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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Je suis Younes Amrani

15.01.12_Ruy Braga_Je suis Younes[Manifestantes em Clichy-sous-Bois, subúrbio de Paris, em novembro de 2005]
Por Ruy Braga.
Younes Amrani, jovem sub-empregado de origem marroquina, enviou em 2003 um e-mail ao sociólogo Stéphane Beaud. O propósito da mensagem era comentar o livro de Beaud dedicado às vicissitudes da massificação do ensino superior na França. Em “80 % au bac” et après?, o sociólogo francês documentou o relativo fracasso da política do Partido Socialista que, em meados dos anos 1980, decidiu estabelecer como meta do sistema educacional “80% de uma geração na faculdade”.1]/a> Pragmaticamente, o governo de François Mitterrand alimentou a esperança de integração nacional e de progresso social de milhares de jovens filhos de imigrantes ao mesmo tempo em que manipulou a taxa de desemprego por meio da extensão do tempo de permanência escolar.
Pelo conteúdo das mensagens eletrônicas trocadas ao longo de um ano entre Amrani e Beaud, é possível perceber que a substituição do mundo do trabalho pelo ensino superior como meio de integração dos imigrantes ampliou a fratura entre diferentes gerações e promoveu a inquietação social dos subalternos.2 Por um lado, a esperança de fazer parte de uma classe trabalhadora sindicalmente organizada que alimentou os sonhos dos pais desapareceu com o desmanche neoliberal do operariado francês. Por outro, as expectativas de progresso ocupacional dos filhos dos imigrantes estimuladas pelo acesso ao ensino superior sucumbiram ao subemprego, à degradação social das periferias e à violência policial.
Algumas dimensões-chave do sofrimento íntimo e do ressentimento social do jovem precariado de origem imigrante na França aparecem condensadas na trajetória de Amrani: a relação usualmente tensa com os professores franceses, o abuso de substâncias psicoativas, a experiência da discriminação racial, a realidade da pobreza, a solidariedade dos companheiros do bairro, a aproximação em relação às posições da extrema-esquerda, as decepções políticas, o sentimento de segregação espacial e a presença marcante da religiosidade na família. Aos poucos, o diálogo amistoso entre um jovem de origem marroquina e um sociólogo crítico revela as razões pelas quais a pátria do iluminismo transformou-se no “país da infelicidade” para os filhos de trabalhadores imigrantes.
A leitura das mensagens serve também para apagar o estigma que marca o “mec de banlieue”, isto é, o árabe que mora nas periferias das grandes cidades francesas. Ao contrário do que muitos poderiam imaginar, Younes Amrani é simplesmente um jovem tão inteligente quanto outro qualquer. Suas opiniões são muito razoáveis e suas observações jamais deixam transparecer um traço sequer de fanatismo. Como vítima consciente da violência sistêmica que desestrutura as famílias trabalhadoras é possível notar certa condescendência em relação a algumas atitudes violentas de seus amigos do bairro. Mas, o que prevalece em suas mensagens não é o ódio e sim o sofrimento resultante da subjetivação da violência inerente à reprodução das contradições do capitalismo francês. Um sofrimento que, por vezes, transborda os limites da angústia íntima, revelando-se publicamente em explosões de violência inorgânica.
Alguns dirão que ondas de rebeliões populares protagonizadas por imigrantes, como as revoltas de novembro de 2005 nas “cités populaires” francesas, por exemplo, não são um fenômeno novo.3 Mas, a realidade é que o neoliberalismo esgarçou o tecido social francês ao ponto de modificar até mesmo a natureza do chiste. Novamente, Stéphane Beaud, junto com Michel Pialoux, em sua conhecida etnografia do grupo operário da fábrica da Peugeot em Sochaux-Montbéliard, registraram o fenômeno.4 Os “imigrantes” sempre foram os alvos prioritários das zombarias dos operários “franceses”. Ocorre que durante o período fordista, as brincadeiras eram predominantemente amistosas, funcionando em proveito da socialização de turcos e marroquinos. Afinal, bem ou mal, todos faziam parte de um mesmo e orgulhoso grupo social.
Após a reestruturação produtiva dos anos 1990, contudo, a realidade fabril mudou sensivelmente. Uma rede de empresas subcontratadas formou-se como resultado das estratégias gerenciais de terceirização implantadas pela Peugeot. A rotatividade aumentou, a competição no interior do grupo fabril tornou-se a regra, os salários caíram, as carreiras foram simplificadas, o sindicato passou a ser hostilizado pelas gerências e o sistema fordista de solidariedade fabril colapsou finalmente. Os filhos dos operários imigrantes foram acantonados nos postos mais degradados sem a mínima chance de progredirem em termos ocupacionais.  
Neste novo contexto, o trabalhador francês passou a caçoar do jovem precariado “imigrante” não a fim de integrá-lo, mas para legitimar sua segregação na fábrica. O marroquino e o turco deixaram de ser “companheiros”, transformando-se em uma ameaça aos salários e às conquistas trabalhistas. Dispensável dizer que esta mudança alimentou tensões racistas registradas por Beaud e Pialoux no interior da fábrica. Estas tensões revelavam-se, por exemplo, nos conflitos entre “franceses” e “imigrantes” em torno da maneira de educar os jovens. Sumariamente, parte importante do operariado nacional percebeu sua “respeitabilidade” ameaçada pela presença do “imigrante”. O aumento da votação operária na Frente Nacional de Le Pen na região de Sochaux-Montbéliard resultou, em grande medida, do aprofundamento destas tensões.
De fato, o humor pode cumprir estes dois papéis: a integração social via banalização das diferenças ou a segregação via estereotipação e essencialização das subjetividades. Portanto, é preciso estar atento ao fato de que muitas reportagens e charges publicadas pelo Charlie Hebdo retratando o profeta Maomé e a população muçulmana serviam indiretamente para reforçar a segregação social dos povos de origem árabe na França. A despeito de não ser este o objetivo dos jornalistas, muitas sátiras publicadas pelo semanário francês vitimado pelo bárbaro e covarde ataque da semana passada estereotipavam os “imigrantes”.  
Imediatamente após o atentado ao Charlie Hebdo, uma mesquita parisiense foi atingida por tiros e um restaurante muçulmano incendiado. O recado é claro: os muçulmanos são os culpados. Eis a essência da estereotipação. Pela natureza politicamente regressiva do atentado em Paris, na Europa, combater a islamofobia e defender as populações de origem árabe dos ataques filo-fascistas tornaram-se as principais tarefas das forças progressistas. No entanto, isto não significa que devamos nos acomodar às opiniões daqueles, inclusive na esquerda, que condenaram o semanário apoiando-se em um cínico relativismo cultural ou na defesa mais ou menos velada da “identidade religiosa” dos muçulmanos. Sobretudo, devemos evitar cair na armadilha do “afinal, o jornal foi longe demais nas sátiras” ou algo do gênero.
Na verdade, estas posições apenas elidem a questão-chave: o massacre do 7 de janeiro não tem nada a ver com o Islã. Afinal, que fé seria esta se um crente se sentisse realmente ameaçado por charges? Isto não faz o menor sentido! Na realidade, este atentado foi uma explosão brutal de violência preparada e nutrida não por ofensas ao profeta, mas por décadas de reprodução dissimulada de um tipo de violência sistêmica cujas razões últimas devem ser buscadas no recente ciclo da mundialização capitalista. Neste sentido, as motivações religiosas dos jihadistas simplesmente não importam. Mesmo que assim se reivindiquem, Chérif Kouachi, Said Kouachi e Amedy Coulibaly não devem ser considerados fundamentalistas religiosos, mas simplesmente extremistaspolíticos que instrumentalizaram uma confissão religiosa a fim de espetacularizar organizações autoritárias.
Ao fim e ao cabo, o objetivo do massacre foi seduzir e recrutar jovens “imigrantes” oprimidos pelo aprofundamento da exploração econômica e pela ameaça da exclusão social para as fileiras da Al Qaeda (irmãos Kouachi) e do Estado Islâmico (Coulibaly). Estes agrupamentos extremistas, largamente minoritários no mundo muçulmano e imersos em uma competição entre eles próprios, alimentam-se das guerras e dos ataques neocolonialistas aos países árabes, do desmonte do Estado social, do aumento das desigualdades entre as classes e da defensiva das forças políticas de esquerda em uma Europa cada dia mais prisioneira do despotismo financeiro para ampliar o alcance de seu poder despótico.
Porquê então atacar o Charlie Hebdo? Simplesmente por se tratar de um alvo conveniente para a espetacularização da agenda política destes agrupamentos. Assim, independentemente do teor polêmico das charges e matérias publicadas pelo semanário esquerdista, Charb, Wolinski, Cabu, Tignous, Phillippe Honoré, Bernard Maris, Mustapha Ourad, Elsa Cayat, além de Franck Brinsolaro, Ahmed Merabet, Frédéric Boisseau e Michel Renaud, serão lembrados como mártires da resistência democrática ao avanço do obscurantismo político e do autoritarismo armado.
E, perfilados ao lado das lutas sociais futuras, certamente encontraremos milhares de Younes Amrani, jovens trabalhadores precarizados, filhos e netos de imigrantes, em sua maioria, defendendo a liberdade de expressão, reivindicando direitos sociais nas ruas e desafiando com seus incontáveis exemplos de dignidade pessoal os estereótipos criados para oprimí-los. O futuro da Europa está nas mãos dos Amranis, não dos Kouachis.
NOTAS
1. Ver Stéphane Beaud. “80 % au bac” et après? Les enfants de la démocratisation scolaire. Paris, La Découverte, 2003.
2. Ver Stéphane Beaud, Younes Amrani. Pays de malheur! Un jeune de cité écrit à un sociologue. Suivi de des lecteurs nous ont écrit. Paris, La Découverte, 2005.
3. Ver Chakri Belaïd, Clémentine Autain e Stéphane Beaud. Banlieue, lendemains de révolte. Paris, La Dispute, 2006.
4. Ver Stéphane Beaud e Michel Pialoux. Retorno à condição operária: investigação em fábricas da Peugeot na França. São Paulo, Boitempo, 2009.
*** in BOITEMPO

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