of the Hungarian thinker by interpreting literature as an articulate expression of the "views of the world" held by various classes and social groups. In the second phase, marked by pessimism and the influence of structuralist ideas, then in vogue, Goldmann's essays ceased to seek mediations between the written work and social life. Taken by surprise by the maelstrom of 1968, Goldmann engaged himself in a self-critical movement, interrupted by his premature death in 1970.
Key-words: Literature; marxism; structuralism; sociology of the novel.



OS ESTUDOS LITERÁRIOS representam um momento importante na produção goldmanniana. As contribuições do autor para a sociologia da literatura são inegáveis e seus numerosos estudos particulares permanecem uma referência viva para os especialistas. Justamente nesse núcleo central da obra goldmanniana as questões metodológicas alçam o primeiro plano1.
O materialismo histórico ou o estruturalismo-genético (expressão que substitui a primeira nos textos da década de 1960) é considerado um "método geral" válido para todas as ciências humanas. A criação cultural e, especialmente, a literária, constitui um campo privilegiado de aplicação daquela metodologia.
Goldmann considera uma característica universal do comportamento humano a tendência à coerência. Os homens, perante os desafios colocados pela realidade exterior, procuram agir no sentido de interferir nos acontecimentos através de respostas às questões com que deparam. Esse empenho para adaptar-se à realidade segundo as conveniências humanas faz com que os indivíduos tendam a fazer de seu comportamento uma "estrutura significativa e coerente". Tal estrutura não é um dado atemporal, como no estruturalismo formalista. Há um processo prévio de elaboração, de gestação, de gênese das estruturas significativas. Além disso, a ação do homem modificando cotidianamente a realidade resulta em um processo contínuo de desestruturação das antigas estruturas e criação de novas. Com isso, o caráter significativo do comportamento humano, sua tendência natural à coerência, não é uma adequação mecânica às estruturas fixas, como pretendem os estruturalistas não-genéticos.
Por outro lado, a formação das estruturas significativas não deve ser considerada uma façanha individual. Elas, ao contrário, são o resultado complexo de um esforço coletivo, da ação das classes e grupos sociais que se constituem num processo amplo de relacionamento com o mundo, de adaptação e de respostas aos desafios da vida social.
A tendência à coerência e o caráter coletivo da elaboração das estruturas significativas já anunciam o caminho por onde irá trilhar a sociologia da literatura de Goldmann: as idéias piagetianas sobre a "assimilação" e "acomodação" do indivíduo ao meio social. Piaget desenvolveu uma elaborada teoria sobre a "natureza adaptativa da inteligência". Segundo esse autor, o indivíduo, desde a infância, constrói suas estruturas mentais por meio da interação com o grupo social, num processo ininterrupto de acomodação e assimilação que conhece diversas fases, durante as quais ele assimila novas estruturas de percepção. Goldmann retoma o processo de construção das estruturas cognitivas para aplicálo às relações entre o autor e o grupo social. Aquele interage com o grupo social e procura responder às suas expectativas: a criação artística surge como uma resposta significativa e articulada, como expressão das possibilidades objetivas presentes no grupo social. Essa resposta significativa, segundo observou Sami Naïr,
funda o autor enquanto mediação constitutiva através da qual a consciência possível de um grupo se encarna de maneira coerente na obra literária. Inversamente, essa mediação constitutiva é o meio pelo qual o sujeito individual, imediatamente criador, entra em acomodação, em equilíbrio e assimila, sempre em sentido piagetiano, as categorias mentais possíveis do grupo, sujeito transindividual. Não há, portanto, homologia entre a estrutura biográfica ou sociológica do autor e aquela do grupo, mas entre as estruturas mentais categoriais da obra enquanto virtualidade daquelas do grupo2.
A aplicação do materialismo histórico no estudo da criação cultural em geral e da literatura em especial afirma a existência, nesses domínios, de uma coerência levada ao extremo que "se aproxima de um fim para o qual tendem todos os membros de um grupo social"3.
O ponto de partida de nosso autor é o Lukács de A alma e as formas e A teoria do romance. Essas obras, segundo Goldmann, marcam uma ruptura nos estudos de sociologia da literatura. Até então, os estudiosos consideravam a obra literária como um reflexo da realidade social, limitando-se a procurar uma correlação entre a obra e o conteúdo da consciência coletiva. Esse procedimento só é válido para as obras menores, aquelas que reproduzem a realidade social nos moldes do naturalismo, com exatidão de detalhes e pretensões de completa objetividade, mas cujo valor é meramente documental. Para as verdadeiras obras-primas, entretanto, em que a imaginação criadora dá altos vôos, esse método reducionista tem pouco a dizer.
O jovem Lukács subverteu essa perspectiva ao buscar uma nova correlação entre literatura e sociedade. Tal correlação não se dá mais no plano do conteúdo, mas da forma, da correspondência entre as categorias que estruturam a criação literária e a consciência coletiva. Essas categorias caracterizam-se basicamente por suacoerência, compreendida ainda de modo metafísico e a-histórico pelo Lukács de A alma e as formas. Goldmann submete a forma a um tratamento historicista, aprofundando, nessa direção, as análises que já apareciam de modo incipiente em A teoria do romance.
A historicização da forma levou-o a substituir a vaga consciência coletiva por um novo sujeito, formado pelas condições históricas e sociais. Mas o sujeito, nas ciências humanas em geral, não deve ser concebido em rígida oposição ao objeto, como ocorre nas ciências naturais. O sujeito que observa a sociedade e reflete sobre ela, seja o cientista social ou o artista, faz parte dessa mesma sociedade. A reflexão, portanto, "não se faz do exterior, mas do interior da sociedade". Por outro lado, a reflexão "é em grande medida organizada pelas categorias da sociedade", e o objeto estudado "é um elemento constitutivo, e mesmo um dos mais importantes, da estrutura do pensamento"4.
Quem é esse sujeito socialmente constituído cuja consciência é organizada pelas categorias da sociedade? Antes de ensaiar uma resposta, Goldmann procurou contrapor sua sociologia da literatura à psicanálise freudiana. Inicialmente, um elemento comum parece aproximar as duas disciplinas: ambas consideram o comportamento humano como dotado de um "fragmento de sentido" que se esclarece quando integrado no conjunto do qual faz parte. O comportamento, quando conectado a uma estrutura englobante, revelase significativo. Essa estrutura, por sua vez, não é invariável: ela formou-se geneticamente e está em permanente mudança. Esses pontos coincidentes permitem que a sociologia goldmanniana e a psicanálise freudiana possam ser consideradas como pertencentes ao estruturalismo-genético.
As semelhanças, entretanto, param aí. O que separa as duas disciplinas é a questão do sujeito. A psicanálise, assim, como o cartesianismo, a fenomenologia e o empirismo, ficou restrita ao sujeito individual. Na psicanálise, esse sujeito é determinado pela biologia. Concebido, dessa forma, o sujeito vê a sociedade como um meio e os demais indivíduos como objetos, objetos de frustração, satisfação dos desejos ou obstáculos a eles.
Contra o culto do indivíduo, Goldmann elege como sujeito uma coletividade - o sujeito transindividual. Um exemplo recorrente através do qual Goldmann explica esse sujeito coletivo é a ação exercida por três indivíduos que carregam um piano. Quem é o sujeito da ação? Certamente, nenhum deles considerados separadamente e sim a realidade nova criada pela ação conjugada em que cada um dos participantes é parte integrante do verdadeiro sujeito da ação. Estamos aí perante um conjunto, perante relações intrasubjetivas que envolvem os participantes e que os transcendem. A participação consciente do indivíduo, sua imersão na atividade comum, distingue a concepção goldmanniana da "consciência coletiva" de Durkheim - um consciência exterior aos indivíduos e que se volta contra eles para integrálos coercitivamente nas engrenagens sociais.
O exemplo dos três homens que carregam o piano é ilustrativo da existência de um sujeito coletivo, e isso vale para todo pensamento e ação social e cultural. O estudo da literatura não deve, por isso, restringir-se às relações entre o escritor e a obra, pois, se assim fizer, a análise fornecerá apenas uma imagem da "unidade interna da obra", mas não "uma relação do mesmo tipo entre essa obra e o homem que a criou". O que se pode saber da estrutura psíquica de um autor morto há tanto tempo? A análise sociológica, contrariamente, consegue "destrinçar os elos necessários, vinculando-os a unidades coletivas cuja estruturação é muito mais fácil de apurar e elucidar"5.
A ênfase na singularidade do escritor cede lugar ao estudo sociológico, estrutural e genético, cuja "hipótese fundamental" pressupõe que "o caráter coletivo da criação literária provém do fato de as estruturas do universo da obra serem homólogas às estruturas mentais de certos grupos sociais"6. Os grupos estruturam na consciência de seus membros uma "resposta coerente" para as questões colocadas pelo mundo circundante. Essa coerência (ou visão do mundo) é elaborada pelo grupo social e atinge o máximo de articulação através da atividade imaginativa do escritor. A obra, assim, permite ao grupo entender mais claramente suas próprias idéias, pensamentos, sentimentos. Esta é a função da arte: favorecer a "tomada de consciência" do grupo social, explicitar num grau extremo a "estrutura significativa" que o próprio grupo elaborou de forma rudimentar para orientar o seu comportamento e a sua consciência.
Percebe-se aqui a diferença entre a abordagem psicanalítica da criação artística e a sociologia de Goldmann. Na interpretação de Freud, a criação artística é sublimação, é o resultado de um processo inconsciente que visa a compensar as frustrações libidinais do indivíduo fazendo aflorar aquilo que a consciência havia recalcado. Para Goldmann, contrariamente, a criação cultural é movida pela aspiração a um máximo de coerência, a um máximo deconsciência possível. Essa intencionalidade não é a vingança do recalcado contra as censuras impostas pela consciência, mas o trabalho da própria consciência em busca do esclarecimento. A aspiração à coerência projeta um mais-além, uma antecipação da consciência em relação à imediatez. A perspectiva de futuro como dado integrante da vida social não existe para a psicanálise, prisioneira da eterna viagem ao passado, onde repousariam os segredos recalcados do homem. O passado explica o presente, e o futuro é uma dimensão inexistente. Goldmann diversas vezes repetiu que a única vez que Freud se referiu ao futuro foi ao nomear uma de suas obras de O futuro de uma ilusão, mostrando, assim, que "essa ilusão não tem futuro"...
A coerência perseguida pelo artista e tomada pelo jovem Lukács e por Goldmann como critério para se avaliar a criação literária, remete a uma concepção de arte originária de Kant:
a definição da obra válida como tensão ultrapassada, num plano não conceitual, entre a extrema unidade e extrema riqueza, entre de uma parte a multiplicidade de um universo imaginário complexo e, de outra parte, a unidade e o rigor da criação estruturada7.
Goldmann aceita essa conceituação, porém com a retificação trazida por Hegel e pelo marxismo que vêem a unidade como decorrência de fatores sociais e históricos, e não algo atemporal. O estruturalismo genético, abre, assim, o caminho para se estudar a correspondência entre a unidade expressa pela criação cultural e a evolução da estrutura de uma determinada sociedade, a unidade entre as estruturas mentais ou categorias que organizam a consciência empírica dos grupos sociais e o universo imaginário criado pelo artista. Importante ressaltar aqui o papel de mediação atribuído às visões de mundo das classes sociais: são elas que se interpõem entre a vida econômica da sociedade e as criações culturais.
O objetivo de uma sociologia da literatura é, portanto, a busca das homologias, o estudo das estruturas significativas presentes nos grupos sociais - o substrato social que confere unidade à obra literária. O projeto de Goldmann procura transpor para a literatura dois movimentos: o estudo da compreensão, isto é, da estrutura significativa imanente da obra e a explicação, a "inserção dessa estrutura, enquanto elemento constitutivo e funcional, numa estrutura imediatamente englobante [para] tornar inteligível a gênese da obra que se estuda"8.
Os textos goldmannianos, contudo, concentraram-se quase que exclusivamente no segundo momento. A busca da gênese das condições sociais que tornaram possível a obra de arte, o momento da explicação, consumiu a atenção de nosso autor. Suas incursões na vida literária e cultural procuraram oferecer um mapeamento das visões do mundo e dos grupos sociais que as estruturaram.
Goldmann objetivava realizar uma tipificação sistemática das visões do mundo, tarefa que requereria a contribuição de muitos pesquisadores. Sua militância no magistério levou-o a incentivar estudos coletivos e interdisciplinares nessa direção.

(Ver continuação no site)

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