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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016


A mulher mais violenta que trabalhou na PIDE
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Enquanto despia, humilhava e espancava as suas vítimas na sede da polícia política, perguntava: Fala ou não fala, sua puta? Chamavam-lhe Pide Leninha
É uma delicada senhora de 72 anos, mas não se contém e sussurra: "Ai esta cabra!" Já passaram 44 anos sobre aquele dia, em Abril de 1965, em que Conceição Matos foi espancada e humilhada pela agente Madalena, na sala de interrogatórios do terceiro andar da sede da PIDE. É muito tempo, mas a histórica militante comunista ainda hoje sofre de insónias. Quando a SÁBADO lhe mostra as declarações da antiga funcionária da PIDE à justiça, nas quais esta desmente o seu depoimento, inquieta-se, agita-se na cadeira, deixa escapar o desabafo, quase impercetível, e depois leva logo as mãos à boca como quem pede desculpa. Conceição Matos tinha 29 anos quando foi detida no Montijo. Levaram-na para a sede da Polícia Internacional de Defesa do Estado, onde não a deixaram dormir nem ir à casa de banho – teve de fazer as necessidades à frente de toda a gente e ainda limparam os excrementos e a urina na sua roupa. Ao fim de três dias, uma agente entrou na sala e comentou com o chefe: "Esta ainda cá está? Meu inspector, ela não fala connosco mas, se chamar a Leninha, talvez fale." Quando voltou ao edifício da Rua António Maria Cardoso, Conceição Matos percebeu que esta Leninha era a agente Madalena, "uma mulher tenebrosa", como lhe chamou durante a conversa com a SÁBADO. Perante a sua recusa em delatar as atividades do PCP, um inspector avisou: "Então vamos começar com o espetáculo!"  "Chora, sua puta, não te podes rir"  "Fala ou não fala, sua puta?", perguntava Madalena, enquanto a despia, peça por peça, com a ajuda de uma colega. Uma dezena de homens da PIDE entrou na sala, para ver uma mulher sem roupa, que tentava esconder-se atrás de uma secretária mas era puxada pela agente Madalena, para ser vista por todos. Conceição Matos desatou aos gritos, a contar o número de agentes que se encontravam na sala – quando chegou ao décimo, os polícias sentiram-se intimidados e saíram. "Ela começou a dar-me pontapés nas canelas, bofetadas e murros na cara, deu-me um ataque de riso nervoso e ela só dizia: ‘Chora, sua puta, não te podes rir, tens de chorar.’" Entrou na sala um agente com uma máquina fotográfica, que ficou desiludido por ver a presa já vestida, e Madalena respondeu-lhe com "uma série de ordinarices", recorda Conceição Matos: "Ver nua, esta merda? Ela não vale nada. Para os comunistas qualquer merda serve. Basta ter um buraco e fazer os movimentos."http://cdn.sabado.pt/2015-10/img_472x263$2015_10_22_19_16_23_141201.jpgA violência acabou quando a agente se cansou. "Vamos embora que esta merda não fala. Se eu ficar mais tempo espatifo-a toda." São as últimas palavras que a militante comunista se lembra de ter ouvido de Madalena. Só voltou a vê-la mais de 10 anos depois, quando depôs no julgamento. Quando falou com a SÁBADO, nem sabia que Madalena já morreu há seis anos.
"Nem te lembras do teu filho"
Conceição Matos foi uma das cinco pessoas que testemunharam contra Madalena Oliveira no Tribunal Militar, em 1977, de acordo com o processo consultado pela SÁBADO no Arquivo Histórico-Militar. Maria Madalena Castanha, camponesa analfabeta do Couço, no Ribatejo, acusou a ré de lhe ter dado uma "sova assustadora", que a deixou a sangrar do nariz e com várias feridas na cara, provocadas pelo impacto dos anéis de Madalena na sua pele. Maria Custódia Chibante registou o "porte altivo e olhar cínico" da agente, que lhe deu pancadas na nuca. "Esta está à Camões", terá dito Madalena quando a viu já com um olho negro, depois de ter sido espancada por outra agente por se recusar a comer. Maria da Conceição Figueiredo também se queixou de ter sido espancada e esbofeteada com um depoimento pleno de rancor: "É mal empregado empregar-se o termo de mulher porque não o era, era uma fera, uma víbora venenosa. (...) Era tão vil essa fera que quando me espancava falava no meu filho. Como eu nada dizia nem chorava, pelo contrário até parecia que ganhava mais coragem, dizia: ‘Puta, que nem te lembras do teu filho.’" Madalena Oliveira e os seus advogados foram desmentindo ao longo do processo que tivesse torturado qualquer presa e alegaram que todas as testemunhas de acusação estavam a ser manobradas pela "máquina montada pelo PCP" em busca de uma vingança contra a perseguição da PIDE. Mas o tribunal valorizou a espontaneidade das queixosas, "algumas delas simples mulheres do povo". A sentença, lida a 25 de Julho de 1977, condenou-a a uma pena de quatro anos e quatro meses de prisão, por ter cometido crimes de violências desnecessárias no exercício de funções e por ter sido chefe de brigada – foi, aliás, a única mulher a atingir um posto tão elevado na hierarquia.
http://cdn.sabado.pt/2015-10/img_472x263$2015_10_22_19_15_39_141198.jpgA promoção foi justificada com "méritos extraordinários" num despacho assinado pelo diretor da PIDE, Silva Pais, em 1968, quando Madalena tinha apenas 31 anos. Filha de uma doméstica e de um eletricista, e sobrinha de um simpatizante comunista que passava informações à polícia, Madalena Oliveira entrou na polícia política como escriturária em 1955. Conheceu pouco depois o homem com quem iria casar-se, quando se deslocou a Braga para assistir a um jogo de futebol do Benfica, de que era adepta ferrenha. Após uma lua-de-mel no Hotel Estoril-Sol, apenas viveram juntos dois anos. Madalena Oliveira descobriu, entretanto, que o marido tinha outra família no Minho, com várias crianças, uma das quais nasceu na mesma altura que o seu filho. A relação foi sempre tumultuosa, ao ponto de o marido ter sido detido pela PIDE, depois de vários episódios de violência doméstica. "Ela chegou a ter os óculos postos noite e dia para disfarçar os olhos pretos, por causa das murraças que ele lhe dava", recorda Maria Lucinda, 61 anos, uma das melhores amigas de Madalena desde a infância e sua testemunha de defesa no julgamento – ainda se recorda do alarido das sirenes e polícias armados que rodeavam a ré à chegada a tribunal. "Impressionou-me bastante. Pensei que vinha lá uma assassina e afinal era a minha Nani." Era esta a alcunha da agente Madalena junto da família, onde nunca foi conhecida por Leninha. A seguir à revolução, Maria Lucinda viu na comunicação social acusações terríveis à amiga, mas não teve coragem de lhe perguntar nada sobre elas. Também nunca falaram sobre a PIDE. "Pensei: ‘Ó meu Deus, será que fazia estas coisas?’ Eu não acredito. Mas se fez mal a alguém, foi bem castigada porque teve uma vida muito difícil."
Sempre de pistola na mala
O filho da agente, Luís Marques, 53 anos, lembra-se de que a mãe aproveitava a regalia de não pagar bilhete no cinema para ir ver todos os filmes de ação, violência e espionagem. Mas raramente contava histórias do trabalho em casa. Apenas recorda à SÁBADO uma operação que a mãe lhe descreveu e que pode ter justificado a promoção: "Recebeu um louvor porque ajudou na detenção de um elemento perigoso no Montijo – ele ia de bicicleta e quando mudou de direção a minha mãe saiu do carro de arma na mão para o prender."
http://cdn.sabado.pt/2015-10/img_472x263$2015_10_22_19_16_29_141203.jpgMadalena Oliveira andava sempre com a pistola na mala, desde que passou à categoria de agente, em 1961 – foi nessa altura que as mulheres entraram em força na polícia
política, para substituir os agentes destacados em comissões de serviço para África, por causa da guerra colonial. O seu trabalho principal quando deixou as tarefas burocráticas passou a ser o acompanhamento e vigilância de detidas. "As agentes estavam nos piquetes da tortura de sono, para não deixar os presos dormir, participavam nos espancamentos e revezavam-se de quatro em quatro horas. Depois vinha o inspector mais responsável pela instrução do processo, para fazer as perguntas", explica à SÁBADO a historiadora Irene Pimentel, autora do livro A História da PIDE. Segundo a investigadora, as agentes destacavam-se ainda por rebaixarem os presos com provocações sexuais. Citado no livro Memórias da Resistência Rural no Sul, Couço 1958-62, de Paula Godinho, Jerónimo Bom conta que a agente Madalena o despiu e lhe mexeu em todo o lado, chamando-lhe "paneleiro e panasca" para o humilhar. Também Helena Neves relatou em 1994 à Visão a forma humilhante como Madalena a revistou à entrada de Caxias – "Enfiou-me dois dedos na vagina e comentou: ‘Sabe-se lá onde vocês metem as coisas!’" Eugénia Varela Gomes, outra presa política, relatou uma proeza: como conseguiu não ser agredida pela agente Madalena, que a vigiava num dos turnos da noite, quando foi interrogada em 1962. "A raiva dela crescia, massacrava-me com insultos, era a agente mais malcriada e mais violenta, mas ainda não me tinha tocado." Eugénia foi presa depois de o marido ter liderado o "golpe de Beja", um assalto ao quartel daquela cidade para iniciar o derrube do regime de Salazar. A todas as perguntas da PIDE, nos sete dias em que a mantiveram retida no edifício da Rua António Maria Cardoso, respondia o mesmo: "Não participei nem na preparação nem no assalto ao quartel de Beja, mas estou de alma e coração com o meu marido e os companheiros dele."  Numa das noites, quando percebeu que a agente Madalena a ia atacar, teve reflexos para se esquivar: "Ela vinha furiosa para me bater, já com a mão levantada, e eu disse-lhe, sem mostrar nervos: ‘Há uma coisa que gostava que me explicasse: parece que tem uma raiva pessoal contra mim. Foi maltratada em pequena?’" A pergunta desorientou a agente, que baixou a mão: "Eu, maltratada? Nunca." E começou a contar a história da sua vida. "Devo tê-la atingido. A partir dessa noite, parece que ganhou medo de mim. Deixou de estar à vontade para me massacrar. E o murro que eu ia levar ficou no ar", conta à SÁBADO Eugénia Varela Gomes, atualmente com 83 anos, 47 depois de ter estado presa.
O encontro com Salazar
Eugénia já não se lembra da história que Madalena lhe contou, mas dificilmente a agente terá partilhado com a presa um dos episódios que mais lhe marcaram a infância: a primeira vez que viu Salazar. "Ela era menininha e estava na rua com os pais a ver um cortejo. Salazar passou, aproximou-se, falou-lhe, deu-lhe um beijo e ela ficou com uma grande admiração pelo senhor, por lhe ter dado importância. Aquilo ficou na cabeça dela. Era muito salazarista", admite à SÁBADO o filho de Madalena, Luís Marques. Quase 30 anos depois, quando o ditador morreu, em 1970, a chefe de brigada ficou transtornada com a notícia e fez questão de participar no velório. Atualmente ainda há uma estatueta de Salazar exposta no armário principal da sala da casa que Madalena habitou até morrer, há seis anos, e que lhe foi oferecida pelo filho.
http://cdn.sabado.pt/2015-10/img_472x263$2015_10_22_19_16_21_141200.jpgLogo a seguir ao 25 de Abril, dois homens invadiram a casa da chefe de brigada para a levar à cadeia. "Um deles foi preso mais tarde por ser informador da PIDE", recorda Luís Marques, que afugentou os assaltantes – e acha que o informador estava a tentar evitar a própria detenção.
A líder das reclusas após a revolução
A 28 de Abril de 1974, precisamente 85 anos depois do nascimento de Salazar, foi Madalena Oliveira quem se entregou na esquadra da PSP de Oeiras. Enquanto esteve em Caxias com as outras funcionárias da PIDE manteve a hierarquia e era uma espécie de líder das presas, segundo a descrição de uma testemunha detida nessa altura (e que pediu para não ser identificada). Madalena contou depois à nora (a mulher do filho também pediu para o seu nome não ser publicado) que impediu várias presas ligadas ao MRPP de serem espancadas na cadeia depois do 25 de Abril.  Quando cumpriu dois anos de prisão preventiva, foi-lhe concedida liberdade condicional e Madalena fugiu – conseguiu passar a fronteira no carro de um amigo e instalou-se com o filho em Madrid. Na capital espanhola teve a ajuda de antigos altos responsáveis da PIDE, como Barbieri Cardoso e Cunha Passo: primeiro arranjaram-lhe alojamento numa zona frequentada por prostitutas, depois colocaram-na a trabalhar na moradia de uma basca, a tomar conta de duas crianças. Mas durou pouco tempo.  "A minha mãe andava descontente, tínhamos deixado cá a minha avó, e estava sempre a pensar em voltar", explica o filho. Madalena escreveu então ao cônsul de Portugal em Madrid a admitir que tinha "abandonado precipitadamente o país" e que queria regressar. Foi presa novamente, julgada e condenada a quatro anos e quatro meses de prisão, mas o filho continua a defender a inocência da mãe: "Acho que o julgamento foi uma fraude. Elas testemunharam aquilo para que foram orientadas pelo PCP. A minha mãe pode ter batido numa presa mas sei que não era capaz de cometer aquelas atrocidades." A nora de Madalena perguntou-lhe directamente pelas agressões e a agente admitiu ter recorrido à legítima defesa ao responder-lhe com nova pergunta: "Se você fosse polícia e uma presa avançasse para si e a agredisse, o que é que fazia?"
Um balde de água em cima
Madalena saiu da cadeia a 16 de Dezembro de 1977. Passou os últimos anos a tomar conta de crianças, mas antes ainda foi secretária numa oficina de Caxias, na Docapesca, no MIRN (Movimento Independente para a Reconstrução Nacional, um partido de direita) e no escritório de um supermercado na Avenida de Roma – numa manhã, quando ia a chegar ao trabalho, encontrou uma série de cartazes à porta, com o aviso: "A PIDE está a trabalhar aqui." Alguns colegas do escritório ajudaram-na a arrancar tudo. Passou por um enxovalho maior quando passeava no bairro onde vivia: uma vizinha que estava à janela começou a insultá-la na rua e Madalena ameaçou: "Cale-se imediatamente ou eu atiro-a daí para baixo." A filha da vizinha que soltou os primeiros insultos pegou num balde de água e despejou-o em cima da antiga chefe de brigada da polícia política. E outras pessoas desataram a gritar e a apontar: "É a PIDE, olha a PIDE." Já passaram 44 anos desde que foi despida e agredida, mas Conceição Matos não se esquece. Admite que dificilmente resistiria a insultar a PIDE Leninha se a visse na rua, tal como chamou instintivamente "malandro" e "bandido" quando se cruzou por acaso com o informador que a denunciou. "E ela teve o descaramento de negar que me espancou", indigna-se. "Não pode ter perdão. Eles estavam conscientes do que estavam a fazer." Madalena Oliveira não resistiu a um cancro nos ovários e morreu a 22 de Novembro de 2003. Nenhum antigo colega da polícia foi ao funeral. A nora acompanhou-a mais nos últimos anos, nas sessões de quimioterapia no Instituto Português de Oncologia, e nunca lhe notou qualquer tipo de remorso em relação aos tempos da PIDE: "Nada, ela achava que não tinha de se arrepender de nada do que tinha feito." (artigo publicado na edição 284, de 8 de Outubro de 2009, e agora republicado para assinalar os 70 anos da PIDE, que nasceu formalmente em 22 de Outubro de 1945)

Entrevista com Pablo Catatumbo
A paz na Colômbia exige compromissos

Felipe Morales Mogollón*
22.Feb.16 :: Outros autores
“Não estamos a julgar, estamos a propor um acordo político em que não misturemos novamente armas com política, mas o Estado também deve fazê-lo. É aí que reside o compromisso de não reincidência. Durante anos, disse-se que as FARC eram responsáveis ​​e que éramos sequestradores, mas não fala das pessoas que desapareceram por acção do Estado”, diz Pablo Catatumbo, negociador plenipotenciário das FARC-EP em Havana.

Um dos temas principais a respeito de um final para o conflito é o combate a fenómenos criminais como o paramilitarismo.
O Governo e as FARC disseram que o acordo para acabar com o conflito está próximo, que os avanços não têm precedentes, e fala-se de 23 de Março como a data para a assinatura. Apesar do optimismo, os pontos pendentes da discussão apresentam grandes dificuldades. Um deles é o fim do conflito, que envolve questões como o cessar-fogo bilateral, o desarmamento, a reincorporação das FARC e outros dois, prioritários: a luta contra outras formas de criminalidade e as suas redes de apoio, e garantias de segurança.
Nesta discussão, um dos temas transversais é o crescimento de gangues criminosos ou paramilitares no país. Assim, o presidente Juan Manuel Santos anunciou que as Bacrim [1] serão um alvo de grande valor para as forças de segurança. Mas a questão vai além disso. As FARC dizem que os paramilitares não apenas actuam no teatro de guerra, mas têm as receitas do Estado capturadas e gerem toda uma economia paralela.
Numa entrevista ao El Espectador, Pablo Catatumbo, negociador plenipotenciário das FARC, falou da necessidade de enfrentar este fenómeno e da obrigação do Estado impedir que os membros das FARC sejam assassinados quando a paz for assinada, como aconteceu noutros processos, e argumentou que uma das principais contribuições das negociações em curso será que todas as partes envolvidas no conflito digam a verdade.
Vocês dizem que um juízo histórico da violência na Colômbia deve recuar até antes da década de 1950. Um acordo de paz implica abordar coisas que aconteceram há tanto tempo?
Não, mas o debate político tem que ir até esse ponto. O povo não se preocupa com estas questões, mas nós, que aspiramos dirigir os destinos da nação, sim, devemos falar sobre isso. Há uma história da Colômbia que eu conheço e eu gostaria de falar com os líderes de partidos tradicionais, e até mesmo com o ex-presidente Álvaro Uribe, para que contem a sua. Aqui se matou gente, entre conservadores e liberais, e eles também são responsáveis, não podem enganar as pessoas. É por isso que insistimos numa comissão histórica para explicar por que temos toda essa história de guerra.
Isso tem a ver com a insistência no tema do paramilitarismo?
A Colômbia está ligada ao paramilitarismo desde as suas origens como país, e isso representa um grande risco para a paz. O paramilitarismo está vivo e é a principal ameaça à paz e à democracia. Não desdenhemos o perigo que ele representa. Não são apenas as Bacrim, mas um fenómeno complexo e multidimensional que tem vários componentes. Por exemplo, a doutrina da segurança nacional, uma vez que se enfrenta um inimigo que, de acordo com essa concepção, ameaça a própria instituição. Começou assim, mas hoje em dia temos um paramilitarismo que controla a política paralela, a economia paralela e as empresas de segurança privada, onde estão os piores criminosos e violadores de direitos humanos, aqueles que tiraram a terra aos camponeses e conduziram à deslocação das pessoas e a massacres. Vale a pena debater estas questões. Por exemplo: Que fazia José Félix Lafourie em 2005? Foi super-intendente de notariado e registo e de aí passou à Fedegán. Se isso não é uma porta giratória, então o que é?
Mas devemos reconhecer que o paramilitarismo é uma resposta à ineficácia do Estado para proteger os cidadãos da guerrilha…
Isto é o que se diz, mas o paramilitarismo é anterior a isso. Como também se diz que Carlos Castaño era um pobre camponês trabalhador e que as FARC mataram o seu pai, pelo que, como ofendido, criou os paramilitares e cometeu uma série de horrores. A verdade é que Castaño já era paramilitar e narcotraficante do grupo de Pablo Escobar. As FARC sequestraram seu pai por ser traficante de droga, o exército tentou resgatá-lo e ele morreu nesse combate como também morreram guerrilheiros. Essa é que é a verdade.
E a morte do pai do antigo presidente Álvaro Uribe?
Não matámos o pai de Uribe. Isso é falso, não tínhamos guerrilheiros naquela zona. A irmã de Uribe disse que ele chegou num helicóptero, escondeu-se e houve um tiroteio. Se sequestramos um tipo que chegou num helicóptero, não enviamos dois guerrilheiros, mesmo que fôssemos parvos. O pai de Uribe não foi assassinado pelas FARC, não tínhamos unidades ali. Onde está o juiz ou a investigação séria que diga que fomos nós?
Hoje fala-se de grupos criminosos paramilitares, mas…
O Estado nunca reconheceu o paramilitarismo, apesar de haver provas claras, como a existência de Yahir Klein ou o assassinato de Luis Carlos Galán, que se diz terem sido narcotraficantes, e nunca aceitaram que o Estado estava por trás disso. É por isso que damos tanta importância à verdade e a que se descubram as ligações entre o Estado e os paramilitares. Essa é a importância duma justiça em prol da Paz, porque obriga todos aqueles que enganaram o país a dizer a verdade. As nossas verdades são simples: somos guerrilheiros e temos agido sob as circunstâncias de guerra. Eu não matei os deputados do Valle, mas as FARC dão a cara. Vemos o antigo presidente César Gaviria explicando por que ficou do lado de Pepes para matar Pablo Escobar. Eles querem ver as FARC a reparar danos causados, e nós concordamos, mas todos os participantes do conflito tem de se comprometer. O que está claro é que não temos tido ministros ou cargos públicos, mas aqueles que os têm ocupado devem muitas explicações ao país.
Para si, a desmobilização paramilitar foi uma farsa?
No caso do dos paramilitares que não desmobilizaram houve uma armadilha. Se vir os nomes dos Úsuga, correspondem exactamente aos dos que foram chamados de Heróis de Araúca. Ernesto Baez reconheceu, disse que apenas 21 líderes paramilitares desmobilizaram. O nome Jorge 40 não é gratuito, era o seu número, e Carlos Castaño era o comandante zero. Vinte e um desmobilizaram. Onde estão os outros dezanove? O que aconteceu com a desmobilização dos paramilitares foi uma partida de carnaval.
Já há uma data para a assinatura da paz, mas o que vai acontecer aos paramilitares?
Não estamos a dizer que o governo tem de acabar imediatamente com os paramilitares. O que estamos a dizer é que devem tomar-se medidas credíveis que dêem um sinal que aponte para o combate frontal. O problema não é Otoniel, nem eram Pijarbey ou Megateo; o problema é que este é um fenómeno político que não terminou com o escândalo da política paralela, e que está vivo e bem de saúde.
Que medidas entende que são necessárias?
O primeiro é depurar as forças armadas, tem de ser feito. Em segundo lugar, eliminar uma série de leis e decretos que defendem os paramilitares. Em terceiro lugar, tomar medidas contra a política paralela como a regulação das formas de participação política, combatendo a corrupção, ou impor sanções drásticas. O Estado colombiano deveria ter explicações para a economia paralela, não disse nada sobre isso. Eles controlam a saúde, o mercado do ouro, a mineração ilegal, sectores inteiros da economia. As Bacrim são o componente armado, mas há coisas que são invisíveis e o paramilitarismo tem outros componentes. O que precisamos saber é se o governo tem uma vontade real de acabar com o paramilitarismo.
Não é muita ousadia falar em depurar as Forças Armadas?
É um problema que o Estado deve enfrentar. O que dizemos é que é necessário definir para que se quer as Forças Armadas. É preciso defender a Constituição e a soberania, que haja princípios; não é bom que haja militares envolvidos no narcotráfico. Como é que Óscar Naranjo destacou 11 000 polícias para combater os cartéis? Essa foi uma decisão política. Vejo alguns militares que estão cientes disso. Conheço militares patriotas, guerreiros, têm sofrido em combate e respeito-os pelo seu sacrifício, mas hoje percebem que não estamos tão afastados uns dos outros, queremos uma Colômbia honesta, que não esteja nas mãos de ladrões. Eles devem apoiar o presidente, têm sofrido com a guerra e estão a ser traídos pelos líderes políticos.
Claro que o paramilitarismo, de acordo com o que você mesmo disse, não vai acabar da noite para o dia…
O que acordarmos será respeitado. Não podemos ser cegos e dizer que enquanto o último paramilitar desaparecer o conflito não acabará, mas pedimos que haja medidas que tragam a confiança de que estão a trabalhar nesse sentido. Mas também não podemos depor as armas e participar na política com um paramilitarismo crescente, apoiado pelas forças armadas e espalhado pelo país. Esse é o maior desafio do governo de Santos: mostrar ao país que quer a paz, tomando decisões para a acabar com o fenómeno paramilitar, que inclui uma política e uma economia paralelas.

Não é ingénuo pensar que o acordo de Havana trará as mudanças profundas que ambicionam?

Não se trata de decretos ou leis. Tem de haver uma pedagogia da paz e um compromisso político com partidos, sindicatos e outros sectores, para um pacto que possa manter-se. Não estamos a julgar, estamos a propor um acordo político em que não misturemos novamente armas com política, mas o Estado também deve fazê-lo. É aí que reside o compromisso de não reincidência. Durante anos, disse-se que as FARC eram responsáveis ​​e que éramos sequestradores, mas não fala das pessoas que desapareceram por acção do Estado.
Houve no passado casos que geraram milhares de mortes de pessoas que depuseram as armas e vocês confirmam que o paramilitarismo está vivo. É possível baixar as armas neste contexto?
Isso cabe ao presidente, se não, não há paz. O maior fracasso que pode ocorrer na política colombiana é não poder garantir a paz. Se o Estado não é capaz de garantir a vida dos comandantes da guerrilha uma vez que os acordos sejam assinados, se acontecer novamente o que aconteceu com Carlos Pizarro, isso é o fracasso. É esse o desafio que têm Santos e as Forças Armadas.
Nota:
[1] A reestruturação do crime organizado, depois de uma desmobilização de 32.000 combatentes das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC)

* Jornalista de El Espectador, jornal colombiano
Este texto foi publicado em:
http://www.elespectador.com/noticias/politica/nosotros-no-matamos-al-papa-de-uribe-pablo-catatumbo-articulo-611111
Tradução: André Rodrigues

domingo, 21 de fevereiro de 2016

HOMENAGEM A UM GRANDE INTELECTUAL

Com Umberto Eco aprendi, como professor de filosofia, que uma boa forma de enfrentar os media não era competir com eles (derrota inevitável) mas ensinar a utilizar conceitos como ferramentas. Se possuíssemos uma chave-mestra abriríamos todas as portas blindadas. Não apenas com ele, evidentemente (não é a boa filosofia outra coisa). Os seus romances históricos (e os manuais magníficos sobre a história da Beleza e da Fealdade ou sobre a Idade das Trevas) ensinariam os professores de história a ensiná-la com sucesso. 

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A morte de UMBERTO ECO


Romances

Ensaios

Obras nas áreas de filosofiasemióticalinguística, estética traduzidas para a língua portuguesa:[2]
  • Obra aberta (1962)
  • Diário mínimo (1963)
  • Apocalípticos e integrados (1964)
  • A definição da arte (1968)
  • A estrutura ausente (1968)
  • As formas do conteúdo (1971)
  • Mentiras que parecem verdades (1972) (co-autoria de Marisa Bonazzi)
  • O super-homem de massa (1978)
  • Lector in fábula (1979)
  • A semiotic Landscape. Panorama sémiotique. Proceedings of the Ist Congress of the International Association for Semiotic Studies (1979) (co-autoria de Seymour Chatman e Jean-Marie Klinkenberg).
  • Viagem na irrealidade cotidiana (1983)
  • O conceito de texto (1984)
  • Semiótica e filosofia da linguagem (1984)
  • Sobre o espelho e outros ensaios (1985)
  • Arte e beleza na estética medieval (1987)
  • Os limites da interpretação (1990)
  • O signo de três (1991*) (co-autoria de Thomas A. Sebeok)
  • Segundo diário mínimo (1992)
  • Interpretação e superinterpretação (1992)
  • Seis passeios pelos bosques da ficção (1994)
  • Como se faz uma tese (1995*)
  • Kant e o ornitorrinco (1997)
  • Cinco escritos morais (1997)
  • Entre a mentira e a ironia (1998)
  • Em que creem os que não creem? (1999*) (co-autoria de Carlo Maria Martini)
  • A busca da língua perfeita (2001*)
  • Sobre a literatura (2002)
  • Quase a mesma coisa (2003)
  • História da beleza (2004) (direcção)
  • La production des signes (2005 em francês)
  • Le signe (2005; em francês)
  • Storia della Brutezza (2007). Em Portugal, traduzido como História do feio e , no Brasil, como História da Feiúra.
  • Dall’albero al labirinto (2007)
  • A vertigem das listas (2009)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Barata-Moura – marxista, filósofo e… músico

Na coluna do mês passado, disse aos meus eventuais leitores algo sobre Magalhães-Vilhena, o grande exemplo da geração de filósofos marxistas portugueses que encontrou melhores condições para o seu desenvolvimento na sequência da Revolução dos Cravos. Retorno de novo a portugueses, fazendo rápida menção a um dos vários pensadores daquela geração, para a qual Magalhães-Vilhena é um verdadeiro ícone – a que talvez apenas se ombreie a figura do matemático e homem de cultura Bento de Jesus Caraça (1901-1948, outro notável intelectual vinculado ao Partido Comunista Português/PCP). O pretexto para a coluna deste mês é a minha revisitação a um livro publicado há quase 40 anos, Totalidade e contradição. Acerca da dialética (Lisboa: Horizonte, 1977; reedição, aumentada e revista: Lisboa: Avante!, 2012), de José Barata-Moura.
No domínio da cultura, reconhece-se hoje Barata-Moura como um filósofo consagrado. Consagrado nacional e internacionalmente: tendo sido reitor da Universidade de Lisboa (1998-2006), em cujo Departamento de Filosofia leciona como professor catedrático, é membro de respeitadas associações e academias científico-filosóficas europeias, participa de congressos e simpósios em todo o mundo (já esteve inclusive entre nós) e tem a seu crédito substantiva bibliografia.*
barata moura pcp
Nem mesmo a sua permanente e ativa militância política foi capaz de travar ou, menos ainda, impedir a constituição do amplo consenso que respalda aquele reconhecimento – Barata-Moura não vive somente no gabinete de pesquisas: é bem provável que, se o meu eventual leitor qualquer dia desses visitar Lisboa, vá encontrá-lo numa popular “sessão de esclarecimento” do PCP, numa passeata/comício ou à frente de intervenções políticas de maior ressonância (em 2010, ele foi o “mandatário nacional” da campanha do candidato comunista, Francisco Lopes, à Presidência da República). Em suma: o filósofo, comprometido com a luta pelo socialismo desde muito jovem, nunca foi um “radical de ocasião”; ao contrário, tipifica mesmo aquele militante que, num célebre poema de combate, Brecht caracterizou como imprescindível.
Exímio conhecedor do idioma alemão, Barata-Moura tem se destacado, igualmente, como seguro tradutor de Marx-Engels. Já em meados dos anos 1970, ele passou a compor o “coletivo Avante!” de tradutores, que verteu ao português, entre outras, as Obras escolhidas de Marx-Engels em três tomos e que, atualmente, está finalizando uma nova tradução d’O capital, dirigida por ele e Francisco Melo – foram editados, pela Avante!, entre 1990-2012, seis dos oito tomos em que a edição apresentará os três livros de que se constitui modernamente a obra máxima de Marx).
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Deixemos, porém, o presente e voltemos a 1977, voltemos a Totalidade e contradição, um livrinho de capa verde, com modesta aparência e pouco menos de 200 páginas em tamanho reduzido. Não se está diante de texto leve: a linguagem é densa e castigada, mas a forma amolda-se com justeza ao conteúdo que, embora centrado em duas categorias nucleares da dialética materialista, permite-se excursos de extrema erudição (p. ex., na seção II do livro, onde o autor esboça elementos para uma história da dialética, arrancando dos gregos e chegando ao materialismo dialético). O tratamento daquelas duas categorias nucleares (totalidade e contradição) supõe, evidente e preliminarmente, uma elaboração – mesmo que ainda num alto grau de abstração – da dialética, posta já a diferenciação entre os princípios (o histórico e o sistemático) que comandam os modos de abordá-la e a distinção entre conceito e categoria (na seção I, “em jeito de introdução”, os econômicos parágrafos em que tais diferenciação e distinção se operam são suficientes).
Tal elaboração faz-se na seção III do livro. Se o meu eventual leitor suspeita que não se pode, em 30 páginas, cuidar com rigor da “determinação geral da dialética” (eis o título da seção), posso garantir-lhe que a suspeição, neste caso, carece de sentido. A argumentação do jovem (no ano da publicação de Totalidade e contradição, o autor, nascido em 1948, ainda não completara 30 anos, mas já exercitava desde antes o seu labor analítico em ensaios como Kant e o conceito de filosofia, de 1972, e Da redução das causas em Aristóteles, de 1973) Barata-Moura é solidamente fundada. Essencialmente ontológica, como diria o último Lukács, a concepção de dialética desenvolvida por Barata-Moura – compreendendo-a simultaneamente como processo objetivo e como assunção subjetiva (na consciência teórico-filosófica) – dista anos-luz da vulgarização/divulgação manualesca. É uma concepção na qual “a dialética encontra-se aberta e fundada numa realidade que está ela própria em constante movimento, no quadro de um desenvolvimento que não é caprichoso nem irracional – isto é, no quadro de um desenvolvimento que é possível conhecer e, em boa medida, dentro de certos limites, determinar” (p. 108-109). Mais: uma concepção, objetiva e subjetiva, de dialética colada à práxis transformadora:
“Uma transformação que a própria verdade do real impõe e que é exigida pela prática material em que a dialética surgiu sistematicamente e em que continua a inscrever-se: o movimento operário internacional e a sua luta pela emancipação que, necessariamente, passa pela abolição do capitalismo, enquanto forma contemporânea da exploração de uma classe por outra” (idem).
A referência da dialética à intervenção prático-política emancipadora não tergiversa a análise teórico-filosófica que Barata-Moura empreende – antes, potencializa esta análise, que, na sequência expositiva (seção IV), aborda a categoria da totalidade e seu fundamento objetivo. O filósofo pensa a totalidade ontologicamente: ela não se constitui como “hipostasiação de uma entidade abstrata transcendente ou imanente” (p. 118), nem é um artifício intelectivo para organizar o conhecimento da realidade: seu “fundamento real” é “o processo histórico no seu conjunto e desenvolvimento” (p. 119). Dada a sua inequívoca complexidade e diversidade, tal processo exige a determinação de diferentes níveis de totalização; a diferencialidade do real exige do pensamento dialético “determinar a qualidade respectiva das diversas modalidades de diferença que ele [o processo real objetivo] inegavelmente patenteia” (p. 133). Com efeito, “o real é uma totalidade, sem dúvida, mas uma totalidade contraditória, nos próprios termos e elementos em e por que se constitui e desenvolve” (idem).
Daí a necessidade de perquirir a relação dialética/contradição (objeto da seção V do livro). Barata-Moura assevera que é, no “contexto de unidade fundamental do real”, que “a contradição interna assume o seu papel constitutivo de princípio estrutural do movimento” (p. 139); e, de forma peremptória: “a contradição se encontra […] no centro de toda a dialética” (p. 140). São várias as distinções que, nesta seção, o filósofo desenvolve – citem-se particularmente duas: entre o “polo dominante” o “polo determinante” da contradição e entre a “contradição dialética” e a “contradição lógica”. No que toca à contradição dialética, ele salienta que “há que pensar essencialmente a contradição no quadro do devir da realidade objetiva”, que é o seu “horizonte primordial”. E faz uma determinação axial, que reproduzo devido às suas relevantes implicações: “[…]A dialética que subjetivamente nos aparece, nomeadamente ao nível do saber, não apenas se estabelece como reflexo da realidade objetiva, mas faz ela própria parte integrante dessa mesma realidade, ainda que no plano e no nível que lhe são específicos. A consciência que reflete o mundo, de uma maneira adequada ou não, não se encontra ela própria fora ou ao lado ou paralela ao mundo. Muito pelo contrário, na medida em que encarna num viver concreto que a sustenta, na medida em que enraíza numa prática que, em última análise, lhe define verdadeiramente o sentido e a determina, a consciência encontra-se mergulhada no mundo” (p. 159).
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Por estas pequenas amostras, certamente que o leitor percebe que Totalidade e contradição. Acerca da dialética não é um manual a divulgar a “dialética” em poucas dezenas de páginas ou a resumi-la facilmente com o recurso mecânico e abstrato a “leis fundamentais”. É um texto erudito, construído com base na recorrência sistemática aos clássicos do marxismo (Marx, Engels e Lenin, com o obrigatório tributo a Hegel), mas sensível à tradição filosófica antiga (Platão, Aristóteles) e à dos séculos XVII-XVIII (Spinoza e Kant) e também tangenciando autores do século XX (de G. Gurvitch a K. Popper, de Mao-Tsé-Tung a Della Volpe). Não é um livro para iniciantes nem para os já “convertidos” à dialética: supõe algum conhecimento prévio da problemática nele abordada e interpela quaisquer intelectuais abertos ao debate da ontologia e da epistemologia.
Lido (ou relido) à distância de quase quatro décadas, ele chama a atenção por duas razões: a primeira é a sua solidez teórico-filosófica, que então tornava Barata-Moura uma promessa intelectual. A segunda é, para aqueles que acompanharam a trajetória do autor, a constatação de que a plena realização daquela promessa se concretizou num desenvolvimento que, visto do presente para o passado, revela que ali já estavam postas as dimensões básicas da rica e sistemática reflexão que Barata-Moura ampliaria nos muitos anos seguintes. De fato, a meu juízo, em Totalidade e contradição encontra-se o projeto intelectual de toda a vida de Barata-Moura.
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Uma observação final: na segunda metade da década de 1970, minha filha divertia-se, em Lisboa, com uma curiosa canção infantil (“Fungagá da bicharada”). Em 2009, estudante de pós-graduação em Berlim, assistiu lá a uma conferência de Barata-Moura, impressionou-se vivamente e, viajando pela memória, surpreendeu-se: era o compositor-cantor que alegrou os seus mais tenros anos. É isto mesmo, meu caro leitor: quem tem a rara vocação para estudar Hegel e Marx possui também a sensibilidade necessária para tocar a alma das crianças. A propósito, quando Barata-Moura ainda era reitor da mais importante universidade portuguesa, o seu cancioneiro infantil foi reeditado em DVD (Obra infantil completa, 2004) – e ele alegra, hoje, a vida dos meus netos.
NOTAS
* São inúmeros os títulos (livros, ensaios, conferências) de Barata-Moura; eis apenas alguns dos que me parecem mais destacáveis: Ideologia e prática, 1978; Para uma crítica da “filosofia dos valores”, 1982; Da representação à “práxis”, 1986; Materialismo e subjetividade. Estudos em torno de Marx, 1997; Estudos de filosofia portuguesa, 1998; O outro Kant, 2007; Estudos sobre a ontologia de Hegel. Ser, verdade, contradição, 2010; Sobre Lenin e a filosofia. A reivindicação de uma ontologia materialista dialética com projeto, 2010; Filosofia em O capital. Uma aproximação, 2013.

in Blogue da BoiTempo

POR QUE SOCIALISMO? - Albert Einstein, 1949

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Tradução: Ralf Rickli, 2015 (ver nota introdutória)
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A internet me trouxe ontem esta agradável surpresa: um artigo de Einstein (sim, ele mesmo, o do E=mc²) defendendo incondicionalmente o socialismo. Escrito aos 70 anos, 6 antes de sua morte, 16 depois de sua chegada aos Estados Unidos com 54 anos, 4 anos após o término da 2ª Guerra Mundial. Vou deixar aos leitores, elucubrar sobre esse posicionamento nesse momento, depois de Einstein ter se sentido obrigado a colaborar com o governo dos EUA contra os nazistas, durante a Guerra, porém não sem dramas de consciência.
O artigo foi escrito especialmente para o primeiro número da revista marxista estadunidense Monthly Review, lançada em maio de 1949, e está disponível em http://monthlyreview.org/2009/05/01/why-socialism/
O texto já existia disponível em português em https://www.marxists.org/portugues/einstein/1949/05/socialismo.htm , numa tradução não sem méritos, porém perceptivelmente feita de uma tradução prévia ao espanhol, e que com certeza inadvertidamente deixou escapar palavras, frases e até um parágrafo inteiro. Com isso, decidi fazer esta nova tradução, do zero, disponibilizando-a em https://tr.im/EinsteinSocialismoBlog e também, em apresentação bilíngue, em https://tr.im/EinsteinSocialismoPDF
Esta tradução pode ser reproduzida à vontade, desde que sempre mencionando o nome do tradutor (e do autor, obviamente), e pelo menos um dos endereços eletrônicos tr.im como referência de fonte. Caso seja feita alguma modificação no texto transcrito, também é indispensável que a pessoa responsável pela alteração declare seu nome e descreva com exatidão o que alterou.
Vitória (ES, Brasil), 07.06.2015 - Ralf Rickli
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Será aconselhável que um não especialista em assuntos econômicos e sociais manifeste pontos de vista sobre o tema “socialismo”? Por várias razões, eu acredito que sim.
Comecemos considerando a questão pelo ponto de vista epistemológico [isto é, que analisa o próprio conhecimento científico]. Poderia parecer que não houvesse diferenças metodológicas essenciais entre a Astronomia e a Ciência da Economia: nos dois campos, os cientistas tentam descobrir leis que sejam aceitáveis de modo generalizado para um determinado grupo de fenômenos, com a finalidade de tornar compreensível a interconexão desses fenômenos do modo mais claro possível.
Na realidade, diferenças metodológicas existem. No campo da Economia, a descoberta de leis gerais é dificultada pela circunstância de que os fenômenos econômicos observáveis são com frequência afetados por muitos fatores que é muito difícil avaliar separadamente.
Além disso, como é bem sabido, a experiência acumulada desde o início do assim chamado período civilizado da história humana tem sido grandemente influenciada ­e limitada por fatores cuja natureza de nenhum modo é exclusivamente econômica.
Por exemplo, a maioria dos grandes Estados da história deveu sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram a si mesmos, legal e economicamente, como a classe privilegiada do território conquistado; apossaram-se do monopólio da propriedade da terra e designaram uma classe sacerdotal a partir de suas próprias fileiras. Os sacerdotes, no controle da educação, fizeram da divisão da sociedade em classes uma instituição permanente, criando um sistema de valores pelo qual o comportamento social das pessoas passou a ser guiado desde então, em grande medida em nível inconsciente.
Mas a tradição histórica começou ontem, por assim dizer. Em nenhum lugar nós superamos de fato o que Thorstein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvolvimento humano. Os fatos econômicos observáveis pertencem a essa fase, e as leis que podemos derivar deles não são aplicáveis a outras fases. Como o verdadeiro propósito do socialismo é precisamente superar a fase predatória do desenvolvimento humano e avançar para além dela, a Ciência Econômica em seu estado atual pode esclarecer bem pouco sobre a sociedade socialista do futuro.
Em segundo lugar, o socialismo se direciona para uma finalidade socioética. A ciência, no entanto, não tem o poder de criar finalidades, e muito menos de instilá-las nos seres humanos; a ciência pode, no máximo, fornecer os meios com que atingir certas finalidades. As finalidades são concebidas por personalidades com ideais éticos elevados – ideais esses que, quando não são natimortos e sim cheios de vida e vigor – são adotados e levados adiante por aquela multitude de seres humanos que, de modo parcialmente inconsciente, terminam por determinar a evolução da sociedade.
Por essas razões, deveríamos nos precaver no sentido de não superestimar a ciência e os métodos científicos quando o que está em questão são problemas humanos - e não deveríamos presumir que somente especialistas têm direito a se manifestar sobre as questões que afetam a organização da sociedade.
[A CRISE HUMANA ATUAL E A RELAÇÃO INDIVÍDUO-SOCIEDADE]
Incontáveis vozes vêm afirmando, já desde há algum tempo, que a sociedade humana está passando por uma crise; que sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico dessa situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou até mesmo hostis ao grupo a que pertencem, seja o pequeno grupo ou ao grupo de maior escala. Permitam-me recordar aqui uma experiência pessoal para ilustrar o que quero dizer: não faz muito, eu debatia com um homem inteligente e de boa disposição sobre a ameaça de mais uma guerra – o que, na minha opinião, poria em sério perigo a existência da humanidade – e observei que somente uma organização supranacional ofereceria proteção contra esse perigo. Nesse ponto o meu visitante me disse, com toda calma e indiferença: “Mas por que você se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?”
Tenho certeza que apenas um século atrás ninguém teria declarado algo desse tipo com toda essa despreocupação. Temos aí uma declaração de um homem que lutou em vão para alcançar um equilíbrio interior e mais ou menos perdeu a esperança de alcançá-lo. É expressão de uma dolorosa solidão e isolamento, de que tanta gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Existe saída?
É fácil levantar essas perguntas, mas é difícil respondê-las com qualquer grau de segurança. No entanto eu preciso tentar, o melhor que puder, embora esteja bem consciente de que nossos sentimentos e aspirações são muitas vezes contraditórios e obscuros, e não podem ser expressos em nenhuma fórmula simples e fácil.
O homem é ao mesmo tempo um ser solitário e um ser social. Como ser solitário, ele tenta proteger sua própria existência e a dos que lhe são mais próximos, satisfazer seus desejos pessoais, desenvolver suas habilidades inatas. Como ser social, busca conquistar o reconhecimento e afeição dos seus companheiros de humanidade, compartilhar de seus prazeres, confortá-los em seus sofrimentos, melhorar suas condições de vida. Somente a existência dessas diferentes aspirações, muitas vezes conflitantes, já responde pelo caráter especial de uma pessoa, e sua combinação específica determina a medida em que o indivíduo consegue, por um lado, alcançar um equilíbrio interior e, por outro lado, consegue contribuir para o bem-estar da sociedade.
É bem possível que a intensidade relativa desses dois impulsos seja, em seu principal, determinada pela hereditariedade – mas a personalidade que termina emergindo é formada em ampla medida pelo ambiente em que acontece de a pessoa se encontrar durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que ela cresce, pela tradição daquela sociedade, e pelo valor que a sociedade atribui a este ou àquele tipo de comportamento.
Para o indivíduo humano, o conceito abstrato “sociedade” significa a soma de suas relações diretas e indiretas com os seus contemporâneos e com todas as pessoas das gerações anteriores. O indivíduo é capaz de pensar, sentir, aspirar e trabalhar por si mesmo; mas [ao mesmo tempo] ele depende tanto da sociedade – em sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensá-lo ou entendê-lo fora da moldura que é o contexto social. É “a sociedade” o que lhe proporciona comida, roupas, um lar, a ferramentas do seu trabalho, a linguagem, as formas de pensar, e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida se faz possível mediante o trabalho e realizações dos muitos milhões, passados e presentes, que estão escondidos por trás da pequena palavra “sociedade”.
É evidente, portanto, que a dependência do indivíduo em relação à sociedade é um fato da natureza que não pode ser abolido – tanto quanto o é no caso das formigas e abelhas. No entanto, enquanto o inteiro processo de vida das formigas e abelhas é determinado nos mínimos detalhes por instintos hereditários rígidos, o padrão social e os inter-relacionamentos dos seres humanos são altamente variáveis e suscetíveis de mudanças. A memória, a capacidade de realizar novas combinações e o dom da comunicação verbal possibilitaram desenvolvimentos, entre os seres humanos, que não são ditados por necessidades biológicas. Tais desenvolvimentos se manifestam em tradições, instituições e organizações; em literatura; em realizações científicas e técnicas; em obras de arte. Isso explica como acontece de o ser humano ser capaz de, em certo sentido, influir em sua vida mediante a sua própria conduta, e de que nesse processo o pensamento e a vontade conscientes consigam desempenhar um papel.
O ser humano adquire ao nascer, através da hereditariedade, uma constituição biológica que precisamos considerar determinada e inalterável, inclusive os impulsos naturais que são característicos da espécie humana. Em acréscimo, ao longo de sua vida ele adquire uma constituição cultural que ele adota da sociedade por meio da comunicação e de muitos outros tipos de influências. É a sua constituição cultural que está sujeita a mudanças com a passagem do tempo, e que determina em vasta medida a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna nos ensinou, através da investigação comparativa das culturas chamadas de primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode diferir grandemente, dependendo dos padrões culturais e dos tipos de organização que predominam na sociedade. Os que se empenham em melhorar a condição humana podem fundamentar suas esperanças nisso: seres humanos não estão condenados por sua constituição biológica a aniquilarem uns aos outros, nem a estar à mercê de um destino cruel autoinfligido.
Se nos perguntarmos de que modo a estrutura da sociedade e a atitude cultural do ser humano deveriam ser mudados para tornar a vida humana tão satisfatória quanto possível, deveríamos estar sempre conscientes de que há certas condições que somos incapazes de modificar. Como já foi mencionado, para todos os efeitos práticos a natureza biológica do ser humano não é modificável. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos criaram condições que estão aqui para ficar. Em populações assentadas com considerável densidade, levando em conta os bens que são indispensáveis para a continuidade de sua existência, tornam-se absolutamente indispensáveis uma extrema divisão de trabalho e um aparato produtivo altamente centralizado. Foi-se para sempre o tempo – que, olhando-se para trás, parece tão idílico – em que indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente autossuficientes. Há pouco exagero em dizer que a humanidade já constitui uma comunidade planetária de produção e consumo.
[A ANARQUIA ECONÔMICA CAPITALISTA COMO ORIGEM DA CRISE HUMANA]
Cheguei agora ao ponto em que posso indicar brevemente o que, para mim, constitui a essência da crise do nosso tempo: refere-se à relação do indivíduo com a sociedade. O indivíduo se tornou mais consciente do que nunca de sua dependência da sociedade - mas sua experiência dessa dependência não é a de um bem positivo, um laço orgânico, uma força protetora, e sim a de uma ameaça aos seus direitos naturais, ou até mesmo à sua existência econômica. Além disso, o indivíduo está posicionado na sociedade de modo tal, que os impulsos egoístas da sua constituição recebem reforço constante, enquanto que os seus impulsos sociais, que por natureza já são mais fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, qualquer que seja sua posição na sociedade, vêm sofrendo esse processo de deterioração. Prisioneiros de seu próprio egoísmo sem saber disso, sentem-se inseguros, sozinhos e privados de todo desfrute da vida que seja inocente, simples, não sofisticado. O ser humano somente pode encontrar sentido na vida, curta e arriscada como é, mediante sua dedicação à sociedade.
A anarquia econômica da sociedade capitalista como existe hoje é, na minha opinião, a verdadeira fonte do mal. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros se empenham sem cessar em privar uns aos outros dos frutos de seu trabalho coletivo – não por força, mas em inteiro e fiel cumprimento de regras estabelecidas legalmente. A respeito disso, é importante dar-se conta [do papel do fato] de que os meios de produção – quer dizer, tudo o que dá capacidade de produzir bens para os consumidores, bem como bens de capital adicionais – possam ser propriedade privada de indivíduos (e de fato o sejam, em sua maior parte).
Pelo bem da simplicidade, na discussão a seguir chamarei de “trabalhadores” todos os que não têm parte na propriedade dos meios de produção – embora isso não corresponda com exatidão ao uso costumeiro do termo. O proprietário dos meios de produção está em posição de comprar a força de trabalho do trabalhador. Usando os meios de produção, o trabalhador produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista. O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e aquilo que lhe pagam, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que a contratação do trabalho é “livre”, o que o trabalhador recebe não é determinado pelo valor real dos bens que ele produz, e sim por quais são suas necessidade mínimas, bem como pela relação entre a demanda por força de trabalho por parte dos capitalistas e o número de trabalhadores que competem por empregos. É importante entender que nem mesmo na teoria o pagamento do trabalhador é determinado pelo valor do seu produto.
Capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competição entre os capitalistas, em parte porque o desenvolvimento tecnológico e o crescimento da divisão do trabalho estimulam a formação de unidades de produção maiores, em prejuízo das menores. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado, cujo enorme poder não pode ser efetivamente controlado sequer por uma sociedade política democraticamente organizada.
Isso é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados por partidos políticos, que são amplamente financiados, ou influenciados de algum outro modo, por capitalistas privados que, para todos os propósitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem de fato e de modo suficiente os interesses dos setores menos privilegiados da população. Além disso, nas condições atuais os capitalistas privados inevitavelmente controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). Torna-se assim extremamente difícil para o cidadão individual, e de fato impossível na maioria dos casos, chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.
A situação predominante em uma economia baseada na propriedade privada de capital caracteriza-se então por dois princípios centrais: primeiro, os meios de produção (capital) são possuídos privadamente, e os proprietários dispõem deles como acham melhor; segundo, a contratação de trabalho é livre [isto é, não regulada]. É claro que não há sociedade capitalista pura nesse sentido. Em especial, é preciso registar que os trabalhadores, através de longas e amargas lutas políticas, conseguiram assegurar uma forma um tanto melhorada de “livre contrato de trabalho” para algumas categorias de trabalhadores. Mas, tomada em seu conjunto, a economia atual não difere muito de um capitalismo “puro”.
A produção é realizada com a finalidade do lucro, não com a do uso. Não existem disposições para garantir que todas as pessoas capazes e dispostas a trabalhar sempre consigam achar emprego; quase sempre existe um “exército de desempregados”. O trabalhador está perpetuamente com medo de perder seu emprego. Devido ao fato de que desempregados e trabalhadores mal pagos não formam um mercado rendoso, a produção de bens de consumo é restrita, o que resulta em grandes privações. O progresso tecnológico resulta com frequência em mais desemprego, em lugar de aliviar a carga de trabalho para todos. O lucro como motivação, em conjunto com a concorrência entre os capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital, a qual leva a crises cada vez mais graves. A competição irrestrita leva a um gigantesco desperdício de força de trabalho, e também àquela deformação da consciência social dos indivíduos, que eu mencionei anteriormente.
Essa deformação dos indivíduos, eu a considero o pior dos males do capitalismo. Nosso sistema educacional inteiro sofre desse mal. Uma atitude competitiva exagerada é inculcada no estudante, que, como preparação para sua futura carreira, é treinado para idolatrar um sucesso aquisitivo.
[A SAÍDA PELO SOCIALISMO E SUAS DIFICULDADES]
Estou convencido de que existe apenas um caminho para eliminar esses graves males, e esse é o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais. Em uma economia tal, os meios de produção são propriedade da própria sociedade, e utilizados de modo planejado. Uma economia planejada, que ajusta a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre todos os capazes de trabalhar, e garantiria o sustento de cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de desenvolver suas próprias habilidades inatas, se empenharia em desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus companheiros de humanidade, em lugar da glorificação do poder e do sucesso, como temos na sociedade atual.
Contudo é preciso lembrar que uma economia planejada ainda não é socialismo. Uma economia planejada pode ser acompanhada por uma escravização completa do indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas sociopolíticos extremamente difíceis: como é possível, em face da centralização abrangente do poder político e econômico, impedir que a burocracia se torne todo-poderosa e prepotente? Como se podem proteger os direitos do indivíduo e garantir com isso um contrapeso democrático ao poder da burocracia?
A clareza quanto às metas e aos problemas do socialismo é da mais alta significação em nossa era de transição. Como, na conjuntura atual, a discussão livre e sem barreiras destes problemas se tornou um grande tabu, eu considero a fundação desta revista um relevante ato de interesse público.
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Disponível em PDF e apresentação bilíngue em https://tr.im/EinsteinSocialismoPDF
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Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.