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domingo, 30 de novembro de 2014

FÁBULAS

FÁBULAS – O extraterrestre

Tudo aconteceu inesperadamente num outono que hesitava entre a chuva e o bom tempo. A velocidade da nave alienígena fora tal que os astrónomos e os satélites não tiveram tempo de esfregar um olho. Aterrou no deserto do Saara e ocupou-o todo. Meia dúzia de beduínos viram-se de súbito sob um tecto gigantesco de sombra que apagou trilhos e dunas. Os jornalistas acorreram à pressa para captarem o instante supremo em que uma porta colossal se abriu no casco da nave e um gigante desceu, tranquilo e imponente, para as areias do deserto. Espalhada a notícia aos quatro ventos, o planeta parou, multidões imensas aglomeram-se frente aos ecrãs colocados nas praças das capitais, famílias juntaram-se nos lares temendo o juízo final. Os exércitos imperiais confluíram para o local com os seus porta-aviões, couraçados, bombardeiros. Baterias de mísseis atómicos acertaram as coordenadas para disparos letais ao primeiro sinal de perigo.
O gigante tinha pernas e braços e uns olhos doces e claros como o céu do deserto. Pareceu aguardar que o máximo de jornalistas se acotovelasse aos seus pés (todo o mundo tremia, suspenso entre a curiosidade e o terror). Por fim, o gigante colocou na boca um aparelho que lhe permitiu falar como os humanos. E disse:
-“ Saudações! Venho de um planeta longínquo que os vossos mapas astrais não rastrearam, da nebulosa de Andrómeda. Venho em paz e espero ser recebido em paz. Acompanhamos o vosso percurso neste mundo que habitais desde que os peixes saltaram para a terra, as araucárias deram flor há 150 milhões de anos, os répteis ganharam asas, cinco cataclismos extinguiram a vida, criaturinhas inofensivas saíram das tocas e iluminaram o planeta com a luz da inteligência; das florestas profundas, das savanas que emergiram do gelo, a vossa espécie evoluiu mercê do trabalho e do engenho, domou o trigo e a cevada, os rios e os estuários, ergueu cidades e fortins, pirâmides contra a morte e o esquecimento, organizou exércitos e escravizou os vencidos, inventou a escrita, a ciência e todos os sortilégios contra o sofrimento. Entre subordinados e senhores, entre escravos e patrícios, entre bárbaros e civilizados, entre plebeus e morgados, reis e vassalos, proletários e capitalistas, a vossa história é um longo e sofrido rol de contradições. Talvez por isso possuís um talento que desconhecemos: a arte! Do húmus sangrento das vossas atrocidades e vãs glórias brotou o génio dos vossos Leonardos e Picassos, Bach e Beethoven, Homero e Ésquilo! Como se a vossa miséria fosse a vossa grandeza. Com o último urro quando abandonastes as árvores, com o último guincho com que abandonastes as tocas, com os primeiros hieróglifos que inventastes para venerar deuses e homens, com a primeira espada com que degolaste mulheres e crianças, com a primeira greve, a primeira barricada, com a primeira proclamação dos direitos de todos os homens sem distinção de raça e fortuna, uma chama, uma exigência, uma utopia, iluminou as vossas vidas miseráveis, brutas e tortuosas: a liberdade!
Com a vossa ciência e muito mais do que ela construímos a nossa casa comum sem fomes e epidemias, sem dominadores e dominados; por isso surpreende que com a vossa experiência acumulada de milénios permaneceis os mesmos. Qual a diferença entre os tolos marinheiros que se enfeitiçaram com as sereias na “Odisseia” e o feitiço de hoje das mercadorias? Apenas mudastes o escravo em assalariado “livre”, as contas de vidro em dinheiro virtual, as coroas dos reis em gravatas de seda, os aristocratas em banqueiros, os coches em jatos particulares, os castelos em palácios na Quinta da Marinha. Para que vos serviu terdes conhecido dois santos universais: Jesus e Espinosa? Que saibamos não existe outra raça mais contraditória do que a vossa! Do mal fazeis o bem, do bem fazeis o mal. Que prodígios detendes na vossa posse com a vossa ciência, a vossa técnica, o vosso génio artístico! Não faltará muito, sei-o eu, para que decifreis os mais profundos enigmas do universo; contudo, o vosso mundo não resistirá muito mais às calamidades que lhe infligis; o vosso abjeto desprezo pela vida alheia; a vossa ganância sem limites; a vossa incontrolada loucura que vos conduz para novas e intermináveis guerras; cada passo que dais em frente, dois passos para trás. O vosso século vinte deu-vos, ao mesmo tempo, Einstein e o socialismo, duas guerras que mataram mais gente que em toda a história da humanidade.
Se acabais de saber que ocupais um lugar periférico em uma das 170 biliões de galáxias do universo observável, que o vosso Sol não é mais do que uma estrela média em triliões de estrelas da Via Láctea, que a vossa vida singular não dura mais que a chama de uma vela, que a Vida assim como brotou, assim se pode extinguir, porque não arrepiais caminho? Porque a matéria dos sonhos dos miseráveis, a Esperança, não se traduz em realidade?”
O gigante assim falou. Depois, recolheu o dispositivo tradutor e começou a subir a rampa para regressar à nave colossal. Estacou. Colocou de novo a máquina tradutora e acrescentou estas palavras: “Recebemos o disco com a mensagem gravada que enviastes para o espaço há mais de 36 anos na sonda Voyager 1. Por causa dela decidimos retribuir. Tranquilizai-vos: não tencionamos colonizar ninguém. Nem tão pouco salvar-vos! Saudações!”
E, num movimento suavíssimo, brilhando como um sol, a nave descolou. Atónitos, os militares afastaram o dedo do gatilho.

NOZES PIRES

Documentos de história

Pelo Socialismo
Questões político-ideológicas com atualidade
http://www.pelosocialismo.net
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Publicado em: http://www.initiative-communiste.fr/articles/luttes/propriete-privee-propriete-personnelle-enurss-ic-n147-lisez-abonnez-initiative-communiste/
Tradução do francês de TAM
Colocado em linha em: 2014/11/28

Propriedade privada e propriedade pessoal na URSS1

Os caricaturistas anticomunistas dissertaram durante muito tempo sobre uma ideia
feita acerca da propriedade privada na URSS. O cliché dizia que tudo pertencia ao
Estado, mesmo as crianças, as roupas e os animais domésticos. Na realidade, esta
propaganda, muitas vezes de extrema-direita e promovida pelos círculos patronais,
repousava sobre a ignorância, fictícia ou real, da realidade do direito de propriedade
neste regime socialista. Para o compreender, é preciso introduzir uma distinção
pouco familiar entre dois tipos de propriedade: a propriedade privada e a
propriedade pessoal.
A propriedade pessoal respeitava a todos os bens que um indivíduo podia usar:
“casas de habitação e pequenos anexos, objetos de uso caseiro e de utilização diária,
objetos de uso e de conforto pessoal” (Artigo 10 da Constituição de 1936). Assim,
podia-se ser proprietário de uma casa, eventualmente de uma casa de férias, de um
automóvel, de mobiliário, de um pequeno barco de recreio, e possuir uma poupança
proveniente do trabalho. O Código Civil socialista protegia este direito à propriedade.
A fonte principal destes bens deveria ser o trabalho e apenas às subvenções do
Estado, como a reforma ou os subsídios às famílias, não era aplicada esta lei. Estes
bens podiam também ser transmitidos por herança. As medidas de coletivização não
se lhes aplicavam.
Em contrapartida, a propriedade privada, essa, foi abolida em 1917. Corresponde à
posse de meios de produção dos quais se pode tirar um lucro. Em direito socialista, o
rendimento sem trabalho é considerado roubo. Assim, em 1917, foram abolidas as
ações, os títulos de dívida pública e mesmo as terras dos proprietários especuladores
ou os “imóveis sistematicamente para arrendar” foram confiscados.
Quanto mais alargada é a definição de propriedade pessoal, mais a da propriedade
privada é intransigente. Por exemplo, um indivíduo podia possuir uma máquina de
costura para seu uso pessoal. Mas, a partir do momento em que era utilizada para
comercializar produtos, o direito considerava que retirava um lucro do seu capital
para além do seu trabalho e que, consequentemente, o objeto se tornava propriedade
privada e não pessoal. No caso, admitia-se que o indivíduo considerava que era

1
 Publicado na Initiative Communiste n.º 147, agosto de 2014 – Revista mensal do Pólo do
Renascimento Comunista em França (PRCF). – [NT]

sábado, 29 de novembro de 2014

EL NUEVO IMPERIALISMO - DAVID HARVEY

"La estrategia militar del capitalismo mundial - iniciada con la primera guerra del Golfo en 1991, afianzada durante la década de 1990 en los Balcanes y en África central, y culminada con la invasión de Iraq en 2003 - y las políticas de privatización de buena parte de los servicios públicos y los recursos comunes a escala planetaria - desmantelamiento del Estado del bienestar en los países desarrollados y ajuste estrutural en los países pobres - indican com precisión los dos vectores de intervención del sistema capitalista en nuestros días. La guerra y la acumulación por desposesión son los mecanismos primordiales que el capitalismo histórico está empleando en la actualidade para resolver sus crisis sistémicas y para modelar un mundo quizá más injusto que el que hemos conocido durante los últimos 100 anos."
DAVID HARVEY é professor de Geografia na City University of New York (CUNY), assim como Miliband Fellow da London School of Economics. Destaquemos as seguintes obras de fama mundial: O Enigma do Capital; A Condição da Pós-Modernidade; As Cidades Rebeldes. Ver entrevistas no Youtub.

O eterno cócó

Passos Coelho e a gestão do momento. O outro é que é o mau, eu é que
 sou o bom. Aproveitar a prisão de Sócrates para insinuar a necessidade de
 voltara tentar criminalizar o enriquecimento ilícito é uma excelente ideia se 
incluir os vários parágrafos que este camarada saltou, um para cada
 privatização a preço de amigos que o seu Governo conduziu, outro para
 cada SWAP, outro para cada negócio em que o Governo pagou a
 multinacionais para o ajudarem a definir as condições de venda do 
produto que essas empresas depois apareceram a comprar e outro
 ainda sobre telhados de vidro da marca Tecnoforma. A nacionalização 
do amontoado de prejuízos da delinquência banqueira merece um capítulo
 com muitos parágrafos, por isso deixei para o final a nacionalização do
 BES, que este senhor diz ter falido por má gestão e não por falhas de supervisão,
 versão vagamente semelhante à que o seu colega de Évora forneceu sobre a 
nacionalização do BPN. Eles vão-se plagiando na disputa de fiéis que lhes 
agradeçam a governação do país. O Sócrates é melhor “có” Passos e o Passos
 é melhor “có” Sócrates. 
O cocó da alternância. Vamo-lo pagando.

DAQUI

O Estado Egípcio foi condenado por um tribunal arbitral a pagar uma indemnização brutal à multinacional Voelia que alegou ter sido prejudicada por o governo ter aumentado o salário mínimo dos trabalhadores egípcios (e tem “razão”: se não houvesse trabalho escravo as pirâmides não tinham sido erigidas…). E lembremo-nos que em Portugal o aumento do salário mínimo foi bloqueado pelo governo a pretexto de que as organizações de credores (EU, FMI, OCDE,BCE, etc) “não deixavam”.
 CID SIMÕES- via SAPO

Dia Internacional com a Palestina

Palestina

Palestina

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Para Thomas Piketty, autor de 'O Capital no Século XXI' a Europa está à beira do abismo de uma grave..

Thomas Piketty retoma nesta entrevista recente as propostas que desenvolve no seu já célebre livro. Não se trata para mim aqui de aprová-las ou reprová-las, mas de, com elas, reflectir sobre a UE, o presente e o futuro. Na minha perspectiva as propostas de Piketty - mais União e federalismo - são reformas possíveis no quadro da dominação capitalista e, portanto, dirigem-se sobretudo aos partidos sociais-democratas. Porquê, então, não são prosseguidas? É a resposta  a esta pergunta que não encontramos na entrevista.
(Mantive a grafia brasileira)
23 de Novembro de 2014 8:13
Europa está à beira de uma grave crise política, econômica e financeira !

Para Thomas Piketty, autor de 'O Capital no Século XXI' a Europa está à beira do abismo de uma grave crise política, econômica e financeira.

O economista autor do influente livro "O capital no século XXI" reflete sobre o auge da extrema direita em seu país. "França e Alemanha demonstraram ser egoisticamente míopes em relação à Espanha e à Itália ao renunciar a compartilhar seus tipos de interesse". "É preciso se acostumar a viver com um crescimento fraco". "A ideia segundo a qual é preciso insistir em secar os orçamentos com base em mais austeridade para curar o doente me parece completamente insensata".

Thomas Piketty (Clichy, Francç, 1971), economista da Paris School of Economics, é especialista no estudo das desigualdades econômicas por uma perspectiva comparada. É autor de "O capital no século XXI", obra que vendeu mais de um milhão de exemplares em todo o mundo e que ao ter sido recentemente editado para espanhol e catalão lhe transformou em um dos economistas mais influentes da atualidade.

A Paris School of Economics, de criação recente, tem sua sede nos locais da École Normal Supérieure (13 prêmios Nobel e 10 medalhas Fields nas costas), no bulevar Jourdan. Não é um dos colossais edifícios do século XIX, de pedra talhada, onde outras instituições como a Sorbonne ou a faculdade de Direito de Panthéon-Assas ainda conservam suas sedes históricas. Trata-se de um conjunto de edifícios relativamente moderno, mas avelhentado. O vinílico desgastado do solo e a cor amarelada de algumas paredes revelam que, se falamos em capital, não é físico, mas sim humano.

Três percevejos da porta do escritório de Piketty seguram uma folha de papel com seu nome. Do quarto só restou a agulha. Seu escritório mede cerca de 15 metros quadrados, 20, se muito, e está cheio de estantes repletas de livros. Não tem assistente pessoal. Não veste terno, nem gravata. Desde o primeiro momento, mostra-se amável, sorridente e natural. Um pouco tímido. Ainda que dê a sensação de não nunca ter quebrado um prato na vida, se expressa sem titubear e com veemência em alguns momentos.

Há quem veja no título “O capital no século XXI” pisca para a obra de Karl Marx “O capital”. Você considera que a confrontação ideológica entre capitalismo e marxismo continua vigente?

A disjuntiva não é capitalismo ou marxismo. Há diferentes maneiras de organizar o capitalismo e há diferentes maneiras de superá-lo. O que meu livro tenta é contribuir com este debate. Quanto ao marxismo, faço parte da primeira geração posterior à Guerra Fria, a primeira geração pós-marxismo. Completei 18 anos com a queda do Muro de Berlim (no dia da entrevista fazia exatamente 25 anos). Li Marx e há ideias interessantes nele, contribuições notórias, mas O capital foi escrito em 1867 e estamos em 2014. O que eu tento é introduzir no século XXI a questão do capital, de seu estudo, isto é, para mim, o que o título do meu livro significa.

Não se pode esquecer que este trabalho teria sido impossível sem as tecnologias da informação, que permitem reunir e tratar dados históricos em uma escala impossível para Marx e até mesmo Kuznets. É fácil criticar os economistas do passado, mas eles trabalhavam na mão. Não contavam com as ferramentas que nós temos e, sobretudo, não tinham a perspectiva histórica que hoje temos e que nos permite contar a história do capital e das desigualdades. Isto é o que meu livro tenta fazer. Não pretende anunciar uma revolução, tenta apenas colocar à disposição dos leitores as pesquisas históricas que pudemos reunir sobre mais de vinte países e que englobam três séculos. O livro é, antes de qualquer coisa, uma história do capital.

Seu livro estuda de maneira empírica, entre outras coisas, a relação entre distribuição de renda do crescimento. Pode-se falar de causalidade direta no sentido de que uma melhor distribuição da renda produzindo uma taxa de crescimento maior como efeito?

A correlação e a causalidade são ambas muito complexas e não vão em um sentido apenas. A desigualdade pode ajudar o crescimento até certo ponto, mas para além de um determinado nível de desigualdade, obtém-se principalmente um efeito negativo que reduz a mobilidade na sociedade e conduz à perpetuação da estratificação social no tempo. Isto tem um impacto negativo sobre o crescimento.

O outro efeito negativo se produz através das instituições políticas: uma desigualdade muito forte pode levar ao sequestro das instituições democráticas por parte de uma pequena elite que não vai necessariamente investir na sociedade pensando no conjunto da população. Por isso, o crescimento no século XXI vai depender em grande medida do investimento em educação e formação, e não unicamente para uma pequena elite, mas para uma imensa maioria da população.

Para além das previsões de conjuntura econômica, o que se pode esperar do crescimento nos próximos anos? O que as expressões desenvolvimento sustentável e decrescimento lhe sugerem?

Acredito que tenhamos que nos acostumar a viver de maneira sustentável com um crescimento fraco. O problema é que tanto na França como em outros países europeus continuamos tendo em mente essa espécie de fantasia dos "trinta gloriosos" (expressão que faz referência às três décadas transcorridas entre a Segunda Guerra Mundial e a crise do petróleo em 1973), segundo a qual precisamos de pelo menos três, quatro ou cinco porcento de crescimento para sermos felizes. Isto não tem sentido. Somente nas fases corretivas em que alguns países recuperam os atrasos em relação a outros, ou em fases de reconstrução, acontecem taxas de crescimento tão elevadas.

É preciso colocar na cabeça que uma taxa de crescimento de 1% ou 1,5% ao ano é um crescimento muito rápido, se prolongado no tempo. Com taxas de crescimento assim durante um período de trinta anos, que é o equivalente a uma geração, acontecerá um crescimento da renda que equivale a um terço ou até mesmo à metade do PIB.

Por outro lado, ter que viver de maneira sustentável não é argumento para defender crescimento nulo. Uma taxa de crescimento entre 1% e 1,5% ao ano no longo prazo é fonte de progresso e não é um objetivo impossível. Agora, para alcançar um ritmo de crescimento assim, é preciso abandonar a atual política de austeridade. Isso em primeiro lugar. E sobretudo é preciso investir em ensino superior, em inovação e meio ambiente... Falo de investir em meio ambiente porque é evidente que terá que encontrar novas fontes de energia renováveis, visto que com as fontes atuais não poderemos manter uma taxa de crescimento de 1% ou 1,5% ao ano indefinidamente.

Considerando as últimas previsões da Comissão Europeia, não parece que estejamos perto de alcançar essa velocidade de cruzada. Você acredita que a austeridade seja um mal necessário para retomar o ritmo de crescimento?

A realidade é que caminhamos rumo a uma década imersos em um clima de recessão e de austeridade. Digo isto porque o PIB por habitante estimado para a França em 2014 ou 2015 é inferior ao de 2006 ou 2007. Esta é a situação. Estamos há quase dez anos em estancamento da renda per capita, da riqueza do país, do poder aquisitivo... A partir daqui podemos discutir tudo o que quisermos sobre qual precisa ser a arrecadação do Estado, quanto deve ser o gasto público ou qual deve ser o peso do setor privado na economia, mas o fato é que a riqueza total disponível é inferior à de 2007. Não recuperamos o nível anterior à crise. É normal que, em uma situação como esta, o ambiente seja depressivo.

A ideia segundo a qual é preciso enxugar os orçamentos com base em mais austeridade para curar o paciente me parece completamente insensata. Digo isto pensando na França, mas o mesmo vale para a Itália, com taxas de crescimento negativas em 2013 e em 2014. É verdade que o crescimento na Espanha está um pouco melhor agora, mas não nos esqueçamos que ela ainda sofre um atraso considerável em termos de renda per capita em comparação a outras grandes economias da Europa.

O resultado global das políticas de austeridade nos últimos quatro ou cinco anos é, de maneira objetiva, muito ruim. Os Estados Unidos tinham uma taxa de desemprego muito similar à da zona do euro de alguns anos atrás e atualmente a diferença é enorme. O desemprego diminuiu ali, apesar de o nível da dívida de ambas economias ser muito semelhante na situação de partida. Não há dúvidas sobre quem escolheu a estratégia adequada.

Que outra estratégia a zona do euro deveria ter seguido para sair da crise?

Acredito que seja necessário tornar comum as dívidas públicas e os juros da dívida pública. França e Alemanha forma extremamente egoístas. Demonstraram ser egoisticamente míopes em relação à Espanha e Itália ao renunciar e compartilhar seus juros. Uma moeda única com 18 dívidas públicas e 18 tipos de juros associados a essa dívida não funciona. Os atores financeiros não têm confiança neste sistema. Poderemos sair desta crise somente se criarmos um fundo comum de dívida pública com apenas um tipo de juro. O Banco Central Europeu poderá, então, estabilizar esse tipo de juros com menor dificuldade do que atualmente com 18 diferentes.

Agora, se quisermos gerir a dívida de maneira comum, precisamos também de um Parlamento da zona do euro que tome decisões a este respeito, entre outras coisas, sobre o nível de déficit comum. Isto é o que faltou até agora nas proposições de reorientação da construção europeia que Hollande esboçou na França, e do que também se falou na Espanha e na Itália. Finalmente, isso não se traduziu em uma proposta concreta de união política e, ao mesmo tempo, orçamentária. Ambas são coisas necessárias.

Você fala em reformar o desenho institucional da zona do euro. Que diferenças haveria entre o atual Parlamento Europeu e esse Parlamento orçamentário a que você se refere na última parte de seu livro?

Atualmente, temos um Parlamento Europeu em que estão representados 28 países e, por outro lado, o Conselho Europeu de Chefes de Estado ou de Governo e o Conselho de Assuntos Econômicos e Financeiros (integrados pelos ministros de Economia e Finanças). São vários os problemas desta arquitetura democrática. O primeiro é que nem todos os 28 países representados no Parlamento Europeu querem avançar rumo a uma maior integração política, fiscal e orçamentária. O segundo, que o Parlamento Europeu não representa absolutamente as instituições dos Estado-nação e, concretamente, os parlamentos nacionais.

Por isso, acredito que faz falta, paralelamente ao atual Parlamento Europeu, uma câmara parlamentar da zona do euro ou, em todo caso, uma câmara formada pelos países da zona do euro que queiram avançar em direção a uma união política, orçamentária e fiscal, e que teria que se construir a partir dos diferentes parlamentos nacionais. Cada país estaria representado proporcionalmente à sua população, nem mais, nem menos. O mesmo para Alemanha e França e os demais. A atribuição desta nova Câmara consistiria em votar questões como um imposto comum sobre sociedade ou o nível de déficit comunitário.

Não são poucos os que pensam que, em vez de mais integração, o razoável seria retomar as moedas nacionais.

Não, para mim não é a boa solução. Agora, sem propostas alternativas rápidas, acredito que o retorno às moedas nacionais será um cenário cada vez mais difícil de descartar. Concretamente, a única resposta dada na França aos que querem sair do euro consiste em dizer que é impossível, que está proibido, que agora que entramos não se pode retroceder... Esta resposta é extraordinariamente fraca e não vai durar muito tempo mais.

A saída da crise está em avançar na união dos países da zona do euro. De certa forma, a pior das situações é a atual, porque perdemos a possibilidade de desvalorizar a moeda, perdemos a soberania monetária nacional, em troca teríamos que ganhar novas formas de soberania fiscal e orçamentária, maior capacidade para arrecadar imposta de maneira mais justa, mais capacidade de resistência para proteger frente ao risco de especulação sobre os tipos de juros da dívida pública. Até agora, França e Alemanha ganharam neste jogo, mas a única alternativa para a saída do euro é uma união da dívida, uma união fiscal. Se não nos apressarmos, acredito que as forças políticas a favor da saída do euro vão ganhar a partida.

O que se pode esperar da França na construção desta nova arquitetura institucional Europeia, exatamente agora em que a extrema direita lidera as pesquisas? A Europa deve se preocupar?

É preciso se preocupar, absolutamente. Não acredito que a Frente Nacional chegará ao poder no Eliseu ou à presidência da República, mas pode conseguir a presidência de várias regiões. No próximo ano, há eleições regionais, e dado o modo de distribuição das cadeiras, é perfeitamente possível que duas ou três regionais, ou até mais, caiam do lado da Frente Nacional.

Em um sistema eleitoral como o das eleições presidenciais, estamos acostumados que a Frente Nacional perca, inclusive se for o partido mais votado do primeiro turno. Entretanto, nas regionais, o partido mais votado obtém uma parte equivalente a um quarto das cadeiras (o resto se divide de maneira proporcional). Se a Frente Nacional conseguir 30% ou 35% dos votos em uma região, a direita 25% e a esquerda 20%, por exemplo, a parte do partido mais votado faz com que a Frente Nacional aspire ter maioria absoluta nessa região.

Será um choque enorme na Europa. Até agora, a Frente Nacional ganhou somente em algumas cidades pequenas, mas se regiões inteiras passarem a ser governadas pela extrema direita, a história será outra. Não vai ser uma piada. Vão criar tensões em algumas regiões do país e o resultado pode ser extremamente violento.

Até esse ponto?

Estamos de fato à beira do abismo de uma crise política, econômica e financeira. A crise é responsabilidade de todos os países, mas não entendo como a Alemanha continua pensando que tem interesse em manter esta visão tão rígida da austeridade... Afinal de contas, nem sequer lá o crescimento é elevado. Que consta que a responsabilidade também é da França, por não fazermos verdadeiras propostas progressivas e de refundação democrática da Europa. E continuamos esperando propostas da Espanha e da Itália. Em todo caso, acredito que a situação seja grave e que as eleições regionais na França no próximo ano serão um choque.

Muitos eleitores se incomodam porque interpretam seu livro como a evidência de um futuro com menor crescimento e pior distribuição da riqueza. Há argumentos para o otimismo?

Claro que sim. Essa é minha maneira de ser. Sinto muito se alguns chegam a conclusões pessimistas após a leitura do livro! Eu acredito no progresso social, econômico e democrático e no crescimento. Mas é preciso se acostumar a viver com crescimento menor. Insisto em que um crescimento mais fraco, se mantido no tempo, é compatível com o progresso. Há trinta anos, não dispúnhamos das atuais tecnologias da informação, por exemplo. Se nos organizarmos bem, nos dotarmos das instituições adequadas para que todo mundo possa se beneficiar, essas tecnologias serão uma enorme fonte de riquezas.

Acredito no progresso técnico e na mundialização, e o livro não é pessimista em relação ao futuro. Simplesmente, para que estas coisas beneficiem a todos, fazem falta instituições democráticas, sociais, educativas, fiscais e financeiras que funcionam corretamente. O problema é que, depois da queda do Muro de Berlim, nós imaginamos, por um momento, que era suficiente se basear nas forças naturais do mercado para que o processo de globalização e de competitividade beneficiasse a todos. Acredito que o erro esteja aí. É preciso repensar os limites do mercado, do capitalismo, e repensar também as instituições democráticas."

Tradução: Daniella Cambaúva , 21/11/2014

http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FPiketty-Estamos-a-beira-de-uma-grave-crise-politica-economica-e-financeira%0A%2F7%2F32284
Piketty: Europa está à beira de uma grave crise política, econômica e financeira
www.cartamaior.com.br

Para Thomas Piketty, autor de 'O Capital no Século XXI' a Europa está à beira do abismo de uma grave...
Piketty: Europa está à beira de uma grave crise política, econômica e financeira
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Para Thomas Piketty, autor de 'O Capital no Século XXI' a Europa está à beira do abismo de uma grave..

domingo, 23 de novembro de 2014

OPINIÃO 6

Reflectir sobre as cidades

As cidades foram o berço da civilização. Os centros do poder, da divisão social do trabalho, das classes sociais, das religiões, da cultura. Da cidade expandiu-se o maior império: o império romano. Nelas desenvolveu-se uma classe revolucionária: a burguesia; e outra: o proletariado moderno. No seu interior sublevam-se as multidões, os novos movimentos sociais. Deles fala-nos David Harvey no seu livro "As cidades rebeldes". A ler, a reflectir.


OPINIÃO 5

O ex-primeiro ministro José Sócrates foi detido e todo o mundo emite opiniões, nos cafés, nas tertúlias, nos blogs, nos facebookes, nos jornais, nas tvs. Eu também. Realmente não foi "detido" mas preso para todos os efeitos. Realmente não é "indiciado" por crimes mas "acusado", tendo em conta o modo como foi "detido" e a fórmula dos "indícios". Se não se vierem a provar as "suspeitas" o que se está a passar é de uma extrema gravidade, tanto quanto se se vierem a provar, tanto quanto se a máquina da justiça protelar e arquivar. Em qualquer das situações os órgãos de soberania - poder executivo, legislativo e judicial - têm sofrido um abalo até aos fundamentos. O regime democrático, mais formal que efectivo, está corroído até ao tutano. Viemos de uma ditadura de quase cinquenta anos, a mais longa da Europa, para cuja queda foi necessária uma guerra de 12 anos e um golpe militar. A contra-revolução deu cabo das profundas e justas transformações democráticas. O que resta é a miséria, a farsa, a corrupção, a gula do capital financeiro.
O caso Sócrates não é a ponta do icebergue. É a base.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

OPINIÃO 4

A reedição de "Consideraciones sobre el marxismo", de Perry Anderson ( Siglo XXI, Espanha, 2012), é um acontecimento que merece relevo. Publicado em 1976 traz um prólogo recente do autor, justamente célebre ensaísta e historiador britânico, com obras notáveis no extenso curriculum: El Estado absolutista, Transiciones de la Antigüedad al feudalismo, etc. Existem traduções na Editora Boitempo. Na obra citada acima P. Anderson começa por afirmar que "Ainda está por escrever-se a história do marxismo desde o seu nascimento há pouco mais de um século". Que eu saiba este desafio ainda não foi cumprido. Anderson organiza o balanço segundo várias gerações de marxistas, sendo a primeira constituída por autores como Plehkánov, Kautsky, Mehring e outros, cujo labor, embora diferenciado, visava "sistematizar o materialismo histórico como teoria geral do homem e da natureza, capaz de substituir as disciplinas burguesas rivais e oferecer ao movimento operário uma visão ampla e coerente do mundo que pudesse ser captada facilmente pelos seus militantes". A geração seguinte veio a ser protagonizada por Lenine, Rosa Luxemburgo e Hilferding. Outras gerações se seguiram: Trotsky, Bauer, Bukárin...Anderson constata que esta "tradição clássica" era constituída por teóricos que desenvolviam actividade política intensa, com profundas divergências entre eles, políticas e teóricas. A partir da 2ª Guerra Mundial verifica-se o surgimento do "Marxismo Ocidental", pontificando nomes cimeiros entre os quais: W. Banjamin, Horkheimer, Della Volpe, Marcuse, numa primeira geração, depois H. Lefebvre, Adorno, Sartre, L. Goldmann, Althusser. O "Marxismo Ocidental" caracterizar-se-ia por por um afastamento progressivo dos teóricos relativamente à acção prática, de diversificadas orientações marxistas relativamente ao movimento operário, afastamento que se manteve e se acentuou até à data da redacção do livro em 1974. Este sinal negativo é enfatizado por Anderson, que encerra o livro com um claro apelo à re-união da teoria e da prática, agora sustentada na valorização dos novos movimentos sociais.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O principal Estado terrorista

Pelo Socialismo
Questões político-ideológicas com atualidade
http://www.pelosocialismo.net
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Publicado em 2014/11/06, em: http://resistir.info/eua/chomsky_03nov14.html
Colocado em linha em: 2014/11/17

O principal Estado terrorista
Noam Chomsky*

"É oficial: Os EUA são o principal Estado terrorista do mundo, e orgulhosos disso".
Esta deveria ter sido a manchete da notícia principal no New York Times de 15 de
Outubro, a qual foi polidamente intitulada: "Estudo da CIA da ajuda encoberta
alimenta cepticismo acerca do apoio a rebeldes sírios".
O artigo informa sobre uma revisão da CIA das recentes operações encobertas dos
EUA a fim de determinar a sua eficácia. A Casa Branca concluiu que infelizmente os
êxitos foram tão raros que alguma reconsideração desta política era pertinente.
O artigo citava o presidente Barack Obama a dizer que pedira à CIA para efectuar a
revisão a fim de descobrir casos de "financiamento e fornecimento de armas a
insurgências num país que realmente tivesse funcionado bem. E eles não puderam
sugerir muito". Assim, Obama tem alguma relutância quanto à continuação de tais
esforços.
O primeiro parágrafo do artigo do Times menciona três grandes exemplos de "ajuda
encoberta": Angola, Nicarágua e Cuba. Cada caso foi de facto uma grande operação
terrorista dirigida pelos EUA.
Angola foi invadida pela África do Sul, a qual, segundo Washington, estava a
defender-se de um dos "mais notórios grupos terroristas" do mundo – o African
National Congress, de Nelson Mandela. Isso foi em 1988.
Nessa altura, a administração Reagan estava virtualmente isolada no seu apoio ao
regime do apartheid, violando mesmo sanções do Congresso quanto ao aumento do
comércio com o seu aliado sul-africano.
Enquanto isso, Washington somava-se à África do Sul ao proporcionar apoio crucial
ao exército terrorista de Jonas Savimbi, em Angola. Washington continuou a fazer
isso mesmo depois de Savimbi ter sido completamente derrotado numa eleição livre
cuidadosamente monitorada e de a África do Sul ter retirado seu apoio. Savimbi foi
um "monstro cuja sede de poder trouxe miséria espantosa ao seu povo", nas
palavras de Marrack Goulding, embaixador britânico em Angola.
Pelo Socialismo
Questões político-ideológicas com atualidade
http://www.pelosocialismo.net
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Publicado em 2014/11/06, em: http://resistir.info/eua/chomsky_03nov14.html
Colocado em linha em: 2014/11/17
O principal Estado terrorista
Noam Chomsky*
"É oficial: Os EUA são o principal Estado terrorista do mundo, e orgulhosos disso".
Esta deveria ter sido a manchete da notícia principal no New York Times de 15 de
Outubro, a qual foi polidamente intitulada: "Estudo da CIA da ajuda encoberta
alimenta cepticismo acerca do apoio a rebeldes sírios".
O artigo informa sobre uma revisão da CIA das recentes operações encobertas dos
EUA a fim de determinar a sua eficácia. A Casa Branca concluiu que infelizmente os
êxitos foram tão raros que alguma reconsideração desta política era pertinente.
O artigo citava o presidente Barack Obama a dizer que pedira à CIA para efectuar a
revisão a fim de descobrir casos de "financiamento e fornecimento de armas a
insurgências num país que realmente tivesse funcionado bem. E eles não puderam
sugerir muito". Assim, Obama tem alguma relutância quanto à continuação de tais
esforços.
O primeiro parágrafo do artigo do Times menciona três grandes exemplos de "ajuda
encoberta": Angola, Nicarágua e Cuba. Cada caso foi de facto uma grande operação
terrorista dirigida pelos EUA.
Angola foi invadida pela África do Sul, a qual, segundo Washington, estava a
defender-se de um dos "mais notórios grupos terroristas" do mundo – o African
National Congress, de Nelson Mandela. Isso foi em 1988.
Nessa altura, a administração Reagan estava virtualmente isolada no seu apoio ao
regime do apartheid, violando mesmo sanções do Congresso quanto ao aumento do
comércio com o seu aliado sul-africano.
Enquanto isso, Washington somava-se à África do Sul ao proporcionar apoio crucial
ao exército terrorista de Jonas Savimbi, em Angola. Washington continuou a fazer
isso mesmo depois de Savimbi ter sido completamente derrotado numa eleição livre
cuidadosamente monitorada e de a África do Sul ter retirado seu apoio. Savimbi foi
um "monstro cuja sede de poder trouxe miséria espantosa ao seu povo", nas
palavras de Marrack Goulding, embaixador britânico em Angola.
As consequências foram horrendas. Em 1989, uma investigação da ONU estimava
que as depredações sul-africanas levaram a 1,5 milhão de mortes em países vizinhos,
sem falar no que estava a acontecer dentro da própria África do Sul. Forças cubanas
finalmente repeliram os agressores sul-africanos e obrigaram-nos a retirarem-se da
Namíbia ocupada ilegalmente. Os EUA sozinhos continuaram a apoiar o monstro
Savimbi.
Em Cuba, após a fracassa invasão da Baia dos Porcos, em 1961, o presidente John F.
Kennedy lançou uma campanha assassina e destrutiva para levar "os terroristas da
terra" para Cuba – palavras de um colaborador próximo de Kennedy, o historiador
Arthur Schlesinger, na sua biografia semi-oficial de Robert Kennedy, ao qual foi
atribuída responsabilidade pela guerra terrorista.
As atrocidades contra Cuba foram graves. Os planos eram para que o terrorismo
culminasse num levantamento em Outubro de 1962, o qual levaria a uma invasão dos
EUA. Nesta altura, meios académicos reconhecem que isto foi uma das razões porque
o primeiro-ministro russo Nikita Khruschev instalou mísseis em Cuba, iniciando uma
crise que esteve perigosamente próxima da guerra nuclear. O secretário da Defesa dos
EUA Robert McNamara posteriormente reconheceu que se tivesse estado no lugar de
um líder cubano "podia ter esperado uma invasão estado-unidense".
Ataques americanos contra Cuba continuaram durante mais de 30 anos. O custo para
os cubanos foi naturalmente rude. Os relatos das vítimas, que dificilmente alguma
vez são ouvidos nos EUA, foram relatados em pormenor pela primeira vez num
estudo de 2010 do académico canadiano Keith Bolender, "Voices From the Other
Side: an Oral History of Terrorism Against Cuba".
O custo da longa guerra terrorista foi ampliado por um embargo esmagador, o qual
continua ainda hoje em desafio ao mundo. Em 28 de Outubro, a ONU, pela 23ª vez,
endossou "a necessidade de acabar o bloqueio económico, comercial e financeiro
imposto pelos Estados Unidos contra Cuba". A votação foi de 188 contra 2 (EUA,
Israel), com abstenção de três ilhas do Pacífico dependentes dos EUA.
Há agora alguma oposição ao embargo em altos postos nos EUA, informa a ABC
News, porque "já não é mais útil" (citando o novo livro de Hillary Clinton, "Hard
Choices"). O académico francês Salim Lamrani analisou os custos amargos para os
cubanos no seu livro de 2013, "The Economic War Against Cuba".
A Nicarágua nem precisaria ser mencionada. A guerra terrorista do presidente
Ronald Reagan foi condenada pelo Tribunal Mundial, o qual ordenou aos EUA que
terminassem o seu "uso ilegal da força" e pagassem reparações substanciais.
Washington respondeu escalando a guerra e vetando uma resolução de 1986 do
Conselho de Segurança da ONU conclamando todos os estados – o que significava os
EUA – a cumprirem o direito internacional.
Outro exemplo de terrorismo será assinalado em 16 de Novembro, o 25º aniversário
do assassinato de seis padres jesuítas em San Salvador por uma unidade terrorista do
exército salvadorenho, armada e treinada pelos EUA. Por ordens do alto comando
3
militar, os soldados invadiram a universidade jesuíta para assassinar os padres e
quaisquer testemunhas – incluindo o caseiro do prédio e sua filha.
Este evento culminou nas guerras terroristas dos EUA na América Central na década
de 1980, embora os efeitos ainda estejam nas primeiras páginas de hoje em
reportagens sobre "imigrantes ilegais", a fugirem em não pequena medida das
consequências daquela carnificina e a serem deportados dos EUA para sobreviverem,
se puderem, nas ruínas dos seus países de origem.
Washington também emergiu como o campeão mundial na geração de terror. O
antigo analista da CIA Paul Pillar adverte do "impacto da geração de ressentimentos
devido aos ataques estado-unidenses" na Síria, os quais mais uma vez induzem as
organizações jihadistas Jabhat al-Nusra e Islamic State a "emendar” suas violações
do ano passado e fazerem campanha em conjunto contra a intervenção dos EUA,
retratando-a como uma guerra contra o Islão!
Isto agora é uma consequência habitual das operações dos EUA que ajudaram a
alastrar o jihadismo de um canto do Afeganistão para grande parte do mundo.
A actual manifestação mais temível de jihadismo é o Estado Islâmico, ou ISIS, o qual
estabeleceu seu califado assassino em grandes áreas do Iraque e da Síria.
"Penso que os Estados Unidos são um dos criadores chave desta organização",
relata o antigo analista da CIA Graham Fuller, um eminente comentador acerca da
região. "Os Estados Unidos não planearam a formação do ISIS", acrescenta, "mas
suas intervenções destrutivas no Médio Oriente e a Guerra do Iraque foram as
causas básicas do nascimento do ISIS".
A isto podemos acrescentar a maior campanha terrorista do mundo: o projecto global
de Obama de assassínio de "terroristas". Os "impactos da geração de
ressentimentos" com os ataques de drones e forças especiais são demasiado bem
conhecidos para exigirem comentários adicionais.
Isto é um recorde a ser contemplado com algum pavor.

03/Novembro/2014

* Professor emérito de linguística e filosofia no Massachusetts Institute of
Technology, in Cambridge. Seu livro mais recente é Power Systems:
Conversations on Global Democratic Uprisings and the New Challenges to
U.S. Empire. Interviews with David Barsamian.
O original encontra-se em www.truth-out.org/opinion/item/27201-the-leading-terroriststate

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Os Muros

"Há que desmistificar "A Coisa", como alguém lhe terá chamado certa vez. É parte muro, parte vedação. Em algumas secções da fronteira, tem uma base de betão que termina numa estrutura de rede com cinco metros de altura. Está equipada com sensores elétricos e ao lado estende-se um caminho de terra que guarda as pegadas dos que ousarem transpô-la. Depois da estrutura, há rolos de arame farpado, e uma vala de quatro metros de profundidade de um dos lados.
Noutras secções, ergue-se um muro de betão protegido por torres de vigilância. É assim na cidade palestiniana de Qalqilya, onde um "muro sniper" previne ataques a condutores israelitas que viajam na estrada que atravessa Israel. E como em Abu Dis (na fotografia que aqui mostramos), uma aldeia palestiniana perto da Cidade Velha de Jerusalém Oriental, a qual se lhes tornou praticamente inacessível (assim como aos seus serviços médicos) desde que a barreira foi construída.
A estrutura, cuja construção teve início em 2002, e que separa Israel da Cisjordânia, foi mandada erigir pelo governo israelita com o propósito de manter afastados do seu território terroristas que, segundo alegava o governo, iriam pôr em causa a vida de civis israelitas. Quando estiver concluída, terá cerca de 700 quilómetros de comprimento. Na altura, como agora, famílias inteiras e comunidades foram separadas, centenas de agricultores perderam os seus campos (e, consequentemente, o seu meio de subsistência) e outros tantos ficaram sem acesso a serviços essenciais."
in jornal on-line EXPRESSO

sábado, 15 de novembro de 2014

Pelo Socialismo
Questões político-ideológicas com atualidade
http://www.pelosocialismo.net
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Publicado em 2014/10/20, em: http://www.hist-socialismo.com/docs/Khabarovaentrevista.pdf
Tradução do russo e edição por CN (original em: http://cccpkpss.
narod.ru/tinform/2013/Sovetskoe_Soprotivlenie-1.pdf)
Colocado em linha em: 2014/11/14
O modelo económico de Stáline
O que era, como foi destruído, qual o seu papel no futuro?1
Tatiana Khabarova2
Entrevista conduzida por Serguei Prokopenko
É correcto dizer-se que o desenvolvimento do socialismo, das relações socialistas de
produção na URSS, em total correspondência com os interesses do povo soviético, teve
apenas lugar sob a direcção de Iossif Vissariónovitch Stáline? Que tudo o que aconteceu na
URSS depois da sua morte se inseriu na destruição deliberada do socialismo, das relações
socialistas de produção, o que, em última instância, conduziu à derrota do povo soviético
em 1991?
Tatiana Khabarova – Naturalmente que não se pode dizer que logo após a morte de
Stáline se assistiu a uma destruição total. Ainda havia uma enorme inércia do período de
Stáline, o povo acreditava profundamente na construção do socialismo e do comunismo,
trabalhava, havia muitas pessoas honestas, inclusive no partido e no corpo de dirigentes.
Por isso a edificação continuou e muito foi feito no período pós-Stáline. Não falo sequer
da conquista do espaço, mas, por exemplo, criámos o sistema energético unificado do
país, o complexo petrolífero e gasífero, alcançámos a paridade militar com os EUA, etc.
Assim, o processo de edificação continuou, mas depois, no final da II Guerra Mundial, foi
desencadeada contra nós uma nova guerra imperialista. Logo em 1948, como é sabido, o
Conselho Nacional de Segurança dos EUA aprovou a famigerada Directiva 20/1,3 na qual
se afirma abertamente que os Estados Unidos conduzem uma guerra contra a União
Soviética e que essa guerra visa precisamente a destruição do nosso sistema social, do
nosso regime social e do nosso povo. Essa guerra teve naturalmente uma acção
refreadora, mas as coisas só resvalaram completamente quando a clique de traidores,
1 O presente texto resulta da tradução da transcrição de uma entrevista em directo, a 21 de
Junho de 2013, para o programa «Resistência Soviética» (http://video.yandex.ru /users/cccpkpss/
view/5/#). (N. Ed.)
2 Khabarova, Tatiana Mikhailovna (1935) é actualmente presidente do Comité Executivo do
Congresso dos Cidadãos da URSS (ver nota autobiográfica em: http://www.histsocialismo.
com/docs/Kharbarova EconomiaSocialista.pdf). (N. Ed.)
3 O original desta directiva, também conhecida como «Plano Dulles», está disponível em inglês
em: http://www.sakva.ru /Nick/DullPlan.html. (N. Ed.)
2
encabeçada por Gorbatchov e preparada sob influência dos serviços de inteligência
ocidentais, conseguiu chegar ao poder.
Fale-nos por favor sobre o funcionamento do mecanismo económico sob Stáline.
Proponho que comecemos por falar da actual crise económica mundial.
É claro que a própria ideia de propriedade privada está obsoleta, mas falaremos sobre
isso depois.
Qual é a causa concreta da crise? A causa concreta da crise é a «bolha» do dólar, isto é, a
circulação no mundo de uma massa colossal de dólares, que não tem qualquer
correspondência com as mercadorias reais. No entanto os dólares circulam como se
fossem uma verdadeira divisa, ainda por cima uma moeda mundial.
Imaginemos que nós dois somos um país normal anterior à época do «dólar», isto é,
antes da «bolha».
Queremos viver melhor, mas não conseguimos produzir mais. Então decidimos imprimir
mais moeda própria. Mas continuamos sem viver melhor, porque a inflação disparou.
Com o nosso dinheiro vamos a um país vizinho tentar comprar aquilo que não
conseguimos produzir. Respondem-nos que temos de pagar em ouro, ou propõem-nos
cambiar o nosso dinheiro segundo o padrão-ouro.
Mas não o podemos fazer porque não só não temos ouro, como a nossa moeda está
desvalorizada.
Este é o limiar que os EUA ultrapassaram quando impuseram ao mundo o seu dólar, a
sua moeda nacional, em vez do padrão ouro.4
É sabido que os norte-americanos há muito tempo que não produzem o suficiente em
relação ao que consomem. Mas inventaram esta ordem financeira mundial única que lhes
permite subtrair a qualquer país tudo o que precisam e que não produzem internamente.
E que consequências sofrem os países que estão sujeitos ao domínio do dólar?
4 Os acordos de Bretton Woods (EUA), em Julho de 1944, estabeleceram o dólar como moeda
de referência internacional, ficando esta, por sua vez, ligada ao ouro numa proporção fixa de 35
dólares por onça troy (31,104 gramas). Em 1968 esta equivalência passou para 42,22 dólares por
onça-troy. Finalmente, em 15 de Agosto de 1971, a Administração Nixon decidiu unilateralmente
pôr fim à convertibilidade do dólar em ouro. Na realidade, a credibilidade do dólar há muito que
estava minada devido à contínua emissão de moeda para cobrir défices externos, agravados pela
guerra no Vietname. Em 1965, o presidente francês Charles de Gaulle alerta para o desequilíbrio
da balança comercial norte-americana e acusa os EUA de se financiarem gratuitamente à custa
dos restantes países, que acumulavam notas verdes de valor real discutível. Por isso a França e
outros países começaram a diminuir drasticamente as suas reservas de dólares, exigindo a sua
conversão em ouro. (N.Ed.)
3
Nesses países, uma parte do produto nacional é destinada à manutenção de uma divisa
estrangeira – o dólar. Isto significa que resta uma parte menor para sustentar a sua
própria divisa nacional. Significa também que a moeda nacional perde valor e provoca
inflação.
E quem são os que, no essencial, compram bens na moeda nacional? Quem é que compra
em rublos no nosso país? Pois é, os trabalhadores, os funcionários públicos e outros.
Toda a «elite» se abastece em dólares, a inflação não lhes toca. Deste modo, a par da
inflação, ocorre ainda uma estratificação social anómala, para além dos limites habituais.
A entidade encarregada de combater a inflação é o Fundo Monetário Internacional – uma
das estruturas principais do estado-maior do capital transnacional.
E como o faz?
Vemos todos os dias como o faz. Se há inflação, isso significa que os trabalhadores têm
supostamente demasiado dinheiro. Então é preciso que tenham menos. Cortam os
salários, as pensões, as bolsas e estudo; serviços sociais antes gratuitos tornam-se pagos.
Uma vez que têm dinheiro a mais, então paguem!... Vemos a toda a hora nos ecrãs da
televisão essa «luta contra a inflação» do FMI e a sua contestação pelos trabalhadores
da Europa.
Mas será que a questão está no facto de os cidadãos comuns terem «enriquecido»? É
claro que não. O que se passa é que os seus países são sugados pelos EUA através da
engenhosa invenção do sistema do dólar. Com ele os EUA obtêm para si uma parte da
riqueza nacional de outros países. Eis porque a população local tem carências e sofre com
a inflação; e na senda da inflação surge o desemprego, uma vez que, segundo a receita do
mesmo FMI, se deve reduzir os postos de trabalho para reduzir ainda mais a massa
salarial.
Assim, qualquer membro da direcção do Fundo Monetário Internacional sabe
seguramente – pois não pode deixar de saber – que para pôr fim à inflação e em geral a
todo este pesadelo, só é preciso fazer uma coisa: rebentar a «bolha» do dólar.
Mas todo o actual «poderio» e «prosperidade» parasitária e injusta dos EUA assentam
na «bolha», e por isso defendem-na com a tenacidade de um buldogue. Mal Strauss-
Kahn balbuciou a substituição do dólar por um «cabaz de divisas», logo lhe enviaram
uma rameira, com a ajuda da qual puseram uma cruz na sua carreira profissional e
política. E nem vale a pena lembrar o que aconteceu a Saddam Hussein e a Khadafi, que
defendiam a adopção do ouro nas trocas internacionais.
Não vejo como passar daqui para o tema de Stáline…
Muito simplesmente. O objectivo pelo qual Khadafi e Hussein morreram foi concretizado
por Stáline ainda em 1950. Ou seja, retirou o país do FMI, para o qual tínhamos entrado
no ambiente de euforia do pós-guerra, e estabeleceu o rublo no padrão ouro. Ou seja,
blindou totalmente a economia da URSS contra uma ingerência externa.
4
O próprio modelo económico de Stáline, por muito paradoxal que pareça, constitui uma
síntese objectiva das melhores realizações alcançadas à época pelo capitalismo no seu
desenvolvimento económico.
Em qualquer corporação capitalista existe um sistema em duas fases de formação de
preços. Ou seja, o lucro é inteiramente extraído do preço do produto final que entra
realmente no mercado. Os sectores da corporação que se ocupam dos processos
intermediários de fabricação transmitem a sua produção ao longo da cadeia tecnológica
mediante os chamados preços de transferência, equivalentes praticamente ao preço de
custo. Os preços de transferência não incluem, por princípio, o componente do lucro. Os
sectores intermediários de produção recebem a sua parte do lucro depois da realização
do produto acabado.
Qual é a vantagem deste esquema?
A sua principal vantagem reside no facto de propiciar a redução do preço de custo do
produto final, uma vez que o preço do produto final não é sobrecarregado com o lucro dos
sectores intermediários, com o lucro, digamos, formado prematuramente.
E quanto mais baixo é o preço de custo, em condições iguais de mercado, maior é o lucro
e a competitividade, dado que permite uma maior margem de manobra dos preços no
mercado. Em caso de necessidade, é possível baixar o preço sem causar grande dano à
rentabilidade.
No tempo de Stáline este esquema estava generalizado em toda a economia nacional.
Mas não se deve inferir daqui que este esquema foi aplicado na sequência de uma decisão
particular nesse sentido. Ninguém tomou tal decisão, e provavelmente nem sequer o
próprio Stáline ou o seu círculo pensaram em tal coisa. Tratou-se de um processo
objectivo, que evidentemente não é tão simples como pode parecer.
Antes de mais, é preciso primeiro realizar uma revolução socialista, de modo a que todos
os meios de produção sejam concentrados nas mãos de um só dono – o Estado, e assim
transformar a economia nacional num complexo unificado.
Depois é preciso determinar, no quadro do conjunto da economia nacional, onde está o
produto intermediário e o produto final.
No quadro da economia socialista definiu-se como produto final os bens de consumo
final. Isto porque, em última instância, a economia socialista trabalha para a satisfação
das necessidades dos trabalhadores. Toda a massa de mercadorias de consumo geral é
pois o seu produto final.
Os bens de consumo geral são colocados directamente no mercado e comprados pela
população. O preço dos bens de consumo geral deve incluir o rendimento que em
princípio deve resultar do funcionamento do complexo económico nacional unificado no
socialismo.
Numa economia socialista construída correctamente, somente os bens de consumo da
população constituem mercadorias, no sentido pleno da palavra, e se subordinam às
relações monetário-mercantis.
5
Quanto ao produto intermediário, este é constituído por toda a produção destinada ao
processo produtivo e tecnológico. Com excepção da parte que é exportada e realizada
como mercadoria no estrangeiro, bem como aquela que é realizada no mercado de
consumo interno e incluída na categoria de mercadorias de consumo da população (por
exemplo, materiais de construção, etc.).
Os grandes meios de produção, em geral e no seu conjunto, não são mercadorias no
socialismo. Na URSS nunca foram, se excluirmos a iniciativa de Khruchov de vender
máquinas agrícolas aos kolkhozes, mas isso é um tema à parte. Em geral pode-se dizer
que os meios de produção não eram vendidos a ninguém. Eram financiados,
distribuídos segundo o plano.
Naturalmente que não se deve entender isto como se tudo fosse dado gratuitamente a
todos. Uma parte destes custos era assumida pelas próprias empresas e os grandes
investimentos de capital eram financiados pelo orçamento do Estado.
Poderá traçar-nos um quadro geral?
Como imagem geral temos toda a economia nacional transformada numa espécie de
corporação gigante que trabalhava para abastecer o mercado de consumo interno.
A produção destinada ao processo produtivo e tecnológico era transmitida ao longo da
cadeia tecnológica precisamente a preços de transferência (preço de custo acrescido de
um lucro mínimo não superior a 4-5 por cento). Esta norma do lucro «mínimo» era igual
em toda a economia nacional, isto é, estavam excluídas quaisquer manipulações do lucro.
O indicador decisivo era a redução do preço de custo.
Estes nossos preços de transferência eram designados de preço grossista da empresa.
Não estou a inventar nada. Pode pegar no Manual de Economia Política de 1954 e ler
tudo com os seus próprios olhos.
Quanto ao nosso produto final – mercadorias de consumo da população –, ele entrava no
mercado e era aqui realizado a preços de retalho. É verdade que os preços no mercado de
consumo eram estabelecidos pelo Estado, mas – como justa e insistentemente sublinhou
o conhecido economista Nikolai Veduta5 –, não mecanicamente e à toa. No período de
vigência do modelo de Stáline, os preços de retalho constituíam realmente preços de
equilíbrio entre a procura e a oferta. O preço do bem de consumo incluía ainda, em
geral, o rendimento que o Estado socialista, enquanto proprietário de todo o aparelho de
produção do país, podia extrair do funcionamento deste aparelho.
Como assim? Então de uma máquina de laminação o Estado não podia extrair qualquer
rendimento, mas fazia-o através do preço de uma caixa de rebuçados…
5 Veduta, Nikolai Ivánnovitch (1913-1998), economista soviético de nacionalidade
bielorrussa, professor, membro-correspondente da Academia Nacional de Ciências da
Bielorrússia, fundador da escola de planificação estratégica. É autor de mais de uma centena de
trabalhos. (N. Ed.)
6
Bom, se a máquina de laminação fosse exportada, o Estado extraía rendimento do preço.
Mas mesmo que não fosse exportada, o Estado ficava com uma parte do chamado lucro
mínimo da empresa produtora. Sublinho que toda a terminologia que utilizo era a
terminologia oficial daquela época.
Mas, repito, o principal componente de formação do rendimento estava incluído no preço
dos bens de consumo.
Nas empresas da indústria ligeira e alimentar (empresas do grupo B da produção social)
este rendimento do Estado era incorporado nos preços de venda das empresas e
designava-se «imposto sobre transacções».
Noto desde já que esta designação não é correcta, uma vez que pela sua natureza este
componente do preço não era um imposto. O eminente economista-planificador A.V.
Batchúrine sugeriu que fosse designado rendimento estatal, uma vez que o imposto
sobre transacções era inteiramente receita do Estado.
Na produção do grupo A, o preço de venda (de transferência) era o preço grossista da
empresa, que incluía um lucro mínimo. O preço de venda da produção do grupo B era o
chamado preço grossista industrial, que incorporava, além do lucro mínimo, ainda o
imposto sobre transacções (vamos por enquanto chamá-lo assim).
E para sermos totalmente exactos, no preço de retalho ainda se acrescentava os custos da
circulação e o lucro do comércio grossista e retalhista.
Ficamos com a impressão de que tudo isso era um tremendo «assalto» ao consumidor.
Quase toda a receita do Estado provinha das mercadorias que as pessoas compravam…
Nada disso. Na realidade, o resultado era precisamente o inverso. Graças ao facto de os
preços de toda a produção intermediária – materiais e recursos energéticos, máquinasferramentas
e máquinas, transportes, todo o tipo de equipamentos, instrumentos,
combustíveis e lubrificantes, etc. – estarem praticamente isentos de componentes de
formação de lucro, o preço de custo dos produtos finais – bens de consumo geral – era
incrivelmente baixo. Naturalmente que preço de custo diminuía em todos os elos da
cadeia tecnológica.
Uma coisa que não compreendo são as lamúrias de quase todos os escrevinhadores sobre
temas económicos, segundo os quais, alegadamente, a Rússia não é a América e sempre
sofremos (e estamos condenados a sofrer!) devido aos preços de custo extremamente
elevados dos nossos produtos. Em que é que se baseiam? Na realidade, na época em que
vigorou o modelo de Stáline (e em muitos casos, por inércia, até muito mais tarde) o
preço de custo de absolutamente tudo o que se queira era substancialmente mais baixo,
nalguns casos várias vezes, do que o mesmo produto fabricado na América ou na Europa.
Por isso, podia-se dar a volta a Moscovo de metro em ambas as direcções por apenas
cinco copeques, e apesar disso o metropolitano estava longe de ter dificuldades
financeiras. Enquanto na América paga-se um dólar por uma viagem só numa direcção e
sem transbordos.
Deste modo, entre o preço de custo do artigo de consumo e o seu preço de retalho havia
uma pesada camada constituída por esse imposto sobre transacções. Isto não era
7
nenhum «esfolamento» do consumidor, mas o resultado de uma elevadíssima eficiência
da economia socialista, quando estava organizada correctamente, de uma forma
marxista, stalinista.
Além disso, é certo que o Estado recolhia o imposto sobre transacções, mas logo devolvia
uma parte à população sob a forma de uma redução massiva anual dos preços de retalho.
E não é verdade que a baixa de preços incidia apenas sobre todo o tipo de tralha
invendável, como hoje falsamente se diz, mas sim e antes de mais sobre os produtos de
primeira necessidade: pão, sêmola, lacticínios e produtos de carne, batatas, legumes,
açúcar, etc. Tratava-se de reduções significativas, na ordem dos dez por cento e mais.
Isso era portanto uma forma bastante eficaz de elevar o bem-estar material dos
trabalhadores…
Não era simplesmente uma forma de elevar o bem-estar, mas sobretudo um dos dois
principais canais de entrega aos trabalhadores da sua parte do rendimento
proporcionado pelo funcionamento dos meios de produção de propriedade social.
Hoje toda a imprensa de «esquerda» está repleta de queixumes de que, alegadamente,
não havia propriedade social na URSS e que ninguém até agora foi capaz de definir o
conteúdo que a propriedade social deve ter no socialismo. Desculpem, mas a propriedade
social foi uma realidade social e económica no nosso país, em primeiro lugar durante o
período de Stáline. E quanto à sua definição, nós, a Plataforma Bolchevique e mais tarde
o Congresso dos Cidadãos da URSS, desde o início dos anos 90 que afirmamos que a
propriedade social existe quando estão socializados não só os meios de produção, mas
também o sobreproduto [mais-valia], quando está garantido que este chega às mãos
dos trabalhadores, enquanto proprietários de todo este património. Se a estes
proprietários é anunciado no dia 1 de Março de cada ano que os preços em toda a
economia nacional baixaram, isto significa que o seu nível de vida aumentou em dez ou
15 por cento.
Quero deixar bem sublinhado – tal como tenho repetido muitas vezes nos meus trabalhos
ao longo dos últimos vinte e tal anos – que, à excepção da redução sistemática e sensível
dos preços de consumo, não existe outro modo de o trabalhador comum se tornar dono
dos bens que lhe cabem proporcionados pelo funcionamento da propriedade social.
E não vale a pena inventar disparates como depositar uma parte da renda do petróleo na
conta pessoal de cada cidadão. Vimos, através do exemplo da Líbia de Khadafi, qual o
resultado desses pagamentos até muito generosos, quando aos olhos dos cidadãos se
perde a ligação entre esses pagamentos e o resultado directo do seu trabalho.
Mas disse que a redução dos preços é apenas um dos dois principais canais de elevação do
nível de vida…
Sim, o segundo canal é o aumento dos fundos de consumo social gratuito: instituições de
saúde, recreativas, culturais e de instrução e ensino, o desenvolvimento máximo das
infra-estruturas sociais, a construção de habitação, a melhoria das condições dos
pensionistas, etc. E tudo isto à custa da mesma «almofada» do imposto sobre
transacções e outras receitas do Estado.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

OPINIÃO 3

Questões filosóficas

O conceito filosófico de "reflexo" aplica-se às relações que unem o Ser e o Pensamento. A mente reflecte o mundo externo através de dispositivos próprios (sensações, esquemas, imagens, ideias). Reflexo - reflectir- significa aqui que o cérebro seria vazio se não existisse um mundo externo que activasse o aparelho sensorial; não significa excluir a actividade da mente. No quadro compreensivo de relações dialécticas entre o Sujeito e o Objecto (interacções, unidade, contradições) o conceito de reflexo é adequado, muito embora se possam utilizar outros conceitos. A tradição crítica (no interior dos marxismos ou no exterior) da teoria do reflexo resvala frequentemente para a redução do marxismo em uma teoria do conhecimento, posição na qual o idealismo penetra com facilidade. Lateralmente (ou como finalidade principal) ataca-se o chamado "positivismo" de Lénine na sua célebre obra "Materialismo e Empiriocriticismo". É certo que Lénine esclarece melhor as suas teses quando, posteriormente, estuda Hegel, como se constata nos seus "Cadernos filosóficos", porém não corrige nem descarta muito menos o conceito de reflexo; o que faz é acentuar a dialecticidade do fenómeno. É necessário que se compreenda o conceito no plano filosófico de defesa de uma ontologia. O marxismo é uma ontologia. Materialista e dialéctica.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Assim vai o mundo

O relatório ‘Panorama sobre a Agenda Global’ demonstra as maiores tendências de desigualdades para 2015, segundo um questionário realizado a 1.800 especialistas do World Economic Forum que concluem que apenas 0,7% da população mundial controla 41% de toda a riqueza, segundo o Jornal de Notícias.
No topo da lista está a desigualdade e o desemprego, ou seja, representam uma visão mais pessimista em comparação com os anos anteriores. O problema centra-se essencialmente nos salários estagnados que contribuem para um ciclo vicioso de desigualdades, além de as ofertas de emprego serem cada vez mais escassas.
“Tanto nos países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos, a metade mais pobre da população controla frequentemente menos de 10% da riqueza nacional”, indica o estudo.
O aumento da poluição, o maior número de eventos climáticos e a escassez de água também entra para a lista de preocupações.

Dos jornais

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

OPINIÃO 2

O aparecimento de uma estrela no firmamento político chamada PODEMOS lembra, por ora, as estrelas que o cinema (os media) fabricam, com mérito indiscutível muitas vezes dos próprios actores (quem discute o talento de Marlon Brando ou de Brigite Bardot?). Os organizadores e líderes carismáticos do novíssimo partido ou movimento espanhol possuem inegável talento. O discurso toca nos sentimentos e atitudes das camadas sociais intermédias (sobretudo cidadãos letrados e urbanos), eleitores do PSOE e da Direita que vêem frustradas as suas expectativas dos últimos 4 ou 5 anos.Se conquistar a simpatia das classes trabalhadoras organizadas nos ainda poderosos sindicatos (base social de apoio do PSOE), o PODEMOS transformar-se-à numa força arrasadora do espectro político em termos eleitorais. Veremos, então, se "arrasa" com as políticas neoliberais. As incongruências do SYRIZA (Grécia) recomendam-me cautela. A prática ainda é o melhor critério da verdade.


O Imperialismo,
Fase Superior do Capitalismo(*)
A elaboração de O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo começa a ser preparada por Lénine em meados de 1915 e formulações relativas ao imperialismo tornam-se particularmente relevantes nos seus escritos da segunda metade de 1915, antecedendo a redacção directa desta obra de Janeiro a Junho de 1916. De novos fenómenos do desenvolvimento do sistema capitalista à escala mundial já Lénine se vinha apercebendo há muito e abordando em vários escritos, de 1895 a 1913. Entretanto, a importância político-prática de uma síntese teórica mais ampla e fundamentada da nova fase do capitalismo, firmada de finais do século XIX para começos do século XX, ganhava particular acuidade com a preparação e eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. As perspectivas revolucionárias que se rasgavam, desde logo ao proletariado russo, mas não só, e a necessidade, para as aproveitar e mais seguramente se orientar na crise generalizada pela própria guerra, de derrotar o oportunismo no seio do movimento socialista - requeriam traçar «um quadro de conjunto da economia mundial capitalista nas suas relações internacionais», requeriam aprofundar «a compreensão de um problema económico fundamental, sem cujo estudo é impossível compreender seja o que for e formar um juízo sobre a guerra e a política actuais: [...] o problema da essência económica do imperialismo.»
Baseada no seu excepcional conhecimento das obras de Marx e Engels e guiando-se firmemente pelos seus princípios teórico-revolucionários essenciais, esta obra de Lénine constitui decerto um dos mais importantes desenvolvimentos criadores do marxismo, caracterizando profundamente a «fase superior do capitalismo» alcançada no processo histórico de actuação das leis essenciais de movimento do seu sistema. (...)
Hoje, em finais do século XX, a época histórica de transição do capitalismo para o socialismo, inaugurada pela vitória da revolução russa de Outubro de 1917, sofreu um brutal retrocesso com o desaparecimento da URSS e dos regimes socialistas dos países da Europa Ocidental. A derrota datada do modelo de socialismo que aí veio a configurar-se, todavia, não põe em causa a validade histórico-mundial essencial daquela tese leninista. Como o próprio Lénine justamente assinala (no seu trabalho Acerca da Brochura de Junius, escrito precisamente logo após a redacção de O Imperialismo...), «conceber a história mundial como avançando sempre regularmente e sem escolhos, sem saltos por vezes gigantescos para trás, é antidialéctico, anticientífico, teoricamente incorrecto.» (Obras Escolhidas, tomo 2, p. 409 - sublinhado meu.) O processo revolucionário é irregular, feito de avanços e recuos, de períodos de refluxo e de períodos de ascenso. E a nossa própria experiência histórica veio confirmar que, como afirmava Lénine noutro escrito, «a revolução social não é uma batalha única, mas uma época com toda uma série de batalhas por todas e cada uma das questões das transformações económicas e democráticas, que só terminarão com a expropriação da burguesia.» (Ibid. p. 273.) Outros avanços históricos se seguiram a 1917 e o mundo hoje é indelevelmente marcado pelo processo de emancipação social e nacional que percorreu todo o século XX, não anulado pelo salto atrás verificado há uma década.
Novos avanços se estão trabalhosamente preparando, por uma tenaz luta de classes em todo o mundo, nas entranhas do imperialismo, cujas contradições intrínsecas persistem e se aprofundam a uma escala ainda mais global. Como a recente (e ainda não encerrada) crise económica e financeira de 1997-1999 veio uma vez mais patentear, com perdas imensas de riquezas materiais e tremendas consequências sociais, evidenciando brutalmente os limites históricos das relações de produção capitalistas precisamente numa altura em que o triunfalismo da «globalização» capitalista se pretendia impor às consciências como inevitabilidade eterna, um ahistórico «fim da História».
Oitenta e cinco anos após ter sido escrita, e apesar de todos os desenvolvimentos ocorridos durante este período, a obra de Lénine O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo permanece de extraordinária pertinência e validade para a análise e compreensão da natureza do capitalismo contemporâneo e do real conteúdo da sua actual vaga de «globalização», tal como para a reafirmação do papel motor decisivo de classes dos trabalhadores e dos povos para a superação revolucionária do capitalismo.
(*)* Da Nota Introdutória, de Carlos Aboim Inglez à obra de V. I. Lénine, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Edições "Avante!", Lisboa, 2000.

«O Militante» - N.º 247 - Julho/Agosto 2000

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.