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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Avelãs Nunes:

Os Blair do mundo são tão terroristas quanto os do Charlie

publicado em 14 de janeiro de 2015 às 22:41

Avelãs Nunes é Charlie mas é também Mona Chollet, jornalista do Charlie sumariamente despedida em 2000 por protestar contra um artigo do editor da revista (Phillipe Val) que chamava os palestinos de “não civilizados”
Da Redação
Patrick Mariano é advogado, leitor e colaborador frequente do Viomundo.
Atualmente está em Portugal, onde é doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na Universidade de Coimbra.
De  lá, Patrick nos envia o artigo do professor António José Avelãs Nunes:
“António José Avelãs Nunes é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito e ex-Vice Reitor da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de vasta obra tendo como eixo os temas do capitalismo, direito, globalização e neoliberalismo. Além disso, suas obras trazem uma intrínseca preocupação com o ser humano, a desigualdade, as injustiças sociais e os sistemas das forças produtivas no mundo.
Entre seus livros, podemos citar: Industrialização e Desenvolvimento – A Economia Política do modelo brasileiro de desenvolvimento, obra prefaciada, na edição brasileira (editora Quartier Latin), pelo professor, historiador e economista paraibano Celso Furtado; e Neoliberalismo, globalização e desenvolvimento econômico, (2001) e A Constituição Europeia – A constitucionalização do neoliberalismo, (2006).
O professor Avelãs Nunes é um dos grandes críticos do processo de integração europeia e um dos maiores juristas portugueses.
Nesse texto, faz uma abordagem crítica ao episódio de Charlie Hebdo através de uma perspetiva histórica profunda. O fato de ser solidário ao trágico acontecimento, não o impede de denunciar os vários terrorismos, muitos deles praticados por chefes de estado”.
António José Avelãs Nunes, de Portugal,  especial para o Viomundo
Tenho acompanhado as imagens e os comentários sobre o massacre na sede do Charlie Hebdo, em Paris. Também eu penso que se trata de um massacre, algo que a civilização não pode comportar. Mas também penso, como alguns (não sei se muitos) outros, que o essencial a discutir, para preservar a liberdade e a civilização, não é propriamente a história trágica dos assassinos e dos assassinados.
Creio que é necessário recordar que foi o terrorismo que, em 1948, expulsou milhões de palestinianos das suas casas e das suas terras. E lembrar que os crimes por terrorismo não prescrevem. E lembrar que um dos mais célebres terroristas desse tempo (Menahem Begin) foi anos depois Primeiro-Ministro de Israel e condecorado com o Prémio Nobel da Paz (como, entre outros, Kissinger, Obama e a UE).
É preciso não esquecer que, desde 1967, Israel ocupa ilegitimamente, território palestiniano e que ninguém, na dita ‘comunidade internacional’, se lembrou de invadir Israel e matar o ‘ditador’, como fizeram com o Iraque. É preciso recordar que esta situação (com a construção ilegal dos colonatos, a construção do ‘muro da vergonha’ e muitas outras vergonhas toleradas (estimuladas e pagas) pelo ‘mundo livre’) constitui uma humilhação para os palestinianos e para o mundo árabe. É preciso não esquecer que a Carta da ONU reconhece aos povos ocupados o direito de resistir à potência ocupante por todos os meios, incluindo a luta armada.
Ninguém (entre os democratas) condena as forças da Resistência pelos atos de ‘terrorismo’ praticados contra o ocupante nazi; os salazarentos chamavam terroristas aos combatentes dos movimentos de libertação que Paulo VI recebeu no Vaticano; o ‘mundo livre’ (vá lá…, uma boa parte dele) chamou terrorista a Nelson Mandela e achou muito bem que ele estivesse preso por não renunciar à luta armada, até chegar à conclusão de que, afinal, aquele ‘terrorista’ era uma referência moral do mundo inteiro.
Talvez o ato mais importante (oxalá decisivo) contra o terrorismo islamita fosse obrigar Israel a cumprir as múltiplas decisões da AG da ONU no sentido de entregar aos palestinianos o território que lhes pertence (e já se deixa de lado o território pilhado pelas ações terroristas de 1948 e antes). Após a constituição do estado da Palestina (com a capital em Jerusalém), então poderia exigir-se a este e ao povo palestiniano que respeitasse a soberania e a segurança do estado de Israel.
Parece-me uma enorme hipocrisia aceitar (como estão a dizer as televisões) que Netanyahu (que comete atos inaceitáveis de terrorismo de estado, muito mais grave do que o terrorismo dos ‘fanáticos’) desfile ao lado dos que protestam contra o terrorismo. Como classificar os bombardeamentos de Israel sobre territórios palestinianos, sacrificando milhares de inocentes? Como classificar os atos do estado de Israel que, recorrentemente, destrói as casas de família dos familiares dos palestinianos que cometem atos de terrorismo contra cidadãos israelitas? Em nenhuma civilização os crimes de uns podem incriminar outros, só porque são familiares do criminoso. E se avendetta é repugnante quando praticada pela máfia, é muito mais repugnante quando praticada por estados que se querem civilizados. Como seria bom que, depois da barbárie nazi de Guernica e de Oradour crimes destes não se repetissem…
Em consequência de bombardeamentos e outros ataques israelitas, morreram, em 2014, 600 crianças palestinianas da Faixa de Gaza. Terão sido mortas para defender a liberdade de imprensa? Esses mesmos bombardeamentos mataram 17 jornalistas em funções na Faixa de Gaza. Talvez estivessem a abusar da liberdade de expressão. Uma coisa é certa: não se trata de terrorismo, são meros “danos colaterais”…
O que eu penso é que este massacre dos jornalistas franceses é mais um episódio desgraçado de uma guerra global feita pelo e em nome dos interesses do famosocomplexo militar-industrial, que não deixou Eisenhower governar segundo a sua vontade, que impôs ao mundo a guerra fria e todas as guerras quentes que fizeram do século XX um inferno e que continuam a marcar o séc. XXI. Em nome desses interesses é que o ‘mundo civilizado’, defensor da liberdade de imprensa, da tolerância e de todas as virtudes republicanas, criou, doutrinou, treinou, armou e pagou (e paga) os bandos terroristas islamitas inventados para expulsar os soviéticos do Afeganistão e depois replicados em várias outras situações.
Foi em nome da tolerância laica e republicana que todas as franças do ‘mundo civilizado’ inventaram o Kosovo (um ‘país’ que dá cobertura a uma base americana, entregue a bandos de terroristas e traficantes de mulheres, de armas, de droga e de tudo o que dê DINHEIRO) e o entregaram a extremistas islamitas? Foi a defesa da liberdade de imprensa que justificou, aqui há anos (1999, salvo erro), o bombardeamento pela NATO do edifício da televisão sérvia, provocando dezenas de mortos?
Na altura, o porta-voz do Pentágono justificou o ataque invocando que a TV da Sérvia fazia parte integrante da máquina de guerra de Milosevic. Quem se admira que osfanáticos do Islão pensem que o Charlie Hebdo faz parte integrante da máquina de guerra do ‘ocidente’ contra o Islão?
Dos fanáticos não pode esperar-se racionalidade (para já não falar de decência e de humanidade), mas do Pentágono (e da NATO e da ‘Europa’ que apoiou os EUA) temos o direito de exigir racionalidade e respeito pelos valores do homem. Recordo de ouvir então o ‘não-terrorista’ Tony Blair declarar na TV (uma TV boa, com certeza) que a TV sérvia era um alvo militar legítimo. Certamente porque apoiava o Presidente Slobodan Milosevic (que os EUA tinham declarado inimigo) e difundia notícias (até podiam ser inverdades…) que não agradavam ao Sr. Blair e aos ‘civilizados’ dirigentes da NATO.
Como nega agora o Sr. Blair idêntico ‘direito’ aos que se sentem ofendidos com os textos e cartoons publicados pelo Charlie? A liberdade de imprensa da TV sérvia era e a liberdade de imprensa da Charlie é boa? Quem define, então, o que é bom e o que é mau? Cá por mim, concluo que o Sr. Blair e outros vários Blaires são tãoterroristas como os que agora assassinaram os jornalistas do Charlie. Com algumas diferenças: os Tony Blair que, mentindo aos seus povos e ao mundo, fizeram guerra ao Iraque (e depois à Líbia e agora à Síria) mataram centenas de milhar de inocentes; nenhum deles foi morto pela polícia francesa; nenhum deles irá responder no TPI por crimes contra a humanidade.
Pergunto: foi em nome de quaisquer valores dignos do Homem que os Blaires do mundo fizeram a guerra contra o Iraque, contra a Líbia e contra a Síria? Esta guerra não é terrorismo de estado? Os milhões de vítimas que viram as suas vidas destruídas e os seus países destruídos não são vítimas de nenhum terrorismo? Então são vítimas de quê? Ou morreram de morte natural?
Quem criou e armou o bando dos “Amigos da Síria”? Estes ‘amigos’ não serão agora os ‘amigos do “estado islâmico”? Como em tantas outras situações da vida, o feitiço parece voltar-se agora contra o feiticeiro… Dramaticamente, talvez os ‘terroristas islamitas’, criados, doutrinados e pagos pelo ‘império’ atuem, sem se dar conta disso, por conta desse mesmo ‘império’, em todos os ‘estados islâmicos’ do mundo, em todas os ataques contra todos os Charlies em qualquer parte do mundo (no Mali, na Nigéria, na República Centro-Africana…).
E o que se passa na Ucrânia, entregue a bandos fascistas e facínoras, depois de um processo de luta que não seria tolerado em nenhuma capital europeia, nem mesmo em Lisboa (quem se esquece do gravíssimo atentado à democracia cometido pelos polícias que subiram umas quantas escadas que dão acesso ao edifício da AR?). O massacre cometido na Casa dos Sindicatos de Odessa não foi um ato terrorista? Quantos milhões de pessoas se manifestaram contra ele? Os jornalistas assassinados merecem todo o respeito e toda a solidariedade do mundo. Mas os que foram chacinados na Casa dos Sindicatos de Odessa não merecem idêntico respeito e solidariedade?
Quero deixar claro que, a meu ver, um ato de terrorismo não legitima (não torna lícito moralmente) outro ato de terrorismo. O terrorismo não pode justificar-se à luz da civilização. Mas talvez ajude a compreendê-lo (o sono da razão gera monstros!). O que é certo é que nenhum dos ‘terroristas’ comprometidos com os massacres no Iraque, na Líbia e na Síria vão ser chamados ao TPI, criado para ‘julgar’ os que  são de antemão considerados os maus. E os crimes cometidos pelos que estão do lado dos bons não são crimes, são atos de heroísmo praticados em defesa da democracia.
Esta ‘Europa civilizada’, que nos brindou (a nós e aos espanhóis) com trinta anos suplementares de fascismo, deu cobertura às prisões clandestinas semeadas pelos EUA em território europeu, verdadeiros Guantanamos onde muitas pessoas (quantas?) estão presas e são torturadas, anos a fio, sem culpa formada, sem acesso a advogado, sem contacto com a família, só porque os serviços secretos americanos decidem que assim seja (para combater o ‘terrorismo internacional’, é claro). Estes são crimes que deveriam envergonhar todos os defensores da liberdade, incluindo da liberdade de imprensa, em nome da qual, penso eu, os grandes órgãos da comunicação social silenciam estes e outros atos de terrorismo, as políticas sistemáticas e continuadas de terrorismo levadas a cabo por todos os Bush, por todos os Obama, por todos os Hollande-Sarkozys do mundo.
Por alturas do ataque às torres gémeas, o jornalista Francisco Sarsfield Cabral escreveu (no Público, creio) uma nota em que concluía mais ou menos deste modo: dizem agora que o mundo vai dar combate ao terrorismo internacional; pois bem: eu fico à espera para ver o que vai acontecer aos paraísos fiscais, por onde passa todo o tráfico de armas, drogas, mulheres, etc., e por onde passam as operações de financiamento do terrorismo internacional; se nada lhes acontecer, terei de concluir que o mundo, afinal, não quer combater o terrorismo internacional. Pois bem. O que aconteceu aos paraísos fiscais? O negócio corre de vento em poupa, cada vez mais próspero.
Olhando para a nossa Europa. Queremos maior atentado contra a democracia, contra a inteligência e contra a decência do que o desgraçado slogan  tatcheriano NÃO HÁ ALTERNATIVA (TINA)? Querem maior obscurantismo do que isto? Isto não é uma nova Inquisição? Não é em nome deste dogma que se estigmatizam todos os que não concordam com ele e persistem em proclamar a sua fé na liberdade de pensamento dos homens? Não é em nome deste dogma que se vêm aplicando as políticas de austeridade salvadora, humilhando povos inteiros, num retrocesso civilizacional perigosíssimo? Não são estes dogmas que impõem os tratados orçamentais, com todas as suas ‘regras de  ouro’ e outras de metais menos nobres, que matam a soberania dos povos da Europa e reduzem os ‘povos do sul’ a um indisfarçável estatuto colonial? Não são estes dogmas que, matando a soberania nacional, estão a liquidar o único quadro dentro do qual pode lutar-se pela democracia, pela liberdade, pela civilização? Estas ‘políticas terroristas’ não justificarão muito mais a unidade de todas as franças da Europa e do mundo contra aqueles que friamente as aplicam todos os dias e não apenas no desgraçado dia do massacre dos cartunistas doCharlie Hebdo? Não são estes os dogmas que todos os dias amordaçam a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa? Se metermos bem a mão na consciência, teremos de responder que sim: estes são os dogmas do pensamento único.
Para não remar contra a maré, eu sou Charlie. Estou do lado dos que foram assassinados, não estou do lado dos assassinos.
Mas estou também do lado de Mona Chollet, a jornalista do Charlie Hebdo que foi sumariamente despedida em 2000 por protestar contra um artigo do editor da revista (Phillipe Val) que chamava “não civilizados” aos palestinianos: então, a ‘liberdade de imprensa’ foi invocada para despedir uma jornalista, tendo-se conservado no seu posto o editor, substituído apenas em 2009 por Stéphane Charbonier, agora assassinado.
E estou igualmente (que bom se estivéssemos todos…) do lado dos 34 estudantes que foram barbaramente sequestrados, torturados e assassinados pelas ‘autoridades’ mexicanas por quererem manifestar publicamente as suas opiniões. E estou do lado dos sindicalistas massacrados em Odessa. E estou do lado das vítimas do terrorismo praticado em todos os ‘civilizados’ guantanamos do mundo. E estou do lado de todas as vítimas do terrorismo, desde as vítimas do terrorismo de estado (“danos colaterais” de bombardeamentos ou vítimas de drones criminosos) às vítimas do fanatismo de todas as religiões e às vítimas do sectarismo classista das políticas praticadas em nome doargumento TINA, que vêm empobrecendo e humilhando povos inteiros nesta nossa europa do euro.
Uma coisa é certa, para mim: ao contrário do que disse o nosso primeiro ministro, em todas estas ‘guerras terroristas’ quem se lixa é mexilhão! Mexilhões de todo o mundo, uni-vos!
António Avelãs Nunes

11.1.2015

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