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domingo, 8 de maio de 2016



O colapso da democracia no Brasil

"Sob a presidência de Michel Temer, o regime político brasileiro perde o direito de ser chamado de 'democrático', mesmo na compreensão menos exigente da palavra."

A derrota de 17 de abril, na Câmara dos Deputados, foi mais do que a sentença de morte para o governo Dilma Rousseff, o triunfo do banditismo político ou a desmoralização final da elite parlamentar brasileira. Representou o término da ilusão de que o sistema político em vigor no país pode receber o título de “democracia”.
“Democracia” é um conceito em disputa. À esquerda, costumamos exigir um regime que conceda maior autoridade efetiva às pessoas comuns, que realize de maneira mais plena o ideal normativo da igualdade política. Também entendemos que há um vínculo forte entre as condições materiais de vida e a possibilidade de ação política efetiva. E questionamos o insulamento das práticas democráticas a um espaço social restrito, observando como não há democracia efetiva se não são desafiadas as hierarquias presentes nos locais de trabalho ou na esfera doméstica. Em suma, tendemos a colocar aspas ou adjetivos na democracia (limitada, restrita, formal) que vigora na maior parte do mundo ocidental.
Para o pensamento mais conservador, tais limites são inevitáveis ou mesmo necessários. A democracia é sobretudo um procedimento de legitimação da autoridade política, por meio do voto popular. Em algumas narrativas, como a de Anthony Downs, a necessidade de obtenção da maioria eleitoral garante automaticamente que os mandatários serão fiéis cumpridores da vontade popular. Em outras, como a de Giovanni Sartori, o modelo permite que a elite política controle o governo com competência sem se independentizar do restante da sociedade. E em outras ainda, como a de Joseph Schumpeter, tudo não passa de um ritual desprovido de outro significado além da obtenção do consentimento dos governados e, portanto, da redução dos custos da dominação.
Mesmo nessa visão minimalista, a democracia exige isso: o consentimento dos governados por meio do voto. Podemos partir disso e querer mais ou julgar que esse procedimento esgota a possibilidade da própria democracia, mas ele está sempre presente. É isso que está sendo abandonado no Brasil. O impedimento da presidente da República, sem crime de responsabilidade claramente identificado, em afronta aberta às regras estabelecidas, marca a ruptura do entendimento de que o voto é o único meio legítimo de alcançar o poder. Foi violado um dos requisitos básicos que um autor liberal, Robert Dahl, apresentou para a democracia eleitoral, o princípio da intercambialidade, que, na prática, significa que nenhum grupo ou indivíduo tem poder de veto sobre a maioria gerada nas urnas.
Em suma: sob a presidência de Michel Temer, o regime político brasileiro perde o direito de ser chamado de “democrático”, mesmo na compreensão menos exigente da palavra.
O que a conjuntura brasileira ilumina é o fato de que, mesmo limitada e indigna de seus ideais normativos mais elevados, a democracia incomoda às classes dominantes. Afinal, se o consentimento da maioria se torna condição para o exercício do poder, pode ser que o interesse dessa maioria se faça ouvir também.
Os governos do PT foram muito ciosos dos limites que esse arranjo institucional impunha. Entenderam que era necessário muito cuidado ao mexer com os privilégios dos grupos mais poderosos; na verdade, eles deveriam ser acomodados, não afrontados. A elite política tradicional foi toda incorporada ao projeto de poder petista, que loteou generosamente o Estado brasileiro. O capital financeiro manteve lucros crescentes. O dinheiro público cevou as grandes corporações, seja pelo investimento maciço em obras, seja por meio dos bancos estatais dedicados ao fortalecimento dos nossos capitalistas. Como garantia de suas “intenções sérias”, o PT no poder trabalhou ativamente para desmobilizar os movimentos sociais que poderiam pressionar por transformações mais profundas.
Ainda assim, algum limite foi ultrapassado, talvez porque o que o PT buscou promover foi uma acomodação, isto é, suas lideranças e suas bases precisariam ser incorporadas, de alguma forma. Mas a tolerância das classes dominantes brasileiras em relação à democracia formal parece ir muito pouco além da concessão do sufrágio universal. O povo até pode votar, vá lá, mas que os tomadores de decisão levem em conta minimamente os interesses das classes populares já é motivo para escândalo. É possível identificar, então, um componente material e outro “simbólico” para a inconformidade com os governos petistas. A redução da miséria afeta uma vulnerabilidade social que é funcional para largos setores do capital. O quanto a pujança do “agronegócio”, por exemplo, não depende da oferta de mão de obra pauperizada no campo brasileiro? Uma redução continuada da miséria colocaria em risco tal situação. E já atingia as classes médias – que se tornaram a massa de manobra da direita –, privadas do trabalho doméstico a preço vil de que sempre desfrutaram no país.
O outro componente, que chamei de “simbólico”, não é, na verdade, desprovido de materialidade. Os anos petistas foram acompanhados por uma sensação de que hierarquias seculares estavam sob ameaça. As mulheres, os gays, lésbicas e travestis, os negros, as periferias: grupos em posição subalterna passaram a reivindicar cada vez mais o direito de falar com sua própria voz, a questionar sua exclusão de determinados espaços, a reagir à violência estrutural que os atinge. Políticas de governo apoiaram tais movimentos, desde as cotas nas universidades até o financiamento para a produção audiovisual dos subalternos. Os privilegiados perderam a sensação de que sua superioridade social era natural, logo inconteste; e perderam também a exclusividade na ocupação de posições de prestígio.
Para eles, o risco da democracia é esse: ela abre uma brecha para que se ouçam vozes silenciadas, para que o jogo das elites seja bagunçado. E, como o direito de voto e a norma formal da igualdade política obtêm grande força normativa, reverter a democracia é tarefa custosa. O golpe político, no Brasil, foi desferido a jato. Mas sua preparação levou anos, com o trabalho de deslegitimação dos governos eleitos, levado a cabo pela mídia, pelos institutos privados destinados à disputa ideológica e pelos movimentos “Astroturf” (como MBL ou Revoltados On Line) que, como está cada vez mais comprovado, foram financiados e treinados por fundações estadunidenses.* Ainda assim, o desgaste é grande e são necessárias concessões, como mostra a recente imolação do deputado Eduardo Cunha diante da opinião pública.
Para nós, o risco é outro. A competição eleitoral, à qual se resume muitas vezes o componente democrático das sociedades liberais, funciona como uma espécie de buraco negro da disputa política, engolindo tudo o que existe à sua volta.
Nós sabemos que as condições da disputa eleitoral são adversas, dado o poder do dinheiro e da mídia e a inércia das hierarquias sociais. Sabemos, desde ao menos da obra de Pierre Bourdieu, que o campo político filtra as formas de discurso e ação, privilegiando as que se afastam daquelas próprias dos grupos dominados. Sabemos também, a partir da obra de Nicos Poulantzas, que o aparelho de Estado é programado para resistir a mudanças, deslocando o poder de veto de um de seus componentes para outro – por exemplo, do executivo para o legislativo, de uma casa do Congresso para outra, depois para o judiciário, enfim para as forças armadas – conforme necessário. Ainda assim, a cada quatro anos todas as energias e esperanças se concentram nas eleições.
A disputa eleitoral funciona, muitas vezes, como solução para reconstruir a dominação ameaçada por práticas contestatórias. A crise de legitimidade da Argentina em 2001, aquela do bordão que se vayan todos, deságua nas eleições de 2003. Muitos grupos envolvidos em ações políticas populares inovadoras, como asambleas barriales ou cortes de ruta, passam a privilegiar a disputa eleitoral. Elege-se um presidente reformista, Néstor Kirchner; uma dúzia de anos depois, com a vitória de um projeto reacionário, não há mais quase nada da capacidade de resistência nas ruas que se via antes. Ou o caso da Espanha, em que a opção por transformar um movimento cidadão num partido eleitoral já mostra seus efeitos. A eleição promove a ilusão de que o conflito político se resolve num único dia e que, pelo mandato popular, se alcança algo, o “poder”, que, uma vez conquistado, permite que todos os problemas sejam solucionados.
Nunca dá certo, mas continuamos tentando. Dessa vez deu mal, mas quem sabe da próxima… De fato, no século XVIII o velho Montesquieu já dizia que as eleições devem ser frequentes, para que o povo nunca perca a esperança de, um dia, escolher governantes que não sejam corruptos.
O sufrágio universal deslegitima simbolicamente formas mais ofensivas e eficazes de pressão das classes populares, como já anotava Albert Hirschman. E a democracia, ao se realizar em determinadas instituições, cristaliza uma forma de dominação. Com frequência, o pressuposto tácito da discussão é a ideia de que democracia e dominação são antípodas. Onde há democracia não pode haver dominação; logo, se estamos discutindo no contexto de um ordenamento político democrático, a categoria “dominação” se torna inútil. Mas qualquer institucionalidade institui seu próprio regime de dominação. Afinal, “relações democráticas ainda são relações de poder e como tal são continuamente recriadas”, como disse Barbara Cruikshank. Isto porque não falamos de uma democracia em abstrato, mas de regimes concretos, que organizam formas de distribuição de poder, de atribuição de direitos e de regulação da intervenção política. São “tecnologias da cidadania”, que constituem e regulam comportamentos e que indicam que, como qualquer outra forma de governo, “a democracia tanto permite quanto constrange as possibilidades da ação política” – para ficar novamente com Cruikshank.
Esta institucionalidade concreta se manifesta numa sociedade também concreta, com suas assimetrias no controle de recursos. A ordem democrática não anula a efetividade da dominação que se estabelece em espaços considerados pré-políticos, como o mundo do trabalho e a esfera doméstica; pelo contrário, há uma forte tendência a que essas formas de dominação estejam espelhadas no âmbito da política. E se espelham também nos pressupostos que constroem a institucionalidade vigente.
Temer, na presidência, empossado definitivamente e com o beneplácito do Supremo Tribunal Federal, avançará o mais rápido que puder na agenda de retrocesso que se deseja impor ao país – entrega das estatais, avanço do fundamentalismo, retirada de direitos trabalhistas, criminalização do pensamento crítico, recuo da legislação ambiental, arbitrariedade escancarada da força policial, cortes nas políticas sociais, tributação regressiva. Quando chegar 2018, provavelmente teremos eleições, como previsto. Talvez até ganhe um candidato mais à esquerda, dada a incompetência crônica da direita brasileira para produzir uma opção viável. Parecerá que a democracia está restaurada. Mas o retrocesso desses anos não será apagado. E a tutela dos poderosos sobre a vontade expressa nas urnas terá sido reafirmada com enorme clareza.
Essa é a armadilha da democracia limitada que temos. Parece que a luta política deve ser sempre canalizada para as eleições. Mas se há algo que os últimos acontecimentos deixam claro é que não há transformação possível sem investimento na luta extra-institucional. O Estado capitalista não é neutro, nem sua lei, nem seus aparelhos. A pressão pela mudança pode até ingressar nele, introduzindo contradições, mas só tem condições de triunfar se estiver fortemente ancorada do lado de fora. 

* Nos Estados Unidos, movimentos de cidadãos organizados localmente são chamados de “grassroots”, raízes de relva. Com frequência crescente, tais movimentos são, na verdade, criados por interesses privados, que desejam aparecer disfarçados no debate público – a indústria do tabaco produziu as “associações dos direitos dos fumantes”, por exemplo. Os falsos “grassroots” foram apelidados de “Astroturf”, em referência à marca pioneira de grama sintética.
***
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas

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