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sexta-feira, 20 de junho de 2014

A UTOPIA

Dez teses sobre a Utopia

Nozes Pires

1.        O nome de Utopia deriva, como é sabido, do título da obra ( 1515) de Thomas More, chanceler de Henrique VIII, cujo subtítulo é esclarecedor: “ Discurso de um homem eminente, Rafael Hitlodeu, sobre a melhor forma de comunidade política “- DE OPTIMO REIPUBLICAE  STATU HABUIT-“.
Originariamente foi o projecto de um Elogio da Sabedoria (Sophia), resposta e complemento da obra do seu amigo Erasmo : “Elogio da Loucura” ( Moria), 1509, dedicada a More com alguma ironia. Se  pretender-se compreender devidamente esta obra, no seu estilo, ideias e propósitos, dever-se-á interligar as duas obras e os dois autores. É devedora do modelo clássico imortalizado por Platão, A República, mas nada há ali que seja repetição ou cópia; aliás, não se deve ignorar que More foi um excelente leitor de S. Agostinho, o autor de A Cidade de Deus ( obra que considero milenarista, mas que não me repugna de modo algum colocar entre as utopias de pendor profético e escatológico do Ocidente europeu). A Utopia , de T. More ( ou Morus) é claramente um objecto típico do Renascimento, tanto na estrutura, como na tese principal que atribui aos homens a possibilidade, e o dever, de transformar a vida e a sociedade, aqui, na Terra. A sua ironia e uma forte pitada de cepticismo - que chamaríamos realismo - (  Amaurota, a capital, Cidade do Nevoeiro, localiza-se na margem do rio Anidro, o rio sem água, o Estado é governado por um príncipe sem povo, o país, habitado por cidadãos sem cidade, os seus vizinhos são os homens sem país ) em lugar de contrariarem a convicção humanista de More, dão-lhe uma tonalidade realista, racionalista, bem representativa dos melhores espíritos renascentistas. Esta capacidade inventiva e estilística para, por meio da ironia, permitir que o autor e o leitor se distanciem e, simultâneamente, se  interessem, como um desafio e uma refutação, que eu apelido de ingrediente superior da racionalidade, nem sempre perdurou em todas as utopias escritas posteriores, mesmo aquelas que quase a copiam. À obra magistral subjaz , assim, sempre esta interrogação : E se fosse assim? Vamos fazer de conta que sim, que tanto é possível imaginá-la como realizá-la, ou ainda melhor : que imaginá-la é já realizá-la. Quais seriam, então, os seus contornos e os seus efeitos? O valor e o método das utopias radica aqui. E a sua inevitabilidade.

2.        O  termo utopia é formado a partir de dois nomes gregos: ouk (abreviado em ou diante de uma consoante), que significa “não”, e que se tornou u e topos, que quer dizer “lugar”. Utopia é, por conseguinte, um neologismo, nem grego nem latino, que, até por isso mesmo, exprime magnificamente o sentido de “algures” que percorre toda a obra. Todavia, repare-se que este “ País de Parte Nenhuma” não equivale a “um país qualquer” mas, pelo contrário, sugere a construção do País da felicidade geral, da República óptima, e foi este significado que permaneceu até aos nossos dias. Contudo, desde logo importa porventura distinguir, embora não opor, dois géneros literários ( e eidéticos) que correm o risco de se confundir: A Abadia de Thélème, de Rabelais ( episódio do Pantagruel), que descreve uma terra de Cocagne ( em francês, “massa de bolo”) , onde o princípio que reina é “Faz o que quiseres”, por um lado e, por outro, o projecto detalhado, exposto com seriedade credível, da Utopia republicana. Certamente que a primeira ficção retoma a mesma antiquíssima metáfora utopista do ” rio do leite e do mel”, a ilha, as águas, as fontes por onde jorrará a abundância em suma ( tanto na perspectiva do Imaginário em geral, como da literatura, a recorrência de metáforas tece a continuidade) e exprime, a seu modo, a mesma aspiração à liberdade plena de todos em igualdade, se não absoluta pelo menos mutíssimo maior do que aquela que efectivamente reina ; porém, a construção é diferente ( provavelmente diferentes também os propósitos), e isso verifica-se desde  A República, de Platão, que se distingue dos cantos báquicos e dos mitos e se distingue também de A Cidade das Aves, comédia de Aristófanes. Alguns traços fortes das utopias tipificadas ajudarão a distinguir estas duas modalidades tão próximas, como nos permitirão articular mas não identificar, Uma História Verídica, de Luciano, ou Uma Viagem à Lua, de Cyrano, ou mesmo As Viagens de Gulliver, de Swift, por um lado, e A Utopia, de More, A Cidade do Sol, de Campanella, A Nova Atlândida, de Bacon, e por aí adiante. O estilo satírico e até burlesco, a comédia em suma, não é utilizado pelos mais famosos utopistas ocidentais da Era Moderna (  Rousseau, Morelly, Mably, Deschamps, Mercier, Babeuf, Fourier, Saint-Simon, Owen, Blanqui, Cabet, Weitling, L. Blanc, Lamennais, Proudhon, Bakunine, Bellamy, W. Morris).
Não é estulto, nem abusivo, estabelecer um paralelo entre u-topos e o termo topos empregue por Aristóteles como lugar do discurso. Neste caso, dir-se-á que o não-lugar (u-topos) seria um género de não-discurso, talvez  melhor : de meta-discurso; tanto uma forma de discurso que não é comum e usual ( estranho, insólito) como um dircurso-outro, paradoxal, contraditório ao comum, que se lhe opõe e o ultrapassa, que não respeita ( não parece respeitar- daí a ironia) a lógica, sobretudo os juízos de experiência ; pelo qual a essência se realiza pela força da possibilidade lógica ( e não se reduz à mera probabilidade que caracteriza o discurso retórico). Topologia diferente, alternativa, inventiva, imaginativa, discurso do desejo e do possível. Tal como era possível, ao tempo de Morus, descobrir novos mundos. Para alguns autores, utopia significa um lugar no Novo Mundo ( terra de todos os possíveis, virgem); para mim, julgo que, não eliminando essa influência, significa transportar para o Velho Mundo aquilo mesmo que o Novo Mundo parecia demonstrar : que os homens podem ser felizes porque são capazes de mudar as suas relações sociais, que não são eternas e “naturais”; a ilha da Utopia mostra que a felicidade radica no acordo com a natureza, tanto a natureza humana como a  demais. Creio que estas ideias as encontramos em todas as utopias, desde as mais antigas às mais modernas. É de reter, portanto, estes dois aspectos : primeiro - uma certa atitude idealista que acredita que a força e a estrutura do pensamento introduz realidade no real ( a essência identifica-se com a realidade); segundo- a crença racional de que existe um “fundo” nas coisas que as predispõe para um acordo, equivalente a uma determinada finalidade ( as utopias são avessas à casualidade, à contingência, ao acidente). Mas estes traços não são permanentes.

3.        No interior das utopias, há ainda uma outra distinção a efectuar: entre a utopia ( classificada também como eutopia- terra da felicidade) e a distopia ( situação anómala de qualquer coisa determinada), sendo que esta descreve , principalmente, a negatividade do que se observa, é uma crítica negativa, com tons, por vezes, negros, sombrios, sem saída esperançosa, uma espécie de cul-de-sac pessimista; esta orientação deu corpo no nosso século às anti-utopias ,  que enunciam e anunciam todas as desgraças contidas no bojo de determinadas doutrinas políticas (G. Orwell, Huxley, Zamiatine, Karel Kapek) ; não é difícil discernir, no plano do romance, a orientação positivamente utópica de A Nebulosa de Andrómeda, de Iván Efrémov, da intenção absolutamente adversária veiculada pela obra célebre de Orwell, separadas por um punhado apenas de anos. As anti-utopias possuem a sua história que entronca, no plano filosófico, num determinado cepticismo ( ao qual a tradição empirista anglo-saxónica não é alheia) ou até pessimismo ( alimentado pelas experiências realizadas) e, no plano da crítica, no confronto dialógico de ideias e soluções. Orientam-se deliberadamente contra um determinado tipo de pensamento, ao qual muitas vezes, e não é por acaso, acusam de meros sonhos, quimeras simplistas, “utopias” ( o positivismo é responsável em grande parte por este desdém). A crítica mordaz, por vezes caricatural, ao “estado de natureza” ( ao “bom selvagem”) de Rousseau e outros ( celebrizada por ele mas não sua invenção exclusiva) , no século dezoito, por círculos iluministas (uma das críticas mais contundentes viria até de um utopista, Dom Deschamps, que professava ele próprio uma nostalgia ruralista), insere-se neste quadro evolutivo da Razão. Contudo, já o democrata grego Aristófanes satirizava impiedosamente determinadas utopias filosóficas ( que veiculavam programas políticos adversários); o próprio Platão forja a sua República, conforme as faculdades naturais, contra a “utopia” democrática; Luciano de Samotrácia constrói diálogos perfeitamente absurdos entre os “filósofos” do seu tempo e a sua crítica dos mitos e utopias assume aspectos verdadeiramente alucinantes; S. Agostinho esforça-se por demarcar-se do maniqueísmo e do milenarismo; Cyrano de Bergerac , em L’Autre Monde, ridiculariza a ignorância dos poderosos e, brincando às utopias, não permite que dos mundos efabulados ( que tanto enaltecem o valor da imaginação barroca, como , pelo seu excesso de absurdo, impossibilitam, desde logo, a sua existência) se extraia uma alternativa coerente e sistemática; Dom Deschamps exclui liminarmente todas as “quimeras” que não são mais do que produtos dessa literatura e dessa cultura que ele deseja erradicar da sua sociedade sem classes de simples camponeses; Saint-Simon e Fourier mostram-se acérrimos adversários das outras utopias classificadas como charlatanices ( devolvendo este a acusação que lhe fazem de lunático); quanto a Marx e Engels são conhecidas as suas refutações dos “esquemas utópicos”, embora Marx houvesse tido uma sincera admiração por Saint-Simon, Owen e Weitling. No nosso século não se registou apenas a anti-utopia ( e a distopia), ao contrário do que por vezes se lê : o traço característico é até precisamente o predomínio da utopia ; o que sucedeu, porém, é que esta utopia ( comunista, socialista) foi combatida e é, por isso, que emerge a violenta denúncia de Georges Orwell; para os adversários do “comunismo” a utopia realizada, ou em marcha, encerrava todos os perigos e a utopia passou a ser sinónimo de “totalitarismo”. Curioso é verificar que A. Huxley, cujo “ Admirável Mundo Novo” se dirige contra o behaviourismo ( doutrina comportamentalista que triunfava na psicologia americana), imagina, ele próprio, uma admirável sociedade feliz em perigo de extinção ( “ A Ilha”).

4.        O livro de Platão, A República, é ainda uma obra de referência para diversos assuntos, desde o que é a filosofia e a que se dedica o filósofo até aos modos como devemos ( ou, pelo menos, podemos) imaginar uma sociedade governada pelo princípio da Justiça. O modelo da dedução lógica tem sido sucessivamente percorrido até aos nossos dias ( com este ou aquele apriorismo) , onde o vemos aplicado a jogos e dispondo de amplas possibilidades nos sistemas de informação. A ele soma-se, em Platão, a tese tão recorrente na filosofia, segundo a qual o que importa é formular um princípio claro, rigoroso e fundamental ( Descartes, Espinosa, Leibniz). O Princípio da Justiça, por exemplo. Vemos isto recentemente adoptado nas obras de John Rawls ( Uma Teoria sobre a Justiça). Na verdade, o pensador social que, em nossa opinião, melhor utilizou esta rica herança platonista, foi Proudhon. Neste “o progresso da humanidade é pois essencialmente um facto de ordem moral”, como escreveu o nosso Antero, segundo a sua convicção e a de Proudhon, seu mestre principal. O mesmo que redigiu o quarto dos manifestos socialistas , De la capacité politique des classes ouvrières, sendo o primeiro o “Manifesto dos Iguais” de Babeuf, o segundo o de Considérant, discípulo de Fourier, e o terceiro o “Manifesto comunista” de Marx e Engels. Como é sabido, a doutrina de Proudhon ( já formada em grande parte antes do “Manifesto comunista”) opôs-se ao pensamento político de Marx, muito embora este haja nutrido pelo genial tipógrafo autodidacta, mais velho dez anos, uma forte e especial admiração. Em 1846, cerca de seis meses antes de começar o escrito polémico contra Proudhon ( “Miséria da Filosofia”), ainda Marx convidava-o para uma “troca de ideias” pois “quanto à França, nós todos acreditamos que não podemos encontrar aí um melhor correspondente que vós” (1) e em 1844 passou com ele a discutirem muitos serões ( três meses depois, Proudhon escreve isto numa carta : “ Lorsque les contradictions de la communauté et de la démocratie, une fois dévoilées, seront allées rejoindre les utopies de Saint-Simon et de Fourier, le socialisme élévé à la hauteur d’une science, le socialisme, qui n’est autre que l’Économie politique, s’emparera de la société et la lancera vers ses destinées ultérieures avec une force irrésistible...Le socialisme n’a pas encore conscience de lui-même; aujourd’hui il s’apelle communisme” (2).

5.        A grande novidade que existe entre os modelos à Platão, deduzir a realidade a partir da essência ( ideia ou conceito), que nos remete para a trave mestra das metafísicas ( que culmina em Hegel, apesar de todas as modificações substanciais que este opera no método) e as utopias modernas ( que se seguem à de Morus ), encontra-se, a nosso ver, em dois aspectos : a ideia de igualdade ( que em Platão não é admitida para todos segundo a sua perspectiva de divisão do trabalho de acordo com a “natureza” ou as castas) e o esforço do projecto, isto é atender às condições da sua aplicação,  experimentação e prever os seus efeitos. Se sobre o primeiro aspecto não rareiam os bons estudos ( dos investigadores da ex-URSS, por exemplo), a segunda orientação nem sempre é evocada quando se ataca a utopia social como se ela fosse fatalmente um mero projecto teórico desprezando a acção. Este segundo aspecto não escapou à análise de Marx e Engels, que não regateavam elogios ao filantrópico homem de acção, ao seu talento de organizador, R. Owen, e viam em Proudhon, talvez por essa razão, um perigo nocivo ao trabalho político com as massas operárias ( conhecemos a grande influência dos proudhonianos na península ibérica).

6.         A diferença que nos parece fundamental entre Marx e outras utopias socialistas ( caso de Proudhon e Kropotkine) reside nisto: o socialismo constitui a etapa preparatória que visa atingir o comunismo, sendo que nessa etapa as tarefas decisivas são a tomada do poder ( pela Revolução) e a construção de um Estado centralizado. Não é a ideia, o projecto, de comunidade, e comunas, que os divide irremediavelmente, (neste sentido amplo não é o comunismo, se não atribuirmos a esta noção o património exclusivo pelo ideário marxista), mas talvez aquilo que Kropotkine declara nestas palavras : o desenvolvimento mais completo da individualidade deve “ combinar-se com o mais elevado desenvolvimento da associação voluntária sob todos os aspectos, em todos os graus possíveis, por todos os fins imagináveis: associação sempre modificável, transportando nela mesma os elementos da sua duração e revestindo as formas que, a cada momento, respondem pelo melhor às aspirações múltiplas de todos"”(3). "Utopicamente" dir-se-á, os projectos anarquistas ( que se dizem, por isso mesmo, "libertários") desejam instituir a liberdade ( de cada um na igualdade de todos) desde o início do processo, sem “constrangimentos do Estado centralizador”, enquanto que os propósitos de Marx e Engels apontam sem “utopias” para a organização da classe operária e seus aliados num Estado dirigido pela primeira , capaz de se defender e realizar as reformas revolucionárias. Acusa-se Marx de, deste modo, adiar para um futuro longínquo as metas que, em teoria pelo menos, exprimem um acordo de vários movimentos revolucionários, entrando mesmo em contradição nos termos. Por consequência, devolve-se a Marx a acusação que ele faz aos outros : uma mera utopia. Evitemos, desde já, formular juízos de valor a favor ou contra, para que assim seja possível reabrir-se um debate que nos parece oportuno, agora que terminou a experiência  nos países do Leste, nos moldes em que a conhecemos. E reservamos para outra ocasião a interrogação seguinte : na ex-URSS governou o socialismo utópico? Científico? ou a acumulação e apropriação do Capital pelo estilo autoritário expedito e pela vocação nacionalista de grande potência?

7.        O ponto de vista de Ernst Bloch é, julgamos, conhecido ( “O Princípio Esperança”). Este importante pensador alemão, que experimentou a edificação de um regime socialista, legou-nos uma  larga e profunda meditação sobre o fenómeno cultural multifacetado ( psicológico, sociológico, filosófico) que radica nas “imagens-desejo”. A Esperança é, dir-se-ia, um princípio vital e ontológico da espécie social que somos. Tão resistente e latente, que “ a impostura é obrigada ele própria, para se ser eficaz, a recorrer à esperança” (4). É da natureza mesma do homem pronunciar-se somente a partir do futuro: “ a esperança mentirosa é uma das maiores malfeitoras, uma das mais debilitantes que a espécie humana conhece; a esperança concreta e autêntica é a sua benfeitora mais séria” (5). Que significa, então, a esperança concreta? Significa orientar a filosofia para o futuro, para aquilo que ainda não é ( coisa rara nos filósofos até Hegel inclusive). A esperança com o seu correlato positivo: a determinidade da existência não conduzida até ao seu termo, para além de toda res finita. (6). “ A filosofia há-de possuir a consciência do amanhã, o parti pris do futuro, o saber da esperança, ou ela não possuirá saber algum” (7). “ Le thème fondamental de la philosophie qui est et demeure en devenant, c’est le Foyer ( die Heimat) non encore denenu, le lieu de l’identité avec soi-même et avec les choses ( Der Ort der Identität mit sich selbst und den Dingen), non encore réussi et tel qu’il prend forme, qu’il s’édifie dans la lutte dialectique-matérialiste du Nouveau et de l’Ancien” (8). No termo de páginas inolvidáveis sobre o pensamento dialéctico e práxico de Marx, Ernst Bloch escreve : ” c’est de lui que date l’unité de l’espérance et de la connaissance du processus, bref, le réalisme (...) le rêve consistant se rallie activement à ce qui est historiquement arrivé à échéance et dont l’avènement est plus ou moins entravé (...) le monde entier est parcouru par la grande idée d’une chose et par l’intention tendue vers le non-encore-advenu : l’utopie concrète est la théorie-praxis la plus importante de cette tendance” (9).

8.        O filósofo francês, Michel Vadée, numa obra excelente obra ( “ Marx, Penseur du Possible “) termina-a com esta citação de Bloch :
Le levier dans l’histoire humaine, c’est celui qui la produit – l’homme qui travaille, qui enfin n’est plus extériorisé, qui n’est plus aliéné, ni reifié, ni asservi au profit de ceux qui l’exploitent. Marx est le maître réalisé de cette abolition du prolétariat, de cette médiation possible, et en train de se réaliser, des hommes avec eux-mêmes et avec leur bonheur moral.(...) Marx est le maître essentiel de cette médiation qui nous rapproche incessamment du foyer de la production de l’ensemble de l’événement du monde ( Weltgeschehen), de ce que Engels appelle la métamorphose de la prétendue chose en soi en chose pour nous dans la mesure d’une humanisation possible de la nature. Un peuple libre, sur un fondement libre, tel est, saisi ainsi de façon paradoxale, le symbole final de la réalisation du réalisant, c’est-à-dire du contenu-limite le plus radical dans le possible objectivement réel en général.” (10)

9.        Seria preciso considerar a Utopia como uma forma de consciência social, uma manifestação histórica e social ( não apenas pessoal) concreta da Negação do homem daquilo que o aliena, oprime e revolta. Nas utopias exprimem-se as ideias e as aspirações de vastas camadas sociais. Não somente “sentimentos”, mas ideias e projectos; os utopistas, de uma maneira geral, souberam acompanhar o desenvolvimento das ciências e valorizar a Razão ( F. Bacon, Mably, Saint-Simon, Owen, Comte, Cabet...). E a sua heterogeneidade é tão grande que a utopia de Étienne Cabet ou de Bellamy não se confunde com a de Weitling, a de W. Morris com de Bellamy, a de Wells ( ou de J. Vernes) com a de Samuel Butler, a de Kropotkine com a de Proudhon, a de Owen com Fourier. A persistência da utopia, como fenómeno difuso e latente ou como texto filosófico ou de ficção-científica, testemunha a sua dimensão humana universal, latejando nos mitos às vezes, brotando, noutras, das margens da ciência . A fórmula utilizada por Marx na “Crítica do Programa de Gotha” que enuncia os princípios da sociedade comunista ( legados pelos utopistas), as teses de Lénine em “ O Estado e a Revolução” ( que re-inscreve como horizonte no ideário marxista-leninista as teses sobre o desaparecimento do Estado, comum a muitos utopistas; obra que se deve ler em articulação com as “ Teses de Abril”), figuram como textos emblemáticos de que o sonho mobilizador pôde marcar profundamente o nosso século. Não vejo como possa ser defensável a atitude contumaz de desprezar as utopias em nome de uma doutrina “ científica”. Onde está o “científico” : na Economia Política, na Sociologia, numa ontologia materialista? Na práxis política? Como pode opor-se o “realismo dos meios” à “utopia dos fins”? Não se ignore aquilo que mobiliza a massa humana, nem se despreze o papel que a subjectividade desempenha na transformação dos acasos e das possibilidades em necessidade. A essência dos fins devia encontrar-se também na opção por esta ou aquela possibilidade concreta.  O que nos une encontra-se nos fins, o que nos separa encontra-se nos meios. Em nome de quê decidimos este e não aquele meio ou etapa? O que significa ser-se comunista: possuírem-se princípios que contêm as finalidades – a sociedade comunista – ou fixar-se nesta ou naquela etapa ( que é ela própria uma resposta, melhor ou pior adequada, à correlação de forças internas e internacionais) e congelarem-se as metas? Pior ainda : bloquear-se a autonomia colectiva e individual, que é o bem supremo do socialismo comunista?
Cada época, cada tempo, produziu as suas utopias ( emergindo de tradições religiosas, míticas, de leituras diversas dos Evangelhos ou das Ciências, comprometidas com as lutas sociais e políticas dos respectivos países), a sua epistéme, o seu paradigma. A sua filosofia e a sua mentalidade. Não podemos trazer incólume para o nosso tempo as utopias de Rousseau, Morelly ou Deschamps, próprias da crise operada na França pela transição do feudalismo para o capitalismo contemporâneo. Na sua especificidade, outro tanto não devemos fazer com algumas determinações epocais da utopia marxiana ( o projecto da “ ditadura do proletariado”, por exemplo, exige uma leitura histórica, simultâneamente de apropriação e de distanciação ). As utopias também aprendem com a experiência. 

10.     A última consideração é sobre o 25 de Abril de 1974. É escassa, é certo, mas é esta data que me (nos) inspira Por causa dela merece bem a pena investigarmos quais as utopias que me (nos) inspiraram a oposição anti-fascista, aquelas que negámos e até combatemos, aquelas que perfilhámos, o pathos da Esperança, da acção que devia ser feita, que tinha de ser feita. E aquelas outras, ou as mesmas, que empolgaram grupos e classes sociais, jovens e menos jovens, proletários do campo ou da cidade, trabalhadores intelectuais, homens e mulheres das burguesias. O estudo documentado das suas linguagens e dos seus comportamentos ( textos teóricos, propaganda, manifestações artísticas, etc.) daria, dará, um volumoso volume. As linhas que dividiram, irremediavelmente, a esquerda revolucionária, as linhas que separaram esta daqueles que parafraseavam o maoísmo e pareciam confundir-se com o anarquismo na sua acção, mas que longe, ou contra, o valioso legado histórico e utopista deste, combatiam pelos  interesses da contra-revolução. As linhas que separaram ( e separam) a esquerda igualitarista ( que busca a expressão libertária da igualdade social ) daquela outra que elimina a equação mais dramática de todas as equações com a fórmula “ direito burguês + solidariedade social ”. Em cada momento, em cada acto concreto, se afere o valor das nossas utopias. Sabendo-se que, em cada momento, em cada acto, espreita a ideologia que se camufla em “cultura de massas”, em “espectáculo e expectativas” ,( e a “racionalização” psicanalítica) , pela qual a Realpolitik se auto-justifica. E a partir da qual lançam um olhar de condescendência pelos  coitados “sonhadores” órfãos e ressentidos...
Se a História da Humanidade toda foi abalada pela utopia concreta da Revolução de Outubro, então a Revolução Portuguesa abalou com certeza o pessimismo dos que já não tinham utopias.
Aquilo que as utopias, desde Platão, tratam ( e desafiam a nossa imaginação racional) é fundamentalmente o problema do Poder, ou seja, do Governo Justo. A Ideia de Justiça ( social) é o núcleo duro das construções utópicas, umas mais concretas do que outras. Não morreram por simples decreto de cientistas ou dos ideólogos. Seria estulto afirmarmos : “ A Utopia morreu! “, parafraseando Nietzche, “ Eis-nos condenados ao niilismo!”. O que tem de pior a  Filosofia contemporânea não é a meditação sobre a morte, é condenar a vida às possibilidades abstractas de um nada que carece de sentido.
Foi a Revolução Portuguesa uma utopia no quadro apertado da “geo-política” de então? Foi a Reforma Agrária uma utopia face a um país económica e politicamente completamente dividido? É uma utopia lutar-se pela ideia de um Portugal sem oligopólios, numa Europa com mais justiça social, travando o apetite imperialista ( que parece hoje omnipotente) dos E. U. ?
Quando a experiência está consumada é sempre mais fácil explicá-la. Neste sentido a Filosofia ( ou mesmo as ciências exactas ), é sempre um saber do presente, como queria Hegel. O Possível contido na Essência da Necessidade, resulta em grande parte da nossa ignorância de todas as determinações do Todo, como nos ensinou Espinosa, tanto o livre-arbítrio como a Providência. Recolhermo-nos comodamente nesta, ou lançarmo-nos cegamente no voluntarismo, creio ter sido este o dilema extremo de que nos advertiu   Marx. A mobilização das forças de que dispomos nesta ou naquela direcção, com vista a aproximarmo-nos de um governo cada vez mais justo, se há-de resultar de uma análise concreta das condições concretas, não resulta menos de uma ousada intuição. Transformar um resultado não totalmente previsto naqueles princípios que as massas populares querem puxar, por sua vez, até ao seu termo, eis a mais bela lição do 25 de Abril.


J. A . Nozes Pires







NOTAS :


(1)     Martin Buber, Utopie et Socialisme, p. 33, Paris, Aubier Montaigne, 1997.
(2)     (2) idem, p. 51.
(3)     (3) idem, p. 34.
(4)     (E. Bloch, Le Principe Espérance, T. I, p. 11.
(5)     Idem, p. 12.
(6)     Idem,p. 13.
(7)     Idem, p. 14.
(8)     Idem, p. 14.
(9)     Idem, p. 17.
(10)  Idem, pp. 214-215.
(11)   Michel Vadée, Marx Penseur du Possible, p. 500, Meridiens Klincksieck, 1992.



Bibliografia Principal :

Marx-Engels, Obras Escolhidas, Sobre Proudhon, As pretensas cisões na Internacional, Da Autoridade, Extracto dos comentários ao livro de Bakúnine, Crítica do Programa de Gotha, Do Socialismo utópico ao socialismo científico, Lisboa, Ed. Avante!, 1985.
Gian Mario Bravo, Les socialistes avant Marx, Maspero, 3 vol., 1970.
V. Volguine, Essais sur l’histoire des idées socialistes de l’antiquité à la fin du xviii siècle, Ed. du Progrès, Moscou, 1981.
Jean Servier, Histoire de l’utopie, Gallimard, 1967.
F. E. Manuel e F. P. Manuel, Utopian thought in the western world, The Belknap Press of Harvard University Press, 1979.
B Baczko, Les imaginaires sociaux, Payot, Paris, 1984.


 Curriculum:        José Augusto Nozes Pires, professor do ensino secundário, mestre em Filosofia e doutorando pela U. Clássica de Lisboa. Conferências e artigos sobre Utopia.

































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