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quarta-feira, 16 de março de 2016

A questão dos imperialismos

III ENCONTRO CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE-- Serpa, 2010

A QUESTÃO DOS IMPERIALISMOS
 
Nesta altura dispomos de distância suficiente para procedermos a uma
avaliação do século vinte; aliás, nem outra coisa têm feito diversificados
investigadores desde os finais do milénio. Desenvolve-se mesmo uma
interminável querela à volta do que foi a Modernidade, se ainda perdura ou se
transitámos para uma pós-modernidade. Posta nestes termos é provavelmente
a controvérsia mais importante das últimas décadas no pensamento
contemporâneo. Ora, as teses que se opõem nesse debate internacional
passam, ou deveriam passar, pela seguinte questão: podemos ainda falar de
um imperialismo? O capitalismo é ainda um sistema continuadamente
imperialista ou a “pós-modernidade” caracteriza-se por revolucionários eventos
e efeitos de uma “globalização” que excluiu a vocação imperialista do capital
com a qual também a Modernidade se constituiu? Tendo eu escolhido este
desafio tão complexo, tentarei responder tão breve quanto possível,
respeitando as condições destes notabilíssimos Encontros intitulados
«Socialismo ou Barbárie».
A bem dizer, de uma certa perspectiva, o século bem pode ter terminado
mesmo antes do fim do milénio, Quero dizer, sem ironia, que não é uma data,
esta ou aquela, que importa, mas o Acontecimento, pois que se admitirmos que
a Revolução de 1917 inaugurou uma nova época histórica, então o colapso da
URSS e de outros regimes socialistas encerrou-a. Não terminou de vez a
possibilidade de revoluções, nada de equívocos no que estou dizendo, mas
findou a época do protagonismo mundial de uma determinada super-potência
socialista. Esse acontecimento, um autêntico terramoto, mudou a história
mundial, que até então se realizava em grande medida pelo confronto entre o
capitalismo e o socialismo. Não estou fazendo juízos de valor sobre a
qualidade desses regimes socialistas, de resto bem mais diversos do que pode
parecer. Estou abordando um facto evidente. O curso do século passado não
se entende sem esse referencial: a competição entre os chamados «dois
blocos». A vocação imperialista dos Estados Unidos que se manifestou na
última década de oitocentos saiu fortalecida com o desmoronamento sucessivo
dos impérios coloniais europeus; o desfecho da Segunda Guerra mundial que
lhes permitiu a liderança económica e política do hemisfério ocidental. Contudo,
a vitória da URSS sobre o nazismo e a sua espantosa recuperação económica,
o seu poderio militar e o seu peso determinante na relação de forças mundial,
estimularam movimentos revolucionários por todo o planeta. Essa contradição
marcou, mais do que qualquer outra, a história universal. Isto é, a luta de
classes nos espaços particulares dos territórios nacionais, encontrou na luta
entre os dois sistemas uma dimensão mundial. A Modernidade já não
representava mais a hegemonia ideológica do liberalismo, essa mutação nem
sempre a vemos sublinhada pelas filosofias políticas. Não há visão
compreensiva desse larguíssimo período – a Modernidade - que se iniciou
provavelmente no século XVI e que contém o Iluminismo sem com este se
encerrar, que não inclua as correntes do pensamento socialista, expressão dos
ideais e das utopias mais avançadas, e a sua oposição aos credos liberais. Por
conseguinte, se o liberalismo triunfa apesar de tudo das experiências
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socialistas mais ou menos utópicas do século XIX, ele perdeu a sua hegemonia
a partir do sucesso da Revolução Socialista na Rússia e, mais vincadamente
ainda, com o prestígio e o peso na cena mundial da União Soviética. O
socialismo alimentava paixões e provocava debates, aproximava a
intelectualidade do proletariado, estimulava a criação artística e filosófica,
cindia irremediavelmente a Esquerda em partidos comunistas e socialdemocratas.
Na acção política ninguém permanecia indiferente perante aquele
novo mundo que representava a grande alternativa, finalmente concreta e não
mais utópica, ou, então, pelo contrário, representava a ameaça mais temível
para o pensamento conservador. A competição entre dois sistemas que se
afirmavam tão antagónicos, a esperança de que o sistema socialista realizava
finalmente o sonho milenar das multidões exploradas e oprimidas, caracterizou
uma época que jamais a humanidade conhecera. Essa foi a característica mais
marcante do século, força motriz da história que provocou, ou condicionou pelo
menos, uma série sucessiva de acontecimentos. Creio que nada disto é
controverso. O que me importa lembrar é a emergência de uma força mundial
de oposição às sociedades capitalistas, uma terça parte do mundo que se regia
por critérios não capitalistas, os imensos territórios abrangidos pela União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), por diversos países da Europa
central e, no extremo oriente, por esse colosso potencial que era a China. No
decorrer dos anos do pós-guerra os movimentos independentistas das colónias
dos antigos impérios alcançaram êxitos extraordinários e muitos desses novos
regimes opuseram-se ao imperialismo norte-americano e refiro particularmente
o movimento dos países Não-Alinhados que constituiu um importante travão
nos planos norte-americanos de hegemonia. Esses anos da nossa juventude
ensombrados pela ameaça da guerra nuclear não devem colocar no olvido ou
numa simples nota de rodapé dos livros de história os formidáveis progressos
políticos, económicos e sociais que traziam a marca das ideias socialistas. O
mundo mudara profundamente: uma enorme área do globo colonizada e palco
de rapinas sangrentas (a história do colonialismo e da escravidão sob o
capitalismo é das mais negras da história mundial) emancipara-se, se bem que
à custa de pesados sacrifícios (a brutal resistência dos imperialismos
colonialistas pode preencher uma grande parte do Livro Negro do capitalismo),
e aqui basta lembrar a Indochina, a Argélia e as colónias do império português.
Também é verdade que nem sempre as admiráveis tentativas de libertação
democrática e nacional foram vitoriosas: na América Latina, essa imensa
coutada para as corporações norte-americanas, as tentativas revolucionárias
ou as mais moderadas reformas democráticas e nacionalistas, quer fossem
mesmo por via eleitoral e pacífica, acabaram quase sempre esmagadas sob o
terror de ditaduras militares. É evidente que a existência do mundo socialista
estimulava mas não facilitava as revoluções nem garantia o seu sucesso. O
que pretendemos enfatizar é o inegável o poder de atracção exercido pelas
sociedades esperançosas da URSS, da China ou de Cuba.
Dever-se-á concluir, como muitos o fizeram na altura, que os difíceis equilíbrios
da Guerra Fria, ou os chamados imperativos geoestratégicos, deixavam de
certo modo as mãos livres aos Estados Unidos? Existiam zonas estratégicas
distribuídas entre as super-potências através de acordos cinicamente realistas?
De modo nenhum, embora a realpolitike funcionasse, como, de resto, funciona
sempre entre Estados. O obstáculo que impedia o imperialismo norte3
americano de atacar mais ainda, de atacar os próprios países socialistas, foi a
arma nuclear. Atacaram Cuba, o Vietnam, serviram-se da Eritreia para derrubar
o socialismo da Etiópia, desestabilizaram a Somália, eliminaram o primeiro
presidente do Congo democrático, depuseram a República no Irão e colocaram
um rei fantoche, organizaram planos para tomar o Suez e liquidar o Presidente
Nasser do Egipto, organizaram o golpe contra Sukarno e ajudaram a
assassinar um milhão de comunistas e ficamos por estes exemplos, não
excluindo o Afeganistão e a Palestina e os países do golfo arábico. É claro que
as estratégias que pressupunham a Guerra Fria, isto é que serviam para evitar
um confronto directo entre as duas super-potências, não foram de modo
nenhum um Tratado de Tordesilhas que dividisse o mundo em Ocidente e
Oriente, essa tese retorcida de um compromisso geoestratégico entre as duas
super-potências servia sobretudo para justificar a política imperialista dos
Estados Unidos; se compromissos houve foram então violados
descaradamente na Coreia, no Vietnam, Camboja e Laos, isto é, nas “barbas”
da China. Os Estados Unidos e os seus aliados nunca cederam o passo ao
progresso dos povos subjugados e quando não convinha intervir directamente,
intervinham indirectamente através de estratégias desestabilizadoras
terroristas, do golpismo sangrento, dos bloqueios económicos, do suborno de
políticos corruptos, da instalação de bases militares por toda a parte. De resto,
a principal ameaça de guerra nuclear proveio dos próprios Estados Unidos, a
corrida aos armamentos que eles promoveram é bem a prova provada, assim
como a criação da NATO que é anterior ao Pacto de Varsóvia. O real conteúdo
da Guerra Fria era a ambição dos EU e seus aliados em conquistar o máximo
de territórios do planeta, impedir a propagação das ideias e dos regimes
socialistas, ou até e apenas anti-imperialistas, e estes propósitos constituem
um só evidentemente. Se mais não conseguiram foi por causa da presença
poderosa da URSS, sobretudo, e da China. Era a estas e a outras forças de
oposição que eu me referia no início. Factos são factos. O século passado
pode, assim, ser caracterizado pela existência de duas forças opostas
equivalentes ou quase. O que uma fazia incomodava a outra, fazia-a recuar ou
estimulava a competição. Como todos sabemos estivemos à beira mais que
uma vez de uma Terceira Guerra Mundial. Qualquer acto cometido por um dos
lados podia provocar no outro uma resposta catastrófica. Essa espada de
Tântalo esteve suspensa sobre a cabeça de várias gerações. Evito fazer juízos
de valor sobre a natureza dos regimes socialistas, qualidade e diversidade.
Particularmente sobre a reiterada afirmação de que tanto a URSS era
imperialista como os EU e que, portanto, o século teria sido a confrontação
prolongada de dois imperialismos, um dos quais saiu derrotado. Não creio que
convertendo a expressão «imperialismo» numa expressão ambígua se facilitem
as coisas. Declaro já, sem equívocos, que reservo o termo e o conceito de
“imperialismo” para os Estados Unidos e seus aliados. Há duas interrogações
principais que justificam um esclarecimento tão preciso quanto possível do
termo e conceito de “imperialismo”: Primeira – A URSS era uma super-potência
imperialista ou não? Segunda – Existe um imperialismo hoje? No caso
afirmativo de que tipo é?
Não podemos em rigor caracterizar a URSS como “imperialista”, nem os factos,
nem os documentos comprovam tal designação construída e promovida pela
propaganda do ocidente capitalista e explanada em teorias profusamente
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vendidas. A utilização de noções vagas, arbitrárias, não enfraqueceu, porém, a
eficácia, bem pelo contrário, dessa propaganda, que provocava o medo e
justificava o verdadeiro imperialismo. Houve famosos intelectuais que
consideravam imperialistas ambos os lados e, por isso, se refugiavam em
neutralidades cómodas. É preciso que se diga que o consenso que permitiu o
Movimento dos Não-Alinhados não se baseava principalmente no pressuposto
de «entre dois imperialismos, não escolhemos nenhum», ainda que ele fosse
porventura real, mas em objectivos sobretudo económicos, isto é, um programa
de desenvolvimento não-capitalista autónomo e tratados de comércio comum e
multilateral. O projecto que justifica a designação «Não-Alinhados» explica-se
pela co-relação de forças interna desses países, pela maior ou menor força das
suas próprias burguesias.
Penso que a URSS não construiu um império. Foi evidentemente hegemónica
no Leste da Europa mas nunca o foi no resto do mundo. Não vale de nada
construirmos cenários improváveis do género: se o mundo capitalista fosse
demasiado fraco, a URSS ocuparia a Europa com os seus exércitos…Só de
uma coisa temos a certeza: o desejo e a esperança de uma revolução mundial
alimentou a mente de milhões de seres humanos, e não foi evacuada
definitivamente do horizonte. Com Lenine e com Estaline a Rússia soviética,
depois URSS, sempre afastou a estratégia de exportar a revolução, e sabe-se
como foi longa e crispada essa querela à volta do «socialismo num só país».
As intervenções externas da União Soviética, algumas muito controversas
(como no caso da Checoslováquia), não bastam para as caracterizar como
imperialistas, porque não resultavam de um modo de produção cujo processo
de acumulação exigia o imperialismo como necessidade intrínseca de exportar
o capital e aumentar os super-lucros. Devíamos concluir que, pelo contrário, a
URSS ou a China impediram, ou travaram pelo menos, a mundialização
capitalista. Mais claramente: se não fosse a existência de mundo não
capitalista (os países socialistas e outros regimes que se opuseram ao
imperialismo capitalista) a chamada “globalização” já estaria imposta desde as
ruínas legadas pela 2ªGuerra Mundial. De facto, em 1945, com a derrota da
Alemanha e do Japão, a União Soviética impedida de ser erguer das ruínas, os
Estados Unidos tornar-se-iam senhores absolutos do planeta, a Europa, o
extremo oriente a América Latina seus protectorados. Mas a história não lhes
correu de feição, apesar de tudo: a URSS ergueu-se rapidamente para
surpresa de todos, a China libertou-se e, sucessivamente, outros países
aproveitaram as circunstâncias e seguiram diversos rumos convergentes de
progresso e democracia. As grandes transformações e conquistas sociais dos
povos e dos trabalhadores devem-se principalmente, digo eu, à influência
positiva exercida em todo o mundo pela Revolução de Outubro e, mais tarde,
pela vitória da URSS sobre o nazismo e pelos progressos sociais que os
países socialistas realizavam, para inspiração dos sindicatos operários e dos
partidos políticos da Esquerda. O próprio New Deal e a prática das teorias do
economista Keynes nos Estados Unidos é impossível desligar tudo isso da
influência dos ideais progressistas que os progressos e os êxitos do mundo
socialista inflamavam. Algumas derrotas dos partidos comunistas logo no pósguerra,
como sucedeu nomeadamente na Itália, e sabe-se como para tal
contribuíram os Estados Unidos, os clérigos e as máfias, não colidem com a
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afirmação anterior, evidenciam, pelo contrário, os planos imperialistas dos
Estados Unidos já elaborados quando a derrota do Eixo nazi-fascista se
anunciava. Na verdade as hesitações e atrasos nos exércitos dos aliados
evidenciam o cálculo de permitir-se que a União Soviética ficasse de tal modo
destruída e desorganizada económica e politicamente, que tornassem
possíveis revoltas internas para acabar com o comunismo de vez. Pesem
embora todos os defeitos de Estaline e todas as críticas que lhe possam ser
assacadas, o seu papel na Conferência de Yalta foi absolutamente decisivo
para fazer frustrar os planos dos Aliados. O que queremos afirmar com clareza,
sem tibiezas, é que a Segunda Guerra Mundial foi provocada pelos
imperialismos nazi-fascistas, mas a entrada nela dos Estados Unidos visava
planos imperialistas bem conhecidos e apoiados pelos governos das nações
suas aliadas, planos de que o Partido Comunista da União Soviética teve
perfeito conhecimento e em boa parte frustrou. Insistimos nisto: o século vinte
não foi o século da estrada real do imperialismo, mas o século em que ele não
avançou tanto e tão depressa como desejava, em que sofreu derrotas e recuos
de formidável alcance. Foi simultaneamente o século do socialismo. Nele se
apresentou com foros de realidade aquela bela utopia concreta sobre a qual
tão bem escreveu Ernst Bloch, nele se depositaram as melhores esperanças,
se realizou um rol impressionante de grandiosas conquistas e de muitas outras
mais modestas que, somadas, exprimem profundas transformações no modo
de vida das populações, direitos que tornaram a liberdade mais livre e a
segurança mais duradoira, nos contractos de trabalho, nos tempos de trabalho
e de repouso, na protecção da saúde, na educação, na promoção da
emancipação das mulheres, no cuidado e importância atribuída às crianças e
jovens, etc. A história não caminhou apenas pelo lado mau. A civilização
avançou, as doutrinas contidas na ideologia progressista da Modernidade, do
Iluminismo, da Revolução Francesa, do vasto movimento operário que gerou
os partidos sociais-democratas e, a seguir, comunistas, não se baldaram de
todo. Nenhum historiador que se diga sério pode minimizar tantas e tamanhas
mudanças benéficas na vida dos seres humanos. Foi porque a civilização
avançou extraordinariamente mercê das lutas dos trabalhadores, que se
compreende porque é que hoje parece estender-se um cenário de luto por um
passado perdido. Mas sim, se a barbárie imperialista sob a ideologia nazifascista
ou sob a ideologia liberal-democrática devastou comunidades e vidas,
não o fez mais e pior porque se confrontou com a força das armas, fossem
estas as greves ou as espingardas. Se apenas o imperialismo dispusesse da
bomba, a história seria completamente outra.
A influência dos países socialistas e dos ideais comunistas explica também o
desenvolvimento das esquerdas alternativas, isto é, das sociais-democracias,
que desde o seu início nos alvores do século serviam sobretudo para satisfazer
algumas reivindicações operárias de modo a impedir as sublevações radicais.
O que é certo é que, apesar desse oportunismo, ou por causa da correlação de
forças, os trabalhadores alcançaram substanciais benefícios nas décadas
seguintes. Os teóricos anti-comunistas apressaram-se a afirmar que tais
progressos, o Estado-Providência como costumam designar (que é uma
expressão da doutrina social da Igreja), se deveram à vontade do capitalismo
mercê do surto de desenvolvimento que recebeu no pós-guerra, a começar
pelos Estados Unidos que beneficiaram amplamente com a Guerra Mundial.
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Ou seja, o Estado Social seria uma criação capitalista, efeito imanente do seu
modo de produção, produzindo a abundância e, portanto, os benefícios sociais.
Os factos não demonstram isso. Sem a força dos partidos e movimentos
sociais, sem a influência positiva do mundo socialista, sem a massiva atracção
pelos ideais socialistas, não existiria capitalismo algum tão bondoso que
oferecesse férias pagas aos trabalhadores, contratos colectivos e concertação
social, serviços de saúde e de educação gratuitos, etc. Foram conquistas e não
dádivas, e conquistas por vezes bem difíceis. Onde o capitalismo pôde
implantar ditaduras, implantou-as, como aquela que sofremos em Portugal
dezenas de anos, com pouco incómodo para os interesses ditos democráticos
dos Estados Unidos.
O que temos vindo a dizer sobre a dialéctica, se assim me posso exprimir,
entre os mundos capitalista e socialista ao longo do século passado, não exclui
de modo nenhum as tendências objectivas inerentes ao modo de produção
capitalista. As tendências para elevar a taxa de lucro, a acumulação,
concentração e centralização, constituem factores suficientemente constantes
para podermos falar numa lógica imanente do modo de produção capitalista
que o obriga a expandir e a diversificar os mercados, a aumentar o peso
relativo do capital constante e a “revolucionar”, digamos assim, as tecnologias,
a desencantar o mundo impregnando-o de novos encantos, a submeter todos
os indivíduos às necessidades artificiais e variáveis de consumo. O capitalismo
já possuía essas e outras tendências antes da existência do mundo socialista.
Queremos dizer, contudo, que é insuficiente, e até mesmo insustentável, uma
explicação dos rumos de desenvolvimento do capitalismo que não tenha em
conta a luta de classes no interior do modo de produção. A contradição entre
as relações de produção e o desenvolvimento das forças produtivas traduz
essa dialéctica imanente. Refiro-me particularmente à contradição entre duas
tendências: a tendência para a socialização da produção (talvez a tendência
principal se compreendo correctamente o pensamento de Marx) , isto é, a
concentração da produção e distribuição, organização e racionalização, a
constituição de grandes grupos em lugar de indivíduos isolados, as empresas
públicas ou tuteladas pelo estado, a generalização de mercadorias, serviços e
tecnologias para um número sempre crescente de indivíduos, povos e países)
e a tendência para a sobre-exploração, divisão social do trabalho e a alienação
e subjugação do trabalhador em relação ao processo de produção do início ao
fim, para a precariedade e fragilização dos contractos de compra e venda da
força de trabalho, manutenção de um exército de reserva de desempregados
ou excluídos do sistema por via da racionalização das forças de produção,
utilizados como arma de chantagem sobre os salários e as lutas dos
trabalhadores. A passagem da mais valia absoluta à mais valia relativa
evidencia precisamente a existência dessa oposição de forças, do lado da
capital e do lado dos trabalhadores, ou seja a resposta do capital à diminuição
da jornada de trabalho introduzindo novos métodos para manter e até
aumentar a produtividade e, portanto, o sobre-valor e os lucros.
O século passado conheceu progressos de vária ordem tanto no mundo
socialista, como no mundo capitalista. Todavia, muitos destes progressos
foram efeitos derivados, não constituíram um devir racional da História. Se
assim fosse o socialismo seria hoje o sistema dominante. Foram por vezes
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obras do acaso, acontecimentos não previstos, antagonismos, resultados da
luta de forças, da correlação de forças, do desenvolvimento de tendências
contraditórias. O progresso ideal para o capitalismo, a sua utopia, digamos
assim, é agora, como foi sempre, converter todos cidadãos, todos os indivíduos
de qualquer idade ou condição étnica, cultural ou geográfica, todos os
trabalhadores, em mercadoria e consumidores de mercadorias, submeter todos
os trabalhadores à obediência, empregados uns, desempregados outros,
qualificados uns, desqualificados outros, incluir uns, excluir outros, através de
um controlo absoluto, de uma regulação totalitária (e aqui cabe bem esta
expressão bastante ambígua, aliás) inculcando desejos e programando-os
segundo as necessidades do capital. Um só território do tamanho do planeta
para o capital, um só mercado mundial, um imenso exército de corpos e
cérebros completamente domesticados, um só pensamento, um desejo
condicionado. Mas esta distopia assustadora não é, felizmente, realizável. O
modo de produção não é somente constituído pelo capital, mas também pelos
trabalhadores. A relação das forças entre quem produz e quem lucra
condiciona o apetite pantagruélico do capitalista. A liberdade relativa do
trabalhador é uma condição para o mercado de compra e venda da força de
trabalho, a massificação universal do consumo não funciona com uma imensa
massa de consumidores sem um mínimo de poder de compra e de livre
arbítrio, ainda que este possa não ser mais que uma ficção útil, os
trabalhadores necessitam de repouso e outras condições necessárias à
reposição da sua força de trabalho, embora os seus tempos livres possam ser
cada vez mais absorvidos pelo negócio dos tempos livres, da saúde, dos
cuidados com o corpo, da imagem e do espectáculo. O capital ambicionaria um
trabalhador completamente passivo, contudo é a resistência do trabalhador que
impele o capital a transformar os métodos e as tecnologias, que se traduz
naquilo que é comum designar-se como o «progresso técnico». São, sem
dúvida, progressos na acumulação do capital, mas também um longo e sofrido
rol de conquistas sociais dos trabalhadores. Uma guerra incessante: conquistas
que se arrancam a ferros, conquistas que por vezes se virão a perder. Como se
constatou nenhuma conquista social era eterna. Não o foi o mundo socialista,
não o foram os Estados Providência. A relação de forças é que determina a
orientação do progresso ou do retrocesso.
O capitalismo ajusta-se às condições do mercado conforme a relação de
forças. No final do milénio e antes da erupção da actual crise o capitalismo
procurava seduzir os trabalhadores com a promoção de um cooperativismo no
interior das empresas, os ideólogos do regime apresentavam as novas
empresas de ponta como exemplos de cooperação, de empresas-família, de
assalariados transfigurados em “colaboradores”, de um taylorismo que dava
rapidamente lugar a um neo-taylorismo mais humano. Teóricos houve que,
constatando a socialização crescente da produção como tendência imanente
na qual a cooperação aumenta exponencialmente compensando os malefícios
da divisão e especialização do trabalho, acreditaram haverem-se criado, deste
modo, condições objectivas e subjectivas para se erguer um modo de produção
socialista, isto é, a conjunção das novas tecnologias com novas relações de
produção. Admitamos que sim, que o potencial está à superfície, mas o que
fazer com esse potencial é que é a questão mais complicada. A socialização
existe de facto, e é mesmo planetária ou tende a tal, a cooperação no novos
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processos de trabalho é realmente possível, Marx refere-se-lhe claramente nas
páginas de O Capital, tudo isso é indiscutivelmente verdadeiro e importante,
mas as teorias da convergência do socialismo e do capitalismo por osmose
reformista nunca se realizaram na prática. Tal potencial facilita a transição para
o socialismo de que forma: pela revolução ou por reformas? De uma maneira
geral as teorizações pós-modernistas de há uns anos atrás exprimiam
paradoxalmente uma visão conformista do mundo, as suas conclusões sobre a
capacidade infinita do capitalismo reconfigurar-se a si próprio a transformar
todos os lugares do mundo onde chegava, conduziam a uma capitulação,
viesse ela sob a fórmula de um pragmatismo sem outros horizontes senão o
presente, ou sob a fórmula reconhecida das utopias. Não é de todo exagerado
classificar determinadas teorias como uma subtil propaganda capitalista. Não é
verdade que se promove a descrença e a desistência relativamente a uma
alternativa radical quando grande parte dos propósitos de demolição
sistemática da Modernidade transmitem a rejeição completa e definitiva dos
regimes socialistas, passados e virtuais, e da dialéctica da luta de classes?
Não é verdade que quando Marx é referido é para dele se omitir, ou mesmo
criticar, a sua primeira e última intenção: o derrube do capitalismo? O
aproveitamento do declarado potencial libertador do capitalismo parece
apresentar-se como a utopia possível, que, ao contrário das anteriores,
rejeitadas e desacreditadas, já não ousa imaginar uma sociedade sem
capitalismo.
Entretanto sobreveio a crise, ou o seu brutal agravamento. Determinadas
utopias desfizeram-se subitamente em fumo. A realidade moveu-se mais
depressa que o pensamento que a queria conter nas suas margens.Com o
estoiro da economia dos Estados Unidos e da Europa a ideologia quase que
emudeceu à procura de novas fórmulas filosóficas que transfigurem os
retrocessos civilizacionais em putativos avanços. A propaganda dos testas-deferro
do capitalismo e os seus ideólogos de serviço apressam-se agora a
convencer toda a gente do dever de todos cooperarmos para sairmos da crise.
Enquanto se apela ao patriotismo torpedeia-se a soberania nacional. Enquanto
se pede com lágrimas de crocodilo a colaboração de todos na transcendente
tarefa de salvar a economia sem a qual não há empregos, despedem-se
trabalhadores, retrocedem as regras do trabalho, permite-se a chantagem dos
financeiros e especuladores e reforçam-se os poderes de organismos
internacionais que mais do que regular os capitais, impõem velhas receitas de
exploração e de acumulação do capital. O capitalismo mudou sim, mas para
pior, andou sim, mas para trás. O capitalismo retroage, impondo, pela força ou
pelos consensos, ou pela chantagem, políticas de austeridade, que procuram
de novo subjugar os trabalhadores, povos e países inteiros. A empresa-família
é novamente a empresa administrada e controlada até ao limite pelos
capitalistas e seus agentes. Um capitalismo sem rosto humano, já sem a treta e
o truque do combate anti-comunista da Guerra Fria. O “socialismo
democrático”, bandeira das sociais-democracias e da auto-intitulada “Nova
Esquerda”, faliu, a sua deriva para um capitalismo sem rebuço já se anunciava,
aliás, muito antes desta última crise. Porque, importa dizer que tomou o freio
nos dentes desde, pelo menos, a administração de Reagan e da senhora
Tatcher. Importa dizer que a sua arrancada em direcção a um controle absoluto
não se iniciou por causa da derrocada da União Soviética, foi ela mesma que
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funcionou como alavanca para derrubar o bastião adversário. Ora, o que é isto,
o que tem sido isto, senão um imperialismo? A expressão “neo-liberalismo”
com que se classifica o capitalismo contemporâneo é adequada para se
designar uma orientação dita “monetarista” também conhecida por teoria da
“Escola de Chicago”, que se opunha à escola que defendia as teorias
económicas de Keynes. Um papel maior do Estado, investimentos públicos,
uma distribuição da riqueza que se pretendia mais equitativa; um determinado
contrato social com os sindicatos e virada para a produção de bens e para o
consumo. Um modelo norte-americano que se associava ao seu melhor
período de prosperidade. Na Europa vigorava o Estado Social, cuja relativa
estabilidade e bem-estar constituiu uma barreira protectora contra os projectos
revolucionários e uma competição cada vez mais difícil de ser prosseguida com
sucesso pelas economias colectivistas do Leste. O neo-liberalismo é, portanto,
uma política exportada e imposta pelos Estados Unidos aos mais renitentes
dos seus aliados europeus. Foi porque a Europa entrou em decadência que se
viu obrigada a adoptar o neo-liberalismo? Não. Foi porque os Estados Unidos
impuseram as suas regras no comércio mundial e controlavam os processos de
financiarização das economias, a começar pela deles. Os Estados Unidos é
que entraram em decadência. O Estado Social depois é que começa a ser
desmantelado, os códigos do trabalho, os direitos, etc. As crises periódicas do
capitalismo foram aproveitadas para uma reordenação das forças na luta de
classes. Uma nova ordem mundial estava já na forja antes mesmo do 11 de
Setembro, esse singular acontecimento cujas causas são tão nebulosas que
admitem todas as suspeitas, mas cujas consequências vieram demonstrar com
toda a evidência os planos imperialistas do capitalismo. A história do
capitalismo, desde pelo menos a Revolução Industrial, esclarece-nos sobre o
seu insaciável apetite global pelas recursos energéticos que alimentam a
produção, o mercado e a rentabilidade do capital. O controlo dos meios de
produção desempenha um papel tão crucial como a exportação de capitais e a
multiplicação do dinheiro, associam-se e compõem a vocação imperialista do
Capital.
A minha comunicação intitula-se «A questão dos imperialismos». Terei saído
completamente do tema ou aquilo que descrevi são pedaços de um puzzle que,
dispostos nos seus devidos lugares, nos dariam o retrato do imperialismo?
Creio que sim, não falei eu de outra coisa senão do imperialismo.
Usualmente tomamos a expressão «imperialismo» no sentido da dominação
das grandes potências do Ocidente sobre os países pobres, do Norte sobre o
Sul, do Primeiro Mundo sobre o Terceiro Mundo. Dizer “ imperialismo” é uma
outra forma de dizer «colonialismo», «impérios coloniais», ou «neocolonialismo
» para o distinguir do colonialismo oitocentista, ou ainda, como era
usual há umas décadas atrás, o “imperialismo” é a exploração exercida pelo
mundo industrializado sobre o mundo camponês. Compreende-se que estes
significados, económicos e políticos, hajam sido enfatizados na segunda
metade do século passado mercê da importância especial das revoluções
operadas pelos novos países do Terceiro Mundo, que vinham substituir as
revoluções nos países desenvolvidos, consideradas já impossíveis. A influência
da China foi decisiva nesse contexto.
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No fundo esse significado deriva da teorização de Karl Kautsky (1854-1938),
figura de vanguarda do marxismo tradicional e da social-democracia, e não
creio que seja satisfatória; creio mesmo que faz tábua rasa da investigação que
Marx efectuou e expôs no Capital sobre a acumulação do capital, que culmina,
na maturidade, as teses muito antes expostas no Manifesto do Partido
Comunista, sobre a formação e expansão de um mercado mundial; atrevo-me
a afirmar que a base original da constituição do imperialismo, moderno e
contemporâneo, se encontra revelada nessa descrição visionária e genial do
processo de mundialização do capitalismo contida nesse livrinho pelo qual,
normalmente, os comunistas iniciavam a sua formação política. Certamente
que vários outros textos do punho de Marx poderiam ser citados relativamente
a este tema, mas o Manifesto e certos capítulos de O Capital bastam para
compor a teoria de Marx sobre a natureza imperialista do capitalismo. A
orientação expansionista deste, absolutamente inevitável quando nenhum outro
modo de produção com força equivalente se lhe opõe, é acompanhado pela
violência e pela guerra aberta e brutal, e tanto bastaria ler o texto de Engels «A
violência na história» que descreve com minúcia a constituição da grande
Alemanha sob o governo de Bismark e a competição entre as potências
europeias por territórios e recursos intra e extra europeus. O capital desde que
veio ao mundo transpira lama e sangue, Marx descreve a brutalidade da
exploração na parte de O Capital dedicada ao processo de acumulação do
capital (Livro Primeiro, Tomo III).
A necessidade de um escoamento sempre mais extenso para os seus produtos
persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se implantar em toda
a parte, instalar-se em toda a parte, estabelecer contactos em toda a parte. As
designadas sociedades-em-rede , a trama que entrelaça a circulação da
comunicação das actividades económicas, a circulação mundial de bens e de
dinheiro, confirmaram esta tendência e muito provavelmente o processo não
atingiu ainda o seu limite.
«A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, configurou de um
modo cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande
pesar dos reaccionários, tirou à indústria o solo nacional onde firmava os pés
(…) Para o lugar das velhas necessidades, satisfeitas por artigos do país,
entram (necessidades) novas que exigem para a sua satisfação os produtos
dos países e dos climas mais longínquos. Para o lugar da velha autosuficiência
e do velho isolamento locais e nacionais, entram um intercâmbio
omnilateral, uma dependência das nações umas das outras. E tal como na
produção material, assim também na produção espiritual.» Podemos ler estas
palavras no Manifesto, redigidas no ano longínquo de 1847! Nenhum outro
escrito, que não do punho de Marx ou Engels, que conheçamos, colocara até
então o problema nestes termos, mesmo aqueles que anunciavam os triunfos
do mercado e do modo de produção capitalista, nomeadamente Adam Smith e
David Ricardo. Na verdade, as teses expostas com clareza excepcional no
Manifesto, são absolutamente pioneiras e originais, sobretudo se não forem
desligadas do pensamento anterior e posterior de Marx. Anterior, porque
vemos delas prenúncios nos textos de A Ideologia Alemã (a tese da divisão
social do trabalho como fundamento dos diversos modos de produção) e nos
Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844; posterior, porque o imperialismo,
11
com ou sem esse nome, é claramente dedutível da investigação científica
exposta por Marx na obra Para a Crítica da Economia Política , de 1859, onde
dedica dois capítulos ao comércio externo e ao mercado mundial e, sobretudo,
nas páginas de O Capital, por exemplo no subcapítulo que expõe a «tendência
histórica da acumulação capitalista» onde refere expressamente o “carácter
internacional do regime capitalista” e o “entrelaçamento de todos os povos na
rede do mercado mundial”. A natureza imperialista da burguesia e do capital,
tanto na economia como noutras áreas, é uma tese marxista, marxiana se
preferirmos esta expressão que atribui a Marx o que é de Marx e não de
vindouros. Se isto já for sabido tanto melhor. Mas objectar-me-ão: não se deve
a Lenine? Sim e não. Não se deve originalmente, como vimos: Lenine foi
provavelmente o melhor leitor de Marx (bem melhor do que Plekhanov e
Kautsky que traduziram e divulgaram algumas das suas obras). Lenine
compreendeu Marx e não omitiu teses deste muito provavelmente porque não
sofreu a deriva social-democrata , e essa compreensão leninista do
pensamento de Marx estará, creio eu, no plano teórico e no plano prático, na
origem da sua ruptura com a Segunda Internacional e nos ataques ao
oportunismo de Kautsky de quem fora amigo e admirador. As famosas teses de
Lenine sobre o imperialismo assentam, não tenho dúvidas, na teoria de Marx,
de quem, de resto, faz oportunas citações no seu pequeno mas substantivo
livro «O Imperialismo, Fase superior do Capitalismo». Não apenas porque
Lenine desenvolveu as teses de Marx ajustando-as ao capitalismo das
primeiras décadas do século vinte, e isso já seria bastante. A intenção
claramente exposta foi combater Kautsky e a deriva social-democrata. A
definição que Kautsky formulou de “imperialismo”, segundo a qual expressava
o domínio – exploração e opressão – dos países “agrários”, mais pobres e
atrasados, tornou-se tão usual no século passado que a sua origem foi
vulgarmente atribuída ao próprio Lenine, quando, na realidade, Lenine a
criticou duramente e sem contemplações no seu opúsculo. Kautsky afirmava
que se assistia apenas a uma das formas de evolução do capitalismo, que não
a suprema ou derradeira, «à exploração do mundo pelo capital financeiro,
unido internacionalmente», e, assim, a luta deveria ser orientada contra os
«trusts e carteis», os monopólios, conjecturando que essa fase poderia
transitar para uma outra, a que chamou “ultraimperialista”. As formulações de
kautsky sobre a nova fase mundialista do capitalismo apresentadas como uma
utopia pacifista constituíam um grave prejuízo para os objectivos das lutas que
as novas condições exigiam. Segundo Lenine a definição de Kautsky do
imperialismo era utópica na aparência e oportunista na essência. Lenine
procurou demonstrar que os anúncios pronunciados por Marx haviam-se
cumprido, manifestavam-se concretamente nas novas características do
capitalismo, novas não porque fossem acontecimentos singulares, aleatórios
ou casuais, sem passado e sem história, mas, pelo contrário, resultados
maduros de um processo, de uma tendência imanente que Marx descobrira: a
formação dos grandes grupos económicos (trusts, monopólios, multinacionais),
isto é a concentração e centralização do capital, a marcha para a formação de
um mercado mundial com um papel crescente e decisivo dos Bancos, isto é, o
entrosamento da grande indústria com a banca, o carácter cada vez mais
financeiro da economia, factor de enorme relevo para a internacionalização e
hegemonia dos oligopólios de ambição planetária. Mas também,
necessariamente complementar, a violência brutal, bárbara e desumana, que
12
Marx já expressara nas páginas de O Capital, ou seja, a conquista do mundo
pela burguesia nunca se fez, nem se fazia na época em que Lenine criticou
Kaustsky, por via pacífica nem para aí se caminhava, muito pelo contrário, sim
pela destruição das economias locais, pela expropriação e proletarização
universal forçada, pela guerra entre nações ricas e não apenas destas contra
as mais pobres. A argumentação de Kautsky, que parecia irrefutável quando se
referia ao predomínio do capital financeiro (aliás, conclusões factuais já
avançadas por economistas de referência), escamoteava o potencial
agravamento da concorrência inter-capitalista, a competição por nova partilha
do mundo, e descolava o imperialismo do movimento imanente e objectivo da
totalidade do capitalismo. Não faz sentido descrever-se a concorrência intercapitalista
sem que se pressuponha a totalidade do capitalismo, isto é, o
capitalismo como um modo de produção, um sistema dotado de características
comuns em toda a parte, tendo nele inscrito as mesmas tendências, movendose
como uma máquina compressora sobre o globo. Não se tratava, para
Lenine, de um império à semelhança do império romano, política expansionista
de um país, ou vários, mais poderosos do que os demais, mas de uma
formação económica e social, atravessada por diferenças e contradições, cuja
base – a acumulação – criou um mercado mundial. O imperialismo vinha para
substituir os velhos impérios coloniais não superando a concorrência mas, ao
invés, conduzindo-a a extremos inauditos.
Todos conhecemos as teses defendidas por V.I. Lenine no seu famoso livrinho
«O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo». Contudo, talvez importe aqui
resumi-las para sustentar que elas correspondem ao pensamento de Marx e
constituem uma aplicação criadora a novas condições. A exposição assenta,
sobretudo, na análise demonstrativa da concentração da produção e na
formação dos monopólios. O aparecimento do monopólio devido à
concentração da produção é uma lei geral e fundamental da presente fase de
desenvolvimento do capitalismo, segundo Lenine. A concorrência transformase
em monopólio. Daí resulta um gigantesco progresso na socialização da
produção. Socializa-se também, em particular, o processo de inventos e
aperfeiçoamentos técnicos. «O capitalismo, na sua fase imperialista, conduz à
socialização integral da produção nos seus mais variados aspectos; arrasta,
por assim dizer, os capitalistas, contra a sua vontade e sem que disso tenham
consciência, para um novo regime social, de transição entre a absoluta
liberdade de concorrência e a socialização completa» (obra citada, p.31, edição
portuguesa). Esta tese, que persegue fielmente a teoria de Marx, é de enorme
importância. Ambivalência dialéctica: o capitalismo na fase imperialista dos
trusts, cartéis, monopólios, multinacionais, tanto impõe e administra a sua
liberdade absoluta ou quase, isto é, dominam o mercado mundial, partilham o
globo entre si «por contrato», como, simultaneamente, sem darem por isso e
sem o desejarem evidentemente, amadurecem as condições objectivas para a
sua socialização completa, na medida em que a produção é integralmente
social; social não já apenas porque abarca e serve um país inteiro, mas, numa
economia de colossal escala, abarca o globo. Reduz-se o particularismo,
dissolvem-se as economias locais e familiares. Em boa verdade já não fazem
sentido sequer economias regionais, porque estas servirão o mercado mundial
ou estão condenadas. Dialecticamente falando o mau contêm ao mesmo tempo
o bom, isto é, o aprofundamento do carácter social da produção. E Lenine
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subentende a tese marxiana de que quanto mais desenvolvidas forem os meios
e as relações de produção melhor se construirá o socialismo. Não será porém
neste livrinho que se responde à interrogação seguinte: nesse sentido,
tomando a tese à letra, será não somente possível mas mais fácil o socialismo
num só país? Ou seja, quanto mais as multinacionais se afirmam e o
capitalismo se converte numa força global é menos ou mais fácil o socialismo
num só país? Muito antes do debate sobre “o socialismo num só país” eclodir
entre Estaline e Trotsky, o oportunismo de Kaustky antevia na fase do
imperialismo a utopia de um capitalismo mais favorável à paz mundial, à
comunicação e ao consenso entre países, etc.
O outro elemento fundamental que Lenine explana para descrever a nova fase
como imperialista são os bancos; e uma vez mais desenvolve teses que Marx
expusera em O Capital. «(…) o desenvolvimento do capitalismo chegou a um
ponto tal que, ainda que a produção mercantil continue «reinando» como antes,
e seja considerada a base de toda a economia, na realidade encontra-se já
minada e os lucros principais vão parar aos «génios» das maquinações
financeiras. Estas maquinações e estas trapaças têm a sua base na
socialização da produção, mas o imenso progresso da humanidade, que
chegou a esta socialização, beneficia…os especuladores.» (obra citada, p. 32).
Palavras proféticas que melhor do que nunca se aplicam aos nossos tempos.
«A supressão das crises pelos cartéis é uma fábula dos economistas
burgueses, que põem todo o seu empenho em embelezar o capitalismo. Pelo
contrário, o monopólio que se cria em certos ramos da indústria aumenta e
agrava o caos próprio de todo o sistema da produção capitalista no seu
conjunto.» (obra citada, p.33).
O desenvolvimento das trocas a uma escala cada vez mais mundial, é uma
tendência inelutável do capitalismo entregue a si próprio. O desenvolvimento
desigual, por saltos, das diferentes empresas e ramos da indústria e dos
diferentes países é inevitável sob o capitalismo.
As afirmações de Lenine ganharam toda a actualidade nos tempos vindouros.
As crises económicas tornam-se cada vez mais profundas e mundiais, o
desemprego não só tem vindo a aumentar como adquiriu um carácter crónico.
Aumenta o domínio através do militarismo que ao mesmo tempo que revela a
decomposição e o parasitismo do capitalismo, é utilizado para oprimir e
intimidar. Daí os enormes gastos com as armas que tanto enriquecem os
monopólios que as produzem como debilitam as economias. Daí o contrabando
de armas, a corrupção e a militarização de regimes fantoches. A Guerra Fria,
causada e sempre alimentada pelo capitalismo, e que constituiu um factor de
monta para a estagnação da economia da União Soviética, prova sobremaneira
as teses leninistas. Aprisionado num ciclo vicioso o militarismo devora recursos
tanto das potências imperialistas como dos países dominados, empobrece e
arruína os povos e, numa escalada sem fim, prepara infindavelmente novas
guerras.
A violência política é, antes de mais, uma função económica. Desenvolve-se no
mesmo sentido que a evolução económica, contribuindo tanto para a acelerar,
como para a refrear. O Capital é incapaz de suprimir a violência e o militarismo,
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violência que começa na expropriação e consequente proletarização e culmina
na invasão de nações, ameaças e intimidações. A Conferência que a NATO
realiza em Novembro precisamente num país periférico e dominado como
Portugal, é prova bastante não de um “ultraimperialismo” de concórdia, um
novo “Império” auto-regulado que aprendeu finalmente a unir concorrentes
agressivos por meio de acordos pacíficos, mas, sim, do reforço e alargamento
de uma tremenda força militar liderada pelos Estados Unidos que prossegue as
suas finalidades originais de intimidação das nações que se lhe oponham, de
intimidação e de intervenção militar sempre sob a capa mentirosa da «defesa
do mundo livre», dos «direitos humanos» ou do «mercado livre». O
imperialismo é a tentativa de submeter totalmente o mundo, através de trocas
desiguais, da rapina de recursos, do controlo do mercado de capitais, da
hegemonia tecnológica e do controlo dos meios de comunicação de massas, e
tudo isto é inseparável da utilização dos meios militares quando necessário e
sempre que possível.
O propósito de Lenine é desenvolver a tese de Marx da formação do mercado
mundial relacionando-a com a teoria da acumulação. Quando esse
imperialismo já se expandia nos inícios do século, alguns outros viram nessa
transformação virtuais vantagens para a paz e para os consensos, como outros
voltam a vê-las com a chamada “globalização”. Ora, a fase superior do
Capitalismo foi e é, afinal, a fase do seu militarismo mais brutal, desde as duas
guerras mundiais à Guerra Fria, desde a Indochina ao Médio Oriente. É a fase
da sua decomposição e decadência, por mais fôlegos que tenha, e do seu
comportamento parasitário, como se demonstra pela rapina dos poços de
petróleo e pelo elevado grau de consumo nos Estados Unidos garantido pela
exploração dos países dominados. Já foi há tanto tempo que terminou a fase
“heróica” e “revolucionária “ da Burguesia que nos provoca um espanto triste
certos filósofos e pensadores contemporâneos que conseguem vislumbrar no
capitalismo ainda um potencial de revolucionamento permanente, talvez
iluminados até à cegueira pelos progressos tecnológicos. Todas as taras
estavam exacerbadas ao tempo em que Lenine redigiu a obra que temos vindo
a citar; se assim já o era, cem anos depois não temos mais adjectivos para as
classificar. As crises sucediam-se cada vez mais graves, foi Lenine que o
disse, e não podia sequer adivinhar a crise de 1929 e a crise que ora
atravessamos sem fim à vista…
A monopolização não trouxe o fim da concorrência, o fim da rivalidade intercapitalista,
como interpretou Kautsky. A tese de Marx e, portanto, de Lenine, é
esta: a monopolização junta-se à concorrência e nesta combinação
intensificam-se uma à outra. É esta dialéctica que introduz o imperialismo. As
rivalidades inter-capitalistas, a exportação de capital e a deslocalização das
empresas para os países subdesenvolvidos promoveram o desenvolvimento
das forças produtivas nessas áreas do globo, gerando um vasto proletariado
mundial e fazendo entrar essas regiões no palco das modernas lutas de
classes.
Não sabemos o que farão as famosas “multidões” enaltecidas por Michael
Hardt e Antonio Negri no seu livro intitulado «Império»… Promovido por esse
novo avatar em que se transfigurou o capitalismo, essa entidade abstracta,
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sem espaço e sem tempo, a que chamaram “Império”, a mobilidade e a
circulação dessas multidões “nómadas” é o traço novo do capitalismo
contemporâneo que teria deixado de ser imperialista. Segundo eles estas
multidões “nómadas” apropriam-se do espaço e constituem-se em “sujeito
activo”. Como é que “multidões” alcançam consciência de “sujeito activo”? Em
vez de “massas”, multidões; em vez de classes, multidões. Eles mesmos se
interrogam: «Como podemos reconhecer (e revelar) uma tendência política
constituinte dentro e mais além da espontaneidade dos movimentos da
multidão?» (Imperio, Paidós, Barcelona, 2002, p.361,) Realmente esse é o
calcanhar de Aquiles de um livro ambicioso que ganhou foros de notoriedade.
Os autores esforçam-se por demonstrar que a fase do imperialismo transitou
para a fase do Império, hegemonia global da qual, dizem, «os Estados Unidos
não constituem –e, em realidade, nenhum estado-nação pode hoje constituir –
o centro de um projecto imperialista. O imperialismo terminou. Nenhuma nação
será o líder mundial como o foram as nações europeias modernas». » (sic, p.
15). O Império é, assim, a nova forma global de soberania composta por uma
série de organismos nacionais e supra-nacionais…Bem, esta caracterização de
um putativo Império que viria encerrar a fase dos imperialismos, assemelha-se
de algum modo à tese de Kaustky sobre um “ultra-imperialismo” que viria
resolver a competição guerreira entre os imperialismos através da possibilidade
de uniões e acordos, o que facilitaria o desenvolvimento de reformas sem
necessidade de recorrer a rupturas radicais e violentas. Ou seja, um
capitalismo monopolista sem imperialismos, regulado por um supraimpério…
difuso e nebuloso.
Porquê tratar o tema do imperialismo? Porquê revisitar o célebre livro de V. I.
Lenine? Primeiro, porque a noção de «imperialismo» é de importância crucial,
sempre o foi mas hoje não menos do que antes, talvez mais importante hoje,
para descrevermos o mundo, os seus traços e as suas tendências da
economia, da política, das ideologias, para nos insurgirmos e acreditarmos na
necessidade e possibilidade de uma alternativa, para definirmos os fins e
construirmos os meios. Tudo isto em grande parte depende da definição que
atribuirmos ao conceito de imperialismo. Para situar a reflexão servi-me do livro
de Lenine, porque me pareceu oportuno expor a sua actualidade, apesar de
aqui e ali necessitar de correcções e readaptações que cem anos de história
exigem e justificam. Não se deve enterrar a cabeça na areia e fingir que nada
aconteceu entretanto, que o capitalismo não mudou absolutamente nada e que
a época das revoluções se abre prometedora para as nossas lutas, como
afirmara então Lenine. Contudo, na sua essência, o imperialismo não terminou,
os cinco traços fundamentais que Lenine viu no imperialismo não se
evaporaram neste capitalismo desregulado e neo-liberal. A acumulação criou
um mercado mundial, o capitalismo atravessou vários períodos até culminar no
imperialismo que é a sua fase monopolista, ou, se preferirmos, das
corporações multinacionais, que têm vindo a demolir as formações sociais nãocapitalistas
e a oprimir pela exploração aberta e pela violência descarada
sempre mais povos e populações do globo; as potências capitalistas continuam
a dividir o mundo em esferas de influência, neste caso um mundo apto a sofrer
um novo ordenamento após o colapso da União Soviética, a concorrência intercapitalista
agudiza-se com a relativa inércia e dependência da economia
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estado-unidense e com a entrada na arena do mercado mundial das pujantes
economias da Ásia, etc.
Finalmente, importa porventura reafirmar a actualidade e a incontornável
importância dos textos de Marx e de Lenine para nos ajudarem a compreender
já não digo o presente conjuntural, mas a história de prazos longos, como
exigia a boa historiografia da escola de Braudel. A periodização do
comportamento multicentenário do capitalismo revela-se, assim, de uma
importância evidente a todos os títulos, porquanto não pertenço ao número dos
que acreditam que o imperialismo transitou para uma nova fase, em que se
torna um movimento, um movimento difuso e algo virtual como aquelas noites
em todos os gatos são pardos. O neo-liberalismo não corresponde ao fim dos
imperialismos e a uma nova civilização, mas, pelo contrário, a um terrível
retrocesso civilizacional imposto por um capitalismo de bandidos. Nunca foi tão
premente falar de Lenine, de Marx, como agora, num tempo em que se tenta
criminalizar o «comunismo», se silencia o mais que se pode o marxismo e não
poucos intelectuais abandonaram a sua formação marxista. A ofensiva
agressiva do capitalismo é demasiado visível em múltiplas áreas do planeta
para nos permitirmos ignorar o debate sobre o que é o capitalismo hoje, qual o
grau e natureza da sua pulsão, digamos assim, imperialista. Há também
demasiadas utopias, algumas bem oportunistas, para que nos deixemos
embalar por elas ou calarmos a nossa crítica. Há derrotas, há lições a extrair,
há debilidades e contradições nos movimentos operários da Europa e não só,
nas organizações sindicais e nos partidos políticos, há desistências
desastrosas nas sociais-democracias. Mas há também resistências, às vezes
de tipos novos, inesperados, muito diferenciadas, que vão desde as de cariz
religioso a outras que parecem retomar os programas independentistas e
nacionalistas de décadas atrás. Há, em suma, a «globalização», nome que
conquistou a linguagem comum e que para a qual se encontram dúzias de
interpretações diferentes. “Globalização” é capitalismo, e sendo-o, é
imperialismo? Eis a questão.

José Augusto Nozes Pires
Outubro de 2010

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