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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

FÁBULAS – SARA



FÁBULAS – SARA
Vasco de Espinosa fora meu condiscípulo no Liceu de António Enes, na então Lourenço Marques. Adolescente, embora, era já alto, quase gordo (este “quase” perdê-lo-ia com a idade), eu mal lhe dava pelos ombros. Vasco tinha uns olhos escuros e mansos, inteligentes e constantemente observadores. Nada neles havia de astúcia ou “esperteza”. Leal na amizade mas teimoso como uma mula. Verbo fácil mas seco, frases enxutas até ao osso, de sintaxe perfeita. Encarava-me fixamente quando falava, enquanto eu, ao invés, fixava um ponto inalcançável no horizonte e ali me quedava. Enquanto eu jogava o jogo das metáforas e metonímias, ele encadeava os raciocínios à maneira dos geómetras. Dizia que o método dos geómetras era o único que permitia escapar aos preconceitos: “ E só esta razão teria por certo bastado para que a verdade permanecesse para sempre oculta para o género humano, se a matemática, que se ocupa não dos fins, mas das essências e das propriedades das figuras, não tivesse mostrado aos homens uma outra verdade.”
Quando pelo meu emérito professor de filosofia, de nome Cansado Gonçalves, banido para a colónia pelo Salazar, ouvi falar de Baruch Espinosa, o filósofo judeu holandês filho de portugueses, questionei o Vasco sobre as suas origens. Que sim, muito provavelmente descendia de um primo de Baruch, marrano que se instalara cautelosamente no Alto Douro, conforme seu pai investigara em arquivos. Havia até em casa uma reprodução emoldurada de um célebre retrato do “Príncipe dos filósofos”. Percebi então que ele citava de memória trechos das obras do judeu “embriagado de Deus” como alguém o descreveu. E que os seus olhos evocavam os grandes olhos de Baruch, no retrato, o prenúncio de um sorriso indecifrável.
Adolescentes, namorámos à vez a mesma moça. Primeiramente eu, depois ele. Sara era uma morenita de belíssimos olhos verdes (por causa deles chamavam-lhe no Liceu a “Soraya”, fulgurante esposa do Xá da Pérsia), uma doçura em pessoa, que os pais, de origem modesta, vigiavam à maneira antiga sem motivo algum que não fosse a inferioridade protegida das mulheres. Troquei-a (terrível expressão!) sem apelo e muito agravo por um mocetona de olhos celestes e cabelos de trigo maduro, nem mais inteligente, nem melhor pessoa, apenas atrevida e irremediavelmente sedutora. Mergulhei uns parcos meses nas ondas oceânicas da perdição. Largou-me com a tranquilidade esfíngica de Afrodite e passou-se com armas e bagagens para os braços atléticos de um campeão de basquetebol. Quando quis regressar à espuma de açúcar da Sara, com a corda ao pescoço como o Egas Moniz, fez-se tarde: já o Vasco se enamorara dela (suspeitei que sempre estivera enamorado) e reciprocamente julgo eu.
Até ao termo dos estudos liceais convivemos puco, talvez por essa razão. Via-os sempre juntos e isso não me dava jeito nenhum. Contudo, conversávamos durante e após algumas palestras a que assistíamos sobre cinema ou teatro (artes muito frequentadas na cidade, ao tempo do crítico Eugénio Lisboa e do saudoso Mário Barradas). A propósito de assuntos que viramos tratados em filmes ou livros, lembro-me de alguns ditos dele: “Todos os preconceitos (…) dependem de um só, os homens supõem comummente que todas as coisas naturais agem como eles próprios, tendo em vista um fim e, mais ainda, consideram coisa certa que o próprio Deus tudo dispõe em vista de um determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coisas para o homem (…) todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e todos têm vontade de buscar o que lhes é útil, disso tendo consciência. Daqui decorre, em primeiro lugar, que os homens se julgam livres, porque têm consciência da sua volição e do seu apetite, e que não cuidam, nem mesmo em sonhos, das causas que os predispõem a desejar e a querer, posto que as ignoram. Decorre, em segundo lugar, que os homens agem tendo em vista um fim, ou seja, tendo em vista o que de útil desejam (…) Além disso, encontram em si próprios e fora de si próprios um grande número de meios que lhes servem excelentemente para obter o que lhes é útil (…) Acabam assim por considerar todas as coisas naturais como meios ao serviço da sua própria utilização.” Creem-se meios para Deus e tomam Este como um meio.
O tempo passou. Vim estudar Letras para a Metrópole, o Vasco ingressou em Engenharia, aluno que fora excecional nas matemáticas. Envolvi-me na urgência de um combate contra a ditadura, combate que se afigurava mais legítimo que o imperativo categórico de Kant. Renunciei a prazeres da juventude para não perder tempo nem vacilar, esticando a corda da “ potência de ação” até ao limite da minha natureza, diria Espinosa. Quando após um fatídico desastre de automóvel estive internado seis meses num hospital, recebi a visita do Vasco. Estava mais alto, mais gordo, mais inteligente. Como eu me encontrava detido sob a vigilância da PIDE, evitou-se falar de política. Apenas proferiu estra sentença que bem lembro: “ Ao homem nada é mais útil do que o homem; os homens (…) nada podem desejar de melhor para conservarem o seu ser do que estarem todos de acordo sobre todas as coisas, de tal maneira que os espíritos e os corpos de todos componham por assim dizer um único espírito e um único corpo, e todos se esforcem ao mesmo tempo, tanto quanto possam, por conservarem o seu ser, e todos procurem ao mesmo tempo o que é útil a todos”. Tens escutas aqui no quarto do hospital? - Não, as enfermeiras já vistoriaram tudo. Então, disse subtilmente, bem a seu modo: a causa essencial da degradação dos Estados reside na corrupção das leis que preservam a igualdade e a liberdade, e de que quanto maior é a liberdade melhor se defende a segurança do Estado e a sua estabilidade. Na Democracia autêntica, os cidadãos ao delegarem no Estado direitos e deveres não perdem, por isso, os seus direitos naturais, são tanto mais ativos e criadores quanto mais o Estado preservar a liberdade e a segurança de todos. E os deveres? - Pois, está por redigir-se uma Declaração Universal dos Deveres do Homem e do Cidadão, retorquiu.
Meses depois de ter alta do hospital, apoiado em muletas, a PIDE veio prender-me em casa pelas sete horas da manhã. Nessa primeira prisão não festejei o Natal e o Ano Novo, enjaulado nos calabouços da Rua do Heroísmo, na cidade do Porto. Algum tempo após esse “batismo de fogo” encontrava-me eu no Café Ceuta que os antifascistas frequentavam e nele se distribuíam panfletos escondidos em livros de estudo quando me apareceu o Vasco. Vinha saber do meu estado de saúde e de ânimo. Dessa conversa recordo o seguinte dito: “Todo o homem sofre afeções e, sobre elas, afetos. Chama-se desejo quando tem consciência dos apetites, esse é o seu estado comum e natural. Todos nós temos tendência para ser, ou seja, para agir, e devemos distinguir entre os afetos aqueles que aumentam a nossa potência de agir, ou, pelo contrário, a diminuem. Daí resulta que a nossa luta é sempre entre a submissão e a liberdade. Encontramo-nos sempre submetidos a paixões como parte da natureza que somos. Quando o corpo encontra outros corpos que se adequam à nossa natureza, sentimos alegria; em caso contrário, é tristeza que sentimos, ou ódio, ou inveja; o amor é a alegria acompanhada pela ideia de uma causa exterior que realiza um encontro positivo; a esperança, alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada cujo desfecho nos parece duvidoso; e é o medo o sentimento mais comum e com o qual aqueles que nos submetem nos manipulam.
Em suma: Sara, de olhos oceânicos, fora para o meu amigo o tal raro “encontro adequado”.
Vasco convidou-me para o seu casamento. Com Sara evidentemente. Realizou-se no restaurante panorâmico no Bom Jesus do Monte, Braga. Pude dizer que ambos se mostravam abençoados por uma “paixão alegre”.
Cada um seguiu o destino que escolheu “com a sua circunstância”. De quando em vez ia sabendo dos sucessos do amigo Vasco na sua qualidade de engenheiro. Dirigia obras espetaculares nos quatro cantos do planeta. Imaginava-o no seu vasto ateliê, compenetrado, a tentar descobrir os materiais mais revolucionários, exatos, perfeitos, expressões criadoras da Razão, capazes de vencer todos e quaisquer “constrangimentos externos”, à maneira do seu ilustríssimo primo. A sua bela Sara a chamá-lo para o jantar e ele, distraído dos prazeres mundanos, a teimar penetrar nos segredos do infinitamente pequeno. A paixão da Razão.
Dez anos depois esperava-me em casa uma missiva do Vasco. Duas curtas frases, em letra firme e geométrica: “Sara morreu-me. Doença incurável. Vou residir para o Brasil onde o meu trabalho é reconhecido. Até sempre meu amigo.”
Nunca mais soube nada dele. Até que, certo dia, à beira da passagem do milénio, estava eu em casa rememorando a ÉTICA de Espinosa, minha mulher mostrou-me a página de um jornal onde se lia: “Faleceu o engenheiro Vasco de Espinosa. O funeral realiza-se amanhã pelas 10h. “ Em cima uma fotografia.
Vasco teria regressado a Portugal e eu ignorava! Talvez sabendo-se sofrer de doença incurável veio para a sua pátria para morrer. Fui. Algumas dezenas de pessoas acompanharam o féretro para o Cemitério dos Prazeres. Deixei-me ficar postado a um canto vendo os grupos escoarem-se aos poucos. Chuviscava. O sol, indiferente na sua natureza, não lhe prestou homenagem. Ao dirigir-me para o carro fui interpelado por um indivíduo envergando um fato austero de ocasião, óculos escuros, que me perguntou delicadamente se eu era…(disse o nome), aquiesci, e desfechou-me esta seta mortal: “ O falecido era muito seu amigo. Eu sou, quero dizer, fui, o seu advogado desde sempre. Um mês antes da sua morte, Vasco pediu-me que fosse o senhor a tratar do destino da sua biblioteca e escritos. Acha-se capaz dessa tarefa?”. Fiquei abismado. Estive demasiado tempo a olhar fixamente o indivíduo para acreditar no que ouvia, por fim consegui balbuciar: De que morreu o Vasco? Doença fulminante? Sofreu muito? O homem desenhou a custo um sorriso triste e redarguiu com estas palavras misteriosas: “Morreu…ou deixou-se morrer simplesmente.” Talvez se tenha matado, pressenti. Trágico fim para um espinosista que tem o suicídio como um ato absurdo, na medida em que não existe em nós força maior do que conservar o nosso próprio ser, e o verdadeiro filósofo pensa mais na vida do que na morte …
Logo que pude dirigi-me à morada que me fora indicada, moradia de arquitetura sóbria mas elegante, ao redor um amplo jardim abandonado. O escritório: enorme ateliê, milhares de livros e dossiês. Procurei horas a fio o que ansiosamente buscava: Cadernos onde se espelhariam os frutos revolucionários de uma mente excecional, equações e cálculos matemáticos a que eu me vergaria impotente, construções utópicas, nanotecnologias de ponta, realidades virtuais com as quais deixaríamos de saber qual seja a verdadeira, pontes visionárias e réplicas exatas de órgãos humanos…
Encontrei. Eram dezenas de pastas contendo folhas soltas. Li na primeira: “Sara”. Li na segunda, terceira, centésima: “Sara”. Em todas elas uma data. Nada mais do que isto. O sentido da vida. Um nome.
Um nome para a eternidade.
NOZES PIRES


2 comentários:

Meg disse...

Acabei de ler, Zé!
Só tenho a dizer que tenho muito orgulho em ser tua amiga.
Um abraço e saudades.

Nozes Pires disse...

Obrigado Meg. Tudo de bom para ti.

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