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quarta-feira, 27 de julho de 2016

Um extraordinário romance, para as férias...



Wook.pt - As Benevolentes

As Benevolentes

de Jonathan Littell; Tradução: Miguel Serras Pereira

Alertas vermelhos: Sinais de implosão na economia global – O capitalismo global à deriva

Terça-feira, 12 Julho 2016

 a-foto-de-jorge-beinstein

Jorge Beinstein
Em fins de Maio, durante a reunião do G7, Shinzo Abe, primeiro-ministro do Japão, anunciou a proximidade de uma grande crise global [1] . O comentário mais divulgado pelos meios de comunicação foi que era um alarmismo exagerado, reflexo da situação difícil da economia japonesa. De qualquer modo, não faltam os que admitem a existência de perigos mas em geral atribuem-nos aos desequilíbrios financeiros da China, à recessão no Brasil ou às turbulências europeias. A situação nos Estados Unidos costuma merecer comentários prudentes, distantes de qualquer alarmismo. Apesar de o centro motor da última grande crise global (ano 2008) ter sido a explosão da bolha imobiliária estado-unidense, agora os peritos não percebem ali bolhas em plena expansão a ponto de estourar e sim tudo ao contrário: actividades financeiras, industriais e comerciais estagnadas, crescimentos anémicos e outros sinais aparentemente tranquilizantes que afastam a imagem de algum tipo de euforia descontrolada.
Mas é impossível ignorar a realidade. Os produtos financeiros derivados constituem a componente maioritária decisiva da trama especulativa global. Só cinco bancos dos Estados Unidos mais o Deutsche Bank acumularam esses frágeis activos no montante de uns 320 milhões de milhões de dólares [2] , equivalente a aproximadamente 4,2 vezes o Produto Mundial Bruto (ano 2015). Isso representa 65% da totalidade dos produtos financeiros derivados do planeta registados em Dezembro de 2015 pelo Banco da Basileia. Essa hiper-concentração financeira deveria ser um sinal de alarme e o panorama agrava-se quando constatamos que a referida massa financeira está a desinchar de maneira irresistível: em Dezembro de 2013 os derivados globais chegavam a uns US$710 milhões de milhões, apenas dois anos depois, em Dezembro de 2015, o Banco de Basileia registava US$490 milhões de milhões… em apenas 24 meses evaporaram-se US$220 milhões de milhões, cifra equivalente a cerca de 2,8 vezes do Produto Global Bruto de 2015.
Não foi um acidente e sim o resultado da interacção perversa, a nível mundial, entre a especulação financeira e a chamada economia real. Durante um longo período esta última pode suster uma desaceleração gradual evitando a derrocada, graças à financiarização do sistema que permitiu às grandes empresas, aos estados e aos consumidores do países ricos endividarem-se e assim consumir e investir. O declínio da dinâmica económica dos capitalismos centrais pôde ser desacelerado (ainda que não revertido) não só com negócios financeiros. A entrada de mais de 200 milhões de operários industriais chineses mal pagos no mercado mundial permitiu abastecer com manufacturas baratas os países ricos e a derrocada do bloco soviético brindou ao Ocidente um novo espaço colonial: a União Europeia ampliou-se para Leste, capitais da Europa e dos Estados Unidos estenderam seus negócios.
Foi assim que os Estados Unidos e seus sócios-vassalos da NATO continuaram em frente com os gastos militares e as guerras. Enormes capitais acumulados bloqueados por uma procura que crescia cada vez menos puderam rentabilizar-se comprando papéis de dívida ou jogando na bolsa. Grandes bancos e mega especuladores incharam seus activos com complexas operações financeiras legais e ilegais. Os neoliberais assinalavam que se tratava de um “círculo virtuoso” em que as economias real e financeira cresciam apoiando-se mutuamente. Mas a festa foi-se esgotando enquanto se reduziam as capacidades de pagamento dos devedores esmagados pelo peso das suas obrigações.
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A crise de 2008 foi o ponto de inflexão. Em Dezembro de 1998 os derivados globais chegavam a uns US$80 milhões de milhões, equivalente a 2,5 vezes o Produto Global Bruto desse ano. Em Dezembro de 2003 eles alcançavam os US$200 milhões de milhões (5,3 vezes o PGB) e em meados de 2008, em plena euforia financeira, saltaram para os US$680 milhões de milhões (11 vezes o PGB). A recessão de 2009 os fez cair: em meados desse ano haviam baixado para US$590 milhões de milhões (9,5 vezes do PGB). Acabara a euforia especulativa e a partir daí as cifras nominais estancaram ou subiram muito pouco, reduzindo sua importância em relação ao PGB. Em Dezembro de 2013 rondavam os US$719 milhões de milhões (9,3 vezes o PGB) e a seguir verificou-se o grande desinchar:   US$610 milhões de milhões em Dezembro de 2014 (7,9 vezes o PGB) que em Dezembro de 2015 caiu para US$490 milhões de milhões (6,2 vezes o PGB).
O aparente “círculo virtuoso” havia mostrado o seu verdadeiro rosto:   na realidade tratava-se de um círculo vicioso em que o parasitismo financeiro expandira-se graças às dificuldades da economia real à qual drogava enquanto a carregava de dívidas cuja acumulação acabou por arrefecer o seu dinamismo – o que por sua vez bloqueou o crescimento da esfera financeira.
A primeira etapa de interacção expansiva anunciava a segunda de interacção negativa, do arrefecimento mútuo actualmente em curso que por sua vez anuncia a terceira, de arrefecimento financeiro a marchar em direcção ao colapso e com crescimentos anémicos, estancamentos e recessões suaves da economia real aproximando-se da depressão prolongada – tudo isso como parte do provável desinchar entrópico do conjunto do sistema.
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A financiarização integral da economia faz com que a sua contracção comprima a economia real, reduza o seu espaço de desenvolvimento. O peso das dívidas públicas e privadas, a crescente volatilidade dos mercados submetidos ao canibalismo especulativo, grandes bancos na corda bamba e outros factores negativos afogam a estrutura produtiva.
Por outro lado o sistema global não se reduz a um conjunto de processos económicos. Encontramo-nos perante uma realidade complexa que inclui uma ampla variedade de componentes inter-relacionados (geopolíticos, culturais, militares, institucionais, etc). Isso significa que a crise pode desencadear-se a partir de diferentes geografias e focos de actividade social. Exemplo: um facto político como a decisão do eleitorado da Grã-Bretanha de sair da União Europeia poderia ter sido o detonador, tal como antecipava George Soros que esperava uma “Sexta-feira negra” seguida por uma reacção em cadeia de turbulências fora de controle se na quinta-feira 23 de Junho triunfasse o Brexit [3]. O desastre não se verificou, mas podia ter ocorrido… ainda que a sacudidela fosse bastante forte [4] .
Poderia ser uma onda de protestos sociais na Europa, mais extensa e radicalizada do que a verificada recentemente em França, ou a derrocada do Deutsche Bank que acumula papéis voláteis num montante da ordem dos US$70 milhões de milhões, quase equivalente ao Produto Mundial Bruto [5] . Também a economia italiana apresenta a sua quota de riscos, afectada pela degradação acelerada dos bancos encurralados pelos não pagamentos dos seus devedores, que em Março de 2016 somavam uns 200 mil milhões de euros (equivalente a 12% do PIB italiano) [6] . E naturalmente o Japão surge como um importante candidato à derrocada com uma dívida pública de US$9 milhões de milhões que representa 220% do seu PIB, não tendo conseguido sair da deflação e com as suas exportações a perderem competitividade [7] .
Os Estados Unidos, centro da economia global (sobretudo da sua hipertrofia financeira), são naturalmente o motor potencial de futuras tormentas globais. Ali nos últimos meses acumularam-se sinais recessivos:   desde a tendência persistente para a baixa na produção industrial a partir de fins de 2014 [8] até a ascensão contínua de dívidas industriais e comerciais não pagas (que já alcançaram o nível dos fins de 2008 – aumentaram quase 140% entre o último trimestre de 2014 e o primeiro trimestre de 2016) [9] , passando pela queda do conjunto de vendas (grossistas, retalhistas e industriais) ao mercado interno desde o último quadrimestre de 2014 [10] e das exportações desde Novembro do mesmo ano [11] .
A isto devemos acrescentar uma dívida pública nacional que continua a aumentar. Já superou a barreira dos US$19 milhões de milhões (quase 106% do PIB) que, somada às dívidas privadas, chega aos US$64 milhões de milhões (3,5 vezes o PIB de 2015) [12] – e também com sinais claros de deterioração social como o facto de que umas 45 milhões de pessoas actualmente recebem ajudas alimentares por parte do Estado [13] . A agência encarregada de monitorar os programa alimentares governamentais, FRAC na sua sigla em inglês, assinalava no seu últimos relatório que “mais de 48,1 milhões de estado-unidenses vivem em lares que lutam contra a fome” [14] .
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Para um número crescente de peritos, sobretudo os especialistas em temas financeiros, a pergunta decisiva não é se a crise se vai verificar ou não e sim quando vai ocorrer. Para alguns poderia assumir a forma de uma explosão financeira no estilo da que se verificou em 2008 ou em eventos anteriores desse tipo. Para outro, o que está para chegar é uma grande implosão do sistema.
Cabem duas hipóteses extremas. A primeira é que a acumulação de deteriorações gere cedo ou tarde um salto qualitativo devastador. A história do capitalismo está marcada por uma sucessão de crises de diferentes magnitudes. Olhando o passado seria razoável supor um desenlace sob a forma de hiper-crise.
A segunda hipótese é que a perda de dinamismo do sistema não seja um fenómeno passageiro e sim uma tendência pesada que obriga a superar a ideia de grande turbulência repentina, de tsunami arrasador, e introduzir o conceito de “decadência”, de envelhecimento prolongado, de degradação civilizacional – o que não exclui as crises e sim incorpora-as a um percurso descendente em que o sistema se vai apagando, desarticulando, caotizando, perdendo vitalidade, racionalidade.
Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, relançou recentemente com grande repercussão mediática a teoria do “estancamento secular” segundo a qual as grandes potências tradicionais estão a entrar numa era de estancamento produtivo prolongado arrastando o conjunto do sistema global [15]. Recuperava desse modo as ideias de Alvin Hansen expostas em plena crise dos anos 1930. Por sua vez, académicos importantes como Robert Gordon [16] , Tyler Cowen [17] ou Jan Vijg [18] apoiavam esse ponto de vista a partir da visão da ineficácia crescente da mudança tecnológica em termos de crescimento económico. Este último autor assinalava o paralelismo entre a decadência estado-unidense e as do Império Romano e da China na era da dinastia Qing (entre meados do século XVII e princípios do século XX). Nos anos 1970, quando se iniciava a longa crise global que chega até os nossos dias, Orio Giarini e Henri Loubergé, então na Universidade de Genebra, haviam elaborado a hipótese dos “rendimentos decrescentes da tecnologia” a partir do processamento de uma grande massa de informação empírica [19] . Pelo seu lado, o historiador Fernand Braudel assinalava que a grande crise dessa década era o começo de uma fase cíclica descendente de longa duração [20] . A partir de uma visão marxista, Roger Dangeville, também nessa época, afirmava que o capitalismo enquanto sistema global havia entrado na sua etapa senil [21] . Eu retomei essa hipótese desde fins dos anos 1990 [22] , que mais adiante foi assumida por Samir Amin [23] e outros autores.
Agora os sinais de alarme multiplicam-se, desde desajustamentos financeiros graves até perturbações geopolíticas carregadas de guerra e desestabilizações, desde crises institucionais até declinações económicas. Nos anos 1990 os comentaristas ocidentais maravilhavam-se diante do espectáculo da implosão da URSS. É provável que dentro de não muito tempo comecem a horrorizar-se diante de desastres muito maiores centrados no Ocidente.
[1] Philippe Mesmer, “L’alarmisme de Shinzo Abe surprend le G7″, Le Monde, 26/05/2016.
[2] Tyler Durden, “Is Deutsche Bank The Next Lehman?”, Zero Hedge, www.zerohedge.com/news/2015-06-12/deutsche-bank-next-lehman
Michael Snyder, “Financial Armageddon Approaches”, INFOWARS, www.infowars.com/…
[3] Antoine Gara, “George Soros Says Brace For ‘Black Friday’ If Brexit Vote Succeeds”, Forbes, Jun 21, 2016, www.forbes.com/…
[4] Wolf Richter, “European Banks Get Crushed, Worst 2-Day Plunge Ever, Italian Banks to Get Taxpayer Bailout, Contagion Hits US Banks”, Wolf Street, June 27, 2016, wolfstreet.com/…
[5] Michael T. Snyder, “Will Deutsche Bank Survive This Wave Of Trouble Or Will It Be The Next Lehman Brothers?”, Smarter Analyst, May 23, 2016, www.smarteranalyst.com/…
[6] Jeffrey Moore, “Will Italian banks spark another financial crisis?”, Global Risk Insights, March 7, 2016.
[7] Takashi Naakamichi, “Japan emerges as key victim in fallout from Brexit”, Market Watch,June 27, 2016.
[8] U.S. Board of Governors of the Federal Reserve System, “Industrial Production and Capacity Utilization”.
[9] Worlf Richter, “Business Loan Delinquencies Spike to Lehman Moment Level”, May 19, 2016,wolfstreet.com/2016/05/19/delinquencies-of-commercial-industrial-loans-spike/
[10] FRED – Federal Reserve Bank of St. Louis, Total Business Sales.
[11] U.S. Census Bureau, “U.S. International Trade in Goods and Services”.
[12] FRED – Federal Reserve Bank of St. Louis, All Sectors; Debt Securities and Loans.
[13] United States Department of Agriculture, Food and Nutrition Service.
[14] FRAC, Food Research & Action Center, “U.S. Makes Progress Addressing Food Hardship, but One in Six American Households Still Struggle to Put Food on the Table”, June 30, 2016, frac.org/…
[15] Laurence. H. Summers, “Reflections on the New Secular Stagnation Hypothesis”, Secular Stagnation: Facts, Causes, and Cures, CEPR Press, 2014.
[16] Robert J. Gordon, “Is US Economic Growth over? Faltering Innovation confronts the six Headwinds”, NBER Working paper series, 18315, August.2012.”The turtle’s progress: Secular stagnation meets the headwinds”, Secular Stagnation:Facts, Causes, and Cures, CEPR Press, 2014.
[17] Tyler Cowen, “The Great Stagnation”, Dutton, 2011.
[18] Jan Vijg,”The American Technological Challenge: Stagnation and Decline in the 21st Century”, Algora Publishing, 2011.
[19] Orio Giarini y Henri Loubergé,”La Civilisation technicienne à la dérive. Les rendements décroissants de la technologie”, Dunod, Paris, 1979
[20] Fernand Braudel, “Civilisation matérielle, économie et capitalisme, XV XVIII Siècle”, tome I, Armand Colin, Paris, 1979.
[21] Roger Dangeville, “Marx-Engels. La crise”, Editions 10/18, Paris 1978
[22] Jorge Beinstein, “La larga crisis de la economía global”, Corregidor, Buenos Aires, 1999 y “Capitalismo senil. A grande crise da economia global”, Record, Rio de Janeiro, 2001.
[23] Samir Amin, “Au-delà du capitalisme sénile”, PUF, Paris, 2002.

sábado, 23 de julho de 2016

“Ler Marx hoje faz todo o sentido”              Por Alexandra Prado Coelho

Pensar fora da caixa. Não desistir de um pensamento crítico exigente e rigoroso. E da busca de alternativas de escala humana a este capitalismo que sufoca as nossas vidas e mata as nossas esperanças. Eis David Harvey. Vale a pena ler
https://imagens8.publico.pt/imagens.aspx/1062038?tp=UH&db=IMAGENS&w=780Na crise do mercado imobiliário de 2007-2008 nos EUA, a melhor solução teria sido dar o dinheiro às pessoas para elas pagarem as suas dívidas aos bancos e ficarem com as casas, em vez de o dar aos bancos, que “só se salvaram a eles próprios”, defende o geógrafo marxista David Harvey.
Quando é necessário apresentar David Harvey em duas palavras, geralmente usa-se a expressão “geógrafo marxista”. Que é, obviamente, redutora para descrever este britânico de 81 anos há várias décadas a viver nos Estados Unidos, onde é professor de Antropologia e Geografia na Universidade da Cidade de Nova Iorque (CUNY).
Autor de mais de duas dezenas de livros, é profundamente crítico do sistema capitalista, que analisa à luz das teorias marxistas, e é um defensor da ideia do “direito à cidade” – que passa pelas reivindicações actuais relativas à qualidade de vida nas cidades. No seu site (davidharvey.org) disponibiliza um curso completo, em vídeo, para ajudar a uma leitura contemporânea do Capital, de Karl Marx.
Harvey foi o orador convidado para a conferência de abertura do IX Congresso Português de Sociologia, que decorreu entre 6 e 8 de Julho na Universidade do Algarve. Começou a sua intervenção de duas horas falando da quantidade de cimento que a China consumiu nos últimos três anos – “mais do que os EUA no último século”.
De acordo com Harvey, foi a China que “salvou o capitalismo da grande depressão que podia ter acontecido” na sequência da crise surgida em 2007-2008 nos EUA, quando a bolha do mercado imobiliário rebentou. Uma das consequências dessa crise foi um enorme aumento do desemprego na China, que era um dos grandes fornecedores de matérias-primas para a construção nos EUA.
Para absorver essa massa de desempregados e evitar agitação social, a própria China lançou-se num boom de construção (terá, segundo números citados por Harvey, absorvido 27 milhões de trabalhadores), criando novas cidades, algumas ainda sem habitantes.
A corrida à construção, argumenta o geógrafo, é uma saída clássica das crises: foi o que fez a América quando teve de absorver os soldados que regressavam da II Guerra ou o que Louis Bonaparte fez na França do Segundo Império, a partir de 1848. Em todos estes casos “foi a urbanização que salvou a economia capitalista do colapso económico”. Mas, lembra Harvey, isto é feito à custa de um enorme aumento da dívida pública.
O grande problema, sublinha, é que “há uma insanidade nas novas formas de urbanização”, não só pela escala como pelo facto de as cidades ficarem cheias de casas vazias que são compradas sobretudo para fins de especulação e não para habitação. “Hoje, grande parte do capital está a concentrar-se no imobiliário e nas rendas." E, avisa Harvey, a agitação social começa a surgir cada vez mais ligada às questões da vida quotidiana nas cidades – como aconteceu no Brasil com os protestos que rebentaram em 2014, em parte por causa dos transportes públicos.
No final da conferência, o geógrafo conversou com o PÚBLICO sobre o "Brexit", o futuro do trabalho, as crises e as eventuais alternativas ao capitalismo.
Há algumas boas razões para as pessoas se interrogarem sobre para que querem esta UE quando ela faz coisas como fez à Grécia e está neste momento a ameaçar fazer a Portugal
Vê o "Brexit" como a democracia a funcionar, uma distorção da democracia em que as pessoas foram de alguma forma manipuladas ou uma forma de protesto contra as desigualdades?
Em primeiro lugar, há uma questão relativamente ao que constitui a democracia. Temos democracias parlamentares, mas a maioria das decisões é tomada noutros sítios, há um défice democrático nos EUA e na Europa. Não compreendo porque é que o [o primeiro-ministro britânico agora demissionário, David] Cameron convocou o referendo, foi uma loucura. Julgo que nunca acreditou que iria perder. O resultado deve ser interpretado como um grande voto de protesto. É o equivalente a dizer "não", e as pessoas teriam dito "não" a praticamente tudo.  
Há um enorme descontentamento que foi canalizado para esse voto. Algum dele não tem nada que ver com a UE, mas é contra a forma como as elites tomaram decisões, disseram às populações que estas decisões beneficiariam todos, e a maioria não viu nenhum benefício no seu nível de vida ou rendimentos. Na verdade, muita gente perdeu nos últimos sete ou oito anos.
Há algumas boas razões para as pessoas se interrogarem sobre para que querem esta UE quando ela faz coisas como fez à Grécia e está neste momento a ameaçar fazer a Portugal. Era suposto ser uma união de ajuda mútua e parece ser uma união cada vez mais com os grandes a porem os pequenos em sentido. Por isso, há algumas boas razões para o voto para lá das que são habitualmente referidas como a xenofobia. Há um lado de xenofobia, mas seria errado interpretar o voto como apenas o resultado disso.
Defende que o descontentamento das populações tem que ver com as condições de vida nas cidades mais do que com questões de desemprego. Porquê?
Sempre defendi que o descontentamento que surge no espaço em que vivemos é tão significativo como o que tem que ver com o desemprego. A esquerda tende a enfatizar a questão do emprego e a desvalorizar os protestos quanto à qualidade de vida. Mas muitos dos grandes protestos globais que surgiram nos últimos 15 anos têm que ver com a qualidade de vida nas cidades. A política da vida quotidiana é uma área a que devemos estar muito atentos.
Há muita exploração que acontece aí. Pergunte às pessoas se estão satisfeitas com a forma como os cartões de crédito funcionam e com as empresas de comunicações a cobrar-lhe taxas extras... há uma grande quantidade de riqueza que nos é extraída na vida quotidiana.
Portanto, o desemprego não é a preocupação dominante?
É sem dúvida uma preocupação, mas se perguntar às pessoas que estão empregadas se sentem que estão a fazer um trabalho que as preenche, há muita gente que dirá que é um trabalho sem grande sentido. Não só muita gente não tem um rendimento proveniente do trabalho mas muita da que tem vive uma existência sem grande sentido no que diz respeito ao trabalho que faz.
Houve sondagens recentes nos EUA, em que se perguntava às pessoas se estavam contentes com o seu trabalho e 70% diziam que ou o odiavam ou que lhes era indiferente. Há um problema mais vasto que não é apenas o desemprego, e os políticos colocam muita ênfase na ideia de emprego, emprego, https://imagens8.publico.pt/imagens.aspx/1062048?tp=UH&db=IMAGENS&w=780emprego, em vez de se perguntarem, que tipo de emprego? São precisos empregos em que as pessoas sintam que estão a contribuir para a sociedade e nos quais tenham orgulho.
Greve geral, Oakland (Califórnia, 2011). Em sondagens recentes nos EUA, 70% dos inquiridos diziam não estar satisfeitos com o emprego JUSTIN SULLIVAN/AFP
Fala-se hoje muito no empreendedorismo, nas pessoas criarem os seus próprios empregos, há startups por todo o lado. Como vê isso?
Há histórias maravilhosas sobre pessoas que se tornaram empresários brilhantes, mas há muitas que tentaram isso e não resultou. Mesmo quando resulta, envolve imensa auto-exploração. Há cálculos sobre a quantidade de trabalho que é feita colectivamente na Internet e a remuneração por ele é de menos de dois dólares por hora. Há muita auto-exploração a acontecer nessa área e só nos apercebemos das histórias de sucesso que aparecem nos jornais. Quantas pessoas falham? Ou quantas fazem trabalho do qual outras se apropriam? Organizações como a Google ou a Amazon são óptimas a apropriar-se do trabalho dos outros.
Que valor tem hoje o trabalho, comparado com outros períodos históricos?
Costumava ensinar Marx há 40 anos, quando havia um mundo social-democrata à nossa volta, e não fazia muito sentido. Mas experimente ler agora o volume 1 do Capital e verá que é exactamente o que está a acontecer. Ler Marx hoje faz todo o sentido. De certa forma, estamos a voltar às condições de trabalho do século XIX, que é o que o projecto neoliberal pretendia: reduzir o poder do trabalho e pô-lo numa posição em que não tem capacidade para resistir a processos maciços de exploração.
Depois há o desenvolvimento de tecnologias que tornam o trabalho cada vez mais redundante. Em Baltimore, em 1969, havia 37 mil pessoas a trabalhar na indústria do aço. Em 1990, a indústria produzia a mesma quantidade de aço com 5000 pessoas. Isto tem sido uma característica dos últimos 30, 40 anos. Muito trabalho tornou-se redundante, primeiro na indústria de manufactura e agora também no sector dos serviços. Cada vez mais, como consumidor, eu é que faço o trabalho. Sou explorado no consumo. Acabamos com uma massa de população dispensável que não tem meios de emprego e que se vai safando com pequenos trabalhos aqui e ali.
A teoria da destruição criativa [que parte, aliás, do pensamento de Marx] diz que a cada grande avanço tecnológico se destroem muitos empregos e tipos de trabalho mas que surgem outros novos. Não vai acontecer o mesmo agora?
Mas rapidamente um trabalho passa de ser uma tarefa que exige alguma qualificação para ser uma coisa que qualquer um pode fazer. Há 20 anos, os programadores informáticos eram muito qualificados, agora toda a gente sabe criar um site. Surge a necessidade de trabalho qualificado que quase instantaneamente é desqualificado.O capital não gosta que o trabalho tenha qualquer poder de monopólio no mercado, por isso garante que a massa das pessoas desenvolve esses conhecimentos rapidamente. Os programadores informáticos já não recebem hoje salários ao nível do que recebiam há vinte anos. E isto acontece em todas as áreas.
https://imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1062049?tp=UH&db=IMAGENS&w=780Activistas do movimento Occupy Wall Street em protesto em Nova Iorque EMMANUEL DUNAND/afp
E está-se a dar mais um passo importante com os desenvolvimentos na inteligência artificial.
A inteligência artificial vai conduzir a uma transformação radical do sector dos serviços. Da mesma forma que assistimos à desindustrialização pelas mudanças tecnológicas nos anos 70 e 80, vamos ver o equivalente a isso no sector dos serviços nos próximos anos.
Está a falar de elevados níveis de desemprego.
Sim. E isso levanta a questão, que está a ser colocada por algumas pessoas em Silicon Valley: se isso acontecer, como é que se vai alimentar o mercado do consumo? Daí que nesse sector, assim como na esquerda, se tenha começado a discutir a questão de um rendimento básico. Porque se não há essa estratégia para um rendimento...
... não podemos ser consumidores
Exacto. Tem de se dar às pessoas meios para que possam continuar a consumir e para que o sistema se mantenha.
Acredita num cenário em que não precisamos de trabalhar, precisamos apenas de consumir?
É possível, já temos algumas experiências nesse sentido, como a Bolsa Família no Brasil, que dá às pessoas um rendimento mínimo. É uma redistribuição de rendimento que permite que o mercado continue a funcionar e que é condicionada a coisas como pôr os filhos na escola.
Mandar os filhos para a escola para que possam ter um trabalho quando poderá não haver trabalho...
Exactamente. Mas temos de pensar que a educação vai ter de se centrar mais em as pessoas adquirirem conhecimentos para desenvolver actividades diferentes que as preencham. Há um crescimento considerável no mundo da cultura, com pessoas a fazer actividades culturais com as quais não ganham muito dinheiro mas que as divertem.
E há trabalho voluntário a fazer, porque essas necessidades existem, mesmo sendo tarefas não remuneradas.
Na indústria dos cuidados, por exemplo. As famílias deixaram de tomar conta dos mais velhos, a menos que passe a haver um rendimento para quem faça isso. Há mecanismos desse género, alguns que funcionam bem, mas isso não resolve o problema macro, que é as dinâmicas da mudança tecnológica besearem-se no facto de  tornar cada vez mais redundante a força de trabalho, numa altura em que há cada vez mais força de trabalho.
Antes dos anos 80, a China não fazia parte dessa força de trabalho, tal como todo o antigo bloco soviético. Além disso, há o crescimento da população – há muito mais gente disponível para trabalhar em troca de um ordenado e ao mesmo tempo as dinâmicas da transformação capitalista vão no sentido de poupar no trabalho.
https://imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1062050?tp=UH&db=IMAGENS&w=780De acordo com Harvey, foi a China que “salvou o capitalismo da grande depressão que podia ter acontecido” na sequência da crise de 2007/2008, quando a bolha do mercado imobiliário rebentou afp
Como poderemos pagar por esse rendimento mínimo para toda a população?
Veja o que se passou com a crise financeira de 2007/2008. As autoridades disseram basicamente isto: é preciso salvar o sistema bancário e a finança. Os bancos centrais avançaram, aumentaram as disponibilidades de dinheiro – a flexibilização quantitativa –, e esse dinheiro foi para o mercado de acções, puxou-o para cima, deu bons rendimentos às classes mais altas. Ora, podia-se ter feito o mesmo beneficiando as classes mais baixas. Apoiava-se o direito das pessoas a ter uma casa. E todas essas propriedades que foram parar às mãos dos bancos podiam ficar com as pessoas que precisavam delas. Com a crise, as classes mais altas nos EUA aumentaram o seu rendimento em 12%. Esses 12% deveriam ter ido para as classes mais baixas.
Havia uma escolha clara, podia-se salvar os bancos e fazer com que as pessoas perdessem as suas casas ou ir ter com elas e dar-lhes dinheiro – e assim evitar-se-ia a crise bancária, porque as pessoas pagariam os empréstimos. Mas se na altura disséssemos isso, teriam dito "isso é ridículo" e não o veriam como uma opção.
Essa é uma decisão política. Não deveriam os políticos estar preocupados com a grande massa dos eleitores?
Depende do país. Nos EUA temos corrupção generalizada do processo eleitoral. Não há controlo nenhum sobre a capacidade dos ricos comprarem as eleições. No início da campanha republicana deste ano, 136 famílias foram as grandes contribuintes para os candidatos. Veio uma fotografia no The New York Times em que se viam as casas de seis dessas famílias numa mesma área. É preciso retirar o dinheiro do processo eleitoral, garantir acesso gratuito à televisão. A imprensa é outro problema: temos uma comunicação social capitalista, por isso muitas decisões políticas são-nos apresentadas de forma distorcida.
E o poder que temos como consumidores, não é enorme?
Há alguns grupos que estão a usá-lo. Há alguns exemplos na Internet, vimos isso na campanha de Bernie Sanders nos EUA, por exemplo. O grande problema é como transformar isso num movimento social que se mantenha unido.
Quando se trata de salvar bancos, o argumento é que são essenciais para o funcionamento da economia.
Não estou a dizer para deixarem cair os bancos, mas se tivéssemos lidado com a crise do mercado imobiliário de outra maneira, os bancos também não iriam à falência. Salvaram-se a eles próprios, não salvaram mais ninguém. Estou só a dizer que há outras opções.
Houve alterações significativas no que diz respeito ao controlo do sistema financeiro depois do deflagrar da crise?
Isso é uma coisa extraordinária no capitalismo. Estamos sempre a pensar que um capitalismo justo e razoável é possível, mas temos de ver a quantidade de ilegalidades e de roubos que acontecem. Deviam ser controlados, e é aí que o Estado entra, mas é muito difícil controlar muitas destas coisas como vimos com os Panama Papers. O que é extraordinário é que estamos a falar de pessoas imensamente ricas que poderiam pagar impostos, mas que se dão a um imenso trabalho para não pagar nada. Põem o dinheiro no Panamá ou nas ilhas Caimão para não pagar impostos. A ideia de que o capitalismo pode ser desenvolvido de forma honesta... a certa altura interrogamo-nos se isso é mesmo possível.
https://imagens7.publico.pt/imagens.aspx/1062107?tp=UH&db=IMAGENS&w=780"Brexit": "Julgo que Cameron nunca acreditou que iria perder. O resultado deve ser interpretado como um grande voto de protesto", diz Harvey Neil Hall / Reuters
Isso acontece em grande parte porque a globalização tornou possível levar as coisas para um outro nível?
Qual é a forma de capital que mais facilmente pode ser deslocada? Pode deslocar-se uma unidade de produção, mas toda a gente verá, enquanto mudar dinheiro de um sítio para o outro é fácil. Faz-se muito dinheiro com estas manipulações financeiras. Era preciso resolver o problema dos paraísos fiscais, mas esconder dinheiro é uma arte que existia na classe capitalista já no século XIX.
Não vê, então, nenhuma hipótese de um capitalismo mais ético?
Há hoje muita literatura sobre um capitalismo ético e com consciência. Não digo que todos os capitalistas sejam piratas, há, naturalmente, pessoas que se preocupam e que querem criar um capitalismo com ética. O que posso dizer-lhes é: "Boa sorte, espero que tenham sucesso, avisem-me quando lá chegarem." Tenho muitas dúvidas, mas fico contente por haver pessoas que queiram tentar.
As regras para controlar o sistema teriam de ser globais e aplicadas por todos, o que é difícil.
Não é impossível. A maioria das dívidas é em dólares, e, como vimos, o caso da bancarrota argentina e das negociações acabou nos tribunais de Nova Iorque, porque o contrato estava em dólares. Nos anos 90, quando se defendia que se devia traçar o circuito do dinheiro, diziam-nos que era impossível. Depois do 11 de Setembro, os EUA começaram a investigá-lo e está provado que se consegue fazer. A questão é como vão usar essa informação.
Se não acredita num capitalismo “de rosto humano”, que sistema alternativo defende?
As transformações revolucionárias não acontecem do dia para a noite, mas há muita gente que acredita que melhor é possível. Se for à China, vai ver que aconteceu uma transformação revolucionária e todos estão optimistas em relação à ideia de que é possível mudar o mundo e de o fazer muito rapidamente. Por outro lado, sou suficientemente velho para me lembrar do mundo antes de o neoliberalismo se ter afirmado, e era um mundo muito diferente, as relações sociais que existiam, as instituições em que as pessoas confiavam ou não. Muito disso acabou. Houve uma revolução, ou melhor, uma contra-revolução, que nos afastou da social-democracia para esta política de austeridade de direita.
Está a falar dos anos 50, 60?
Sim, os anos 70 e 80 foram o ponto de viragem. Estas grandes mudanças acontecem. Esta é uma história que ainda não foi bem contada. A classe capitalista estava até então bastante desorganizada e organizou-se nos anos 80, a nível ideológico e de estratégia.
A esquerda falhou por várias razões, em parte pela repressão de muitos dos movimentos, mas também por ter ideias muito más sobre como uma economia alternativa poderia funcionar. Infelizmente, o modelo soviético não é um bom modelo, o chinês tornou-se várias vezes um desastre, por isso a esquerda ficou muito confusa sobre que tipo de modelo alternativo poderia ser criado. Isso permitiu que os neoliberais ganhassem espaço.
Hoje há experiências a acontecer em torno de uma economia solidária, ou formas colectivas de propriedade, ou formas alternativas de governo e de sistemas monetários. Não sabemos o que vai resultar daí, o que pode passar para uma escala maior, porque muitas destas experiências são muito locais.
Contudo, há uma maneira muito simples de começar a pensar nestas coisas. Na minha altura, o ensino superior era gratuito. Desde então tornou-se cada vez mais uma commodity. Bernie Sanders veio defender um sistema de ensino superior gratuito. Não há razão para não o fazermos. Acabava-se com as enormes dívidas que os estudantes têm. E os mais novos pensam: "Isso não é uma má ideia." Não parecem incomodados por ser socialismo, se fizer sentido para eles. Devia haver um sistema de saúde para todos e acabarmos com este disparate das companhias de seguros, que perdem o tempo delas e o nosso com um trabalho inútil que é o de nos negar os nossos direitos.
Fala em socialismo e marxismo, mas para muita gente são palavras intimamente associadas a regimes repressivos e sem liberdade política.
As pessoas podem preferir ser livres sem acesso a cuidados de saúde. Marx sempre falou em liberdade: os trabalhadores são livres num duplo sentido, o de fazer um contrato com quem quiserem, mas também estão libertos de qualquer acesso aos meios de produção e reprodução. Têm de os comprar. Se não têm poder para os comprar, passam fome. Sim, há uma troca. Não existe um sistema de total liberdade. Um sistema livre é sempre baseado em alguma percentagem de falta de liberdade. A liberdade existe muitas vezes num contexto de certos tipos de dominação.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

A democracia e os direitos humanos interessam-nos muito pouco. Nós utilizamo-los estas palavras apenas para esconder os nossos verdadeiros motivos. Se a democracia e os direitos humanos nos interessassem os nossos inimigos seriam a Indonésia, a Turquia, o Peru ou a Colômbia, por exemplo. Porque a situação em Cuba comparada com a desses países e na maior parte do mundo é paradisíaca. Wayne Smith, antigo chefe da Secção dos Interesses Americanos em Havana sob a Administração Reagan
Aquele que não conhece a História está destinado a revivê-la. (Marx)

Um texto oportuno! Dá que pensar.

Tribuna Popular

O ridículo golpe de Estado da Turquia em 17 reflexões

[Nazanín Armanian, tradução do Diário Liberdade] A partir da escassa informação disponível sobre os acontecimentos de 15 de julho, ocorrem-me as seguintes ideias:
.Embora o regime de Recep Tayyip Erdogan seja capaz de cometer um atentado de bandeira falsa (tinha planejado destruir o mausoleu de Sha Solimán, fundador da dinastia otomana situado na Síria e lançar um míssil sobre seus próprios cidadãos culpando de ambos atos ao governo de Bashar al Assad, como se revelou em março de 2014), não o faria por meio do exército. Seria demasiado arriscada uma operação com armas reais a partir de uma instituição da qual o presidente turco desconfia.
.Também é dudoso que Fathola Gülen, o clérigo sunnita turco estabelecido felizmente nos EUA, possa, como assinala Erdogan, mobilizar milhares de militares de um exército profundamente laico. Além disso, seu método é tomar o poder infiltrando-se nas postos chaves do poder, não patrocinar um levantamento de amadores.
.É possível organizar um golpe de Estado em um país da OTAN (que não só está localizado na região mais estratégica do mundo, como está em guerra) sem o conhecimento e/ou a autorização do Pentágono? Os não menos de 1.500 militares dos EUA presentes nas bases da Turquia deveriam saber qualquer coisa do plano de uns golpistas que, para mais, atuaram como amadores.
.EUA pretende acabar com o regime individual de Erdogan. Esta trapalhada inesperadamente, tal como o atentado do aeroporto de Ataturk duas semanas antes, acontecem precisamente quando Ancara pretendia corrigir, à sua maneira, os graves erros na política exterior que enfrentou o governo turco com todos os seus vizinhos. O diálogo entre EUA e Turquia rompeu-se: às discrepâncias sobre a situação da Síria, Iraque e a questão curda, acrescentou-se o pedido da Turquia para ingressar na Organização de Cooperação de Xangai, onde o presidente turco participou a 29 de junho em Tashkand, dizendo que “é muito melhor do que a União Europeia”. Não dá para ser membro da OTAN e aproximar-se da China e Rússia (em parte como consequência do Brexit e a perda de interesse de Bruxelas por integrar a Turquia) oferecendo à Rússia suculentas propostas comerciais que romperão as multas impostas por Ocidente, ou estar na Organização de Cooperação Econômica do Mar Negro (BSEC), em vez de potencializr a Associação Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP/ATCI)! EUA precisa um sócio obediente na região que aplique a estratégia da contenção militar e econômica da Rússia, China e Irã. Alguns meios russos apontaram 31 de março também para este desejo ou plano de EUA de “mudança de regime” na Turquia.
.Barack Obama, que começou seu mandato apoiando a Irmandade Muçulmana, apostou forte no “Islamismo de gravata” contra a nefasta aliança de Bush com o islamismo de turbante dos xeques waabitas da Arábia Saudita. Recebeu de braços abertos Erdogan e sua esposa, e aplaudiu as conversas de paz com a guerrilha curda de PKK, ignorando que o astuto dirigente turco tinha preparado uma armadilha aos curdos. A deceção posterior de Obama com o líder turco não foi por ter visto ele sem máscara, mas porque seu aliado tinha sua própria agenda na política exterior, saindo da órbita dos EUA. Daí o duro castigo, empurrando ele para o inferno da guerra de desgaste da Síria. No dia 28 de março passado, Obama recusou receber Erdogan em audiência em Washington e inaugurarem juntos uma mesquita turca em Maryland.
.Para além da responsabilidade do Erdogan e seu partido em deriva-a do país, Turquia foi vítima das estratégias erradas de Washington (inclusive para seus próprios interesses). Converteu o peso pesado da Eurásia em “Paquistão 2.0”, a partir de onde a CIA envia grupos terroristas religiosos ao país vizinho, Síria, para desmantelar seu governo semilaico, perdendo um aliado fulcral como a Turquia. Não vê que o Paquistão foi recolhido pela China?
.Embora hoje o presidente de Turquia se apresente como o herói nacional e pareça o principal beneficiário do tumulto militar, não o é: o fim do erdoganismo começou com sua derrota nas eleições do junho do 2015. Agora, nem poderá controlar a tantos inimigos que tem criado dentro e fora do país, nem governar a sociedade que tão vilmente fragmentou.
.Este não ia ser um golpe contra a democracia. O golpe do governo do Partido de Justiça e Desenvolvimento foi o que deu contra a democracia quando bombardeou a população curda, retirou a imunidade dos parlamentares opositores, fechou dezenas de diários, prendeu centenas de jornalistas, estudantes, prefeitos, juízes e políticos.
A farsa de um golpe de Estado
Surpreende que os golpistas de um exército de meio milhão de homens e um orçamento anual de 18.000 milhões de dólares não seguissem os mais elementares passos para tomar o poder:
.Contar com as figuras mais destacadas e de maior patente do exército. Os comandantes das forças terrestres e marinha turcos não se envolveram na tentativa.
.Ter imobilizado os aviões e navios militares, controlando os aeroportos, estradas principais, etc. Os golpistas foram atacados por um avião caça, por tanques e helicópteros!
.Ter detido ou assassinado o chefe do Estado ou o resto do governo. Conta-se que chegaram a bombardear o hotel onde estava Erdogan, mas só quando ele já o tinha abandonado. Depois aterrissou no aeroporto internacional de Ataturk, que não tinha sido ocupado pelos golpistas.
.Ter-se feito com o controle de todos os meios de comunicação. Salvo a Rádio Televisão turca, onde deram uma penosa imagem de golpistas sem ânimo de triunfar, se esqueceram do resto dos meios, incluídas as redes sociais (que Erdogan costuma as bloquear inclusive quando há manifestações pacíficas em sua contra). Na televisão não apresentaram um líder decidido e firme, nem leram uma declaração de intenções atraentes, nem deram a imagem de pessoas que fossem tomar o poder a sério. Assim, era impossível recrutar os setores sociais anti Erdogan nem muito menos os indecisos. Ao invés, o presidente (ao que parece) só com um celular e com a CNN turca, conseguiu arrastar milhares de seus seguidores às ruas. O resto fizeram-no as mesquitas, animando os fiéis para que fossem à guerra contra “os inimigos do Islã”.
.Os militares enganaram-se julgando que a atual sociedade ia apoiar um golpe de Estado. Os cidadãos, os partidos da oposição, e inclusive os curdos que vivem um verdadeiro massacre, lembram ainda as ditaduras despiadadas dos uniformados: “Nem Erdogan, nem militares”, foi a palavra de ordem dos partidos de esquerda.
.Não atraíram o apoio de outros países. Nas três primeiras horas que Obama manteve um estranho silêncio, Irã e Qatar opuseram-se ao golpe, e a Arábia considerou que era um assunto interno.
.Não teve nenhuma condição objetiva, nem subjetiva para o triunfo do levantamento. “Alguém” enganou os amotinados, preparou-lhes uma armadilha. O qual não impede que no futuro o exército turco possa atuar, mas a sério, mas isso será quando EUA não vir a possibilidade de uma transição não violenta para desmantelar o regime de Erdogan.
.Os militares formam uma casta, o qual significa que se protegem em termos de lealdade corporativista. Daí que, quando fracassa sua tentativa de golpe de Estado, os mandatários costumam mudá-los de postos ou os aposentar, ao invés de os deter ou executar. Assim, evitarão contragolpes. O que fizer Erdogan ao respeito, mostrará o grau de sua habilidade e o sentido comum.
.A principal lição destes fatos é que Erdogan não controla a situação, e a sua permanência no poder poderá empurrar a Turquia para uma guerra civil, com as forças reacionárias de protagonistas: ninguém pode garantir que a Turquia estará imune a cair em uma “sirização” total.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Desconstruindo a russofobia

Catherine Brown*    20.Jul.16    Outros autores
“A Russofobia é composta de ignorância, falha de cepticismo e raciocínio, orgulho, hipocrisia, condescendência e grosseria, tudo colocado ao serviço do complexo militar-industruial e da NATO: apoia uma Guerra Fria de um só lado, contra um país que só agora começa a erguer-se depois da queda, está mais interessada em melhorar as condições de vida do seu povo, não quer a guerra e não deseja ser nosso inimigo a menos que tenha de defender-se. “
Imaginem que Vladimir Putin não era um autocrata assassino e cleptocrata que passou os últimos catorze anos no poder a viver à conta do seu passado no KGB e a empurrar a Rússia cada vez mais para trás, para a autocracia do comunismo, iliberalismo e expansionismo. Imaginem que em vez de ele ser um dos maiores lideres que a Rússia já teve, cujas políticas tem auxiliado a produzir uma subida maciça dos níveis de vida e da esperança de vida, recuperação do orgulho nacional e reforço das leis, que se agarrou sabiamente a cleptocratas e gangsters, cuja política externa tem sido em geral realística, diplomata e pacífica, que preside a um país em que os direitos humanos estão bem melhor do que nos Estados Unidos e em que os direitos civis estão a melhorar, e que tem um apoio permanente de 65% — actualmente em relação à Ucrânia de 83% — da sua população. Na minha opinião ele está mais próximo do primeiro cenário do que do segundo — e digo isto como alguém que não tem ligações étnicas, financeiras, profissionais ou políticas com a Rússia. Na realidade não sou uma especialista na Rússia, mas também não tenho ideias preconcebidas. Sou uma observadora amigável, do país.
Deixem-me começar por explicar a história da minha ligação ao país. Quando era adolescente a minha escola um tanto tímida e sem imaginação decidiu organizar uma viagem descaracterizada a um local louco como a Rússia, onde, parecia, que tinham acontecido muitas mudanças politicas. Assim visitei a União Soviética durante o ultimo mês da sua existência, sem nenhum conhecimento dela com centenas de milhões não apenas com umas centenas. Após formação em Inglês, nem do que iria substitui-la. Alguns anos mais tarde, no meu ano antes da universidade, descobri-me a viver na margem sul do Danúbio em Ruse, Bulgária, a aprender búlgaro mas a pensar que se alguma vez aprendesse a sério uma língua eslava seria para me entender com centenas de milhões e não apenas com sete milhões. Depois de uma licenciatura em Inglês, fiz um movimento em diagonal para um mestrado em Russo e Estudos Pós-Soviéticos na Escola de Economia de Londres, onde era muito claro que os melhores kremlinologistas britânicos pouco sabiam de como e quando terminara a União Soviética — e quem, nostálgicos do czarismo ou nostálgicos soviéticos — estavam estarrecidos com o que acontecia nesse momento no país. O pior já tinha acontecido quando me mudei para Moscovo em 2002 para melhorar o meu russo aprendido nos livros, e para ensinar Inglês. Tornei-me entre outras coisas uma especialista de Literatura comparada anglo-russa e desde então tenho visitado o país todos os anos.
De Moscovo de 1991, lembro-me como era febril, quase em pânico e terrivelmente pobre. Moscovo que recordo de 2002 poderia chamar-se de «dura». Embora com uma segurança que Londres não tinha, utilizei muitas vezes carros particulares como táxis, sozinha à noite — havia muitas maneiras de morrer que Londres não tinha. Buracos abertos, bêbedos a escorregar na neve, fogo cruzado. Era o capitalismo duro — capitalismo selvagem, sem luvas. Afegãos literalmente de pernas nuas arrastavam-se pela neve, os torsos a equilibrar-se em skates rudimentares. Famílias acampavam a cantar pela ceia. Violinistas conceituados ambulantes. Ginastas profissionais a fazer strip em clubes nocturnos. Armazéns camuflados em que se vendiam marcas estrangeiras aparentemente em rublos, mas que de facto eram dólares inflacionados e ilegais. O meu patrão numa escola particular inglesa não pagava impostos sob a desculpa de que não o podia fazer porque não tinha dinheiro. Evitávamos a polícia, porque de algum modo estávamos envolvidos numa ilegalidade e porque eles eram mal pagos e aceitavam subornos.
Um ano mais tarde, de visita, a situação estava um pouco melhor. A miséria mais gritante já não aparecia. No ano seguinte, menos ainda. E a partir daí tem sempre melhorado. O capitalismo está a calçar de novo as luvas. Os transportes públicos estavam muito melhor. Nada se vende em dólares e as marcas estrangeiras tem concorrentes russas. Uma estrutura clara de impostos significa que o comércio e os assalariados podem e pagam as taxas. Não se vê ninguém bêbado em público. As mulheres moscovitas já não exageram a sua feminilidade num testemunho da sua insegurança financeira e numa imitação barata de um Ocidente pornograficamente imaginado. E o melhor de tudo, para os ocidentais habituados a isso, as pessoas devolvem-nos o sorriso. Mesmo nos casos mais difíceis — os babuskis que guardam os museus, e os guardas de fronteira para passaportes sorriem-nos. No ano passado, pela primeira vez, senti que a Rússia entrara numa nova fase — o pós-pós soviético e, em que as pessoas já não estão à espera que a normalidade seja restabelecida, ou a desejar viver num pais normal. Surgiu já uma nova normalidade e um novo optimismo.
O meu sítio de sentir o país tem sido sempre Moscovo ou até mesmo São Petersburgo, Nizhnii Novgorod e Perm — mas segundo o que ouço do resto do país, está a melhorar lenta, mas firmemente.
Ora este período de conhecimento coincidiu com a era de Putin no poder. É uma faceta dos media ocidentais que apresenta Putin metonímico do país, sendo uma das afirmações o seu controlo cada vez mais autocrático. Não acredito, mas não há duvida que Putin tem um impacto decisivo na política russa neste século. Assim o meu interesse não é apenas a Russofobia, mas a Putinfobia e considero-as semelhantes; uso aqui fobia no sentido de um preconceito negativo.
A verdade é que a Rússia que conheço e a Rússia que vejo descrita no Ocidente e principalmente nos jornais ingleses são completamente diferentes. A Rússia da minha experiência tem melhorado em relação a qualquer indicativo que possa imaginar, mas a sua imagem nos jornais estrangeiros tem piorado. Mas há muitas maneiras de melhorando o nível de vida o tornar compatível com uma autocracia crescente e beligerância internacional — caso de Hitler. Mas creio que isso não acontece com Putin.
Quero acabar esta introdução com uma anedota. No 1.o de Abril visitei o Instituto Britânico em Moscovo e falei com dois empregados russos jovens. Pensaríamos que essas pessoas se interessassem pelo Ocidente em geral e fossem anglófilas. Parte do seu trabalho era analisar a cobertura da imprensa britânica sobre a Rússia e enquanto pensaram que eu fosse uma jornalista da BBC, mantiveram-se reservados quase hostis. Quando eu expliquei que era académica e céptica das notícias britânicas sobre a Rússia, foram todos sorrisos e contaram-se como se sentiam aborrecidos com o noticiário britânico. Não conheço nenhum russo com conhecimento da representação russa na Inglaterra que não tenha muitas críticas. Também eu me sinto aborrecida, principalmente porque penso que isso é um dano moral e intelectual e de efeitos contraproducentes e perigosos.
Não vou aqui simplesmente analisar a corrente noticiosa americana e britânica em comparação com as minhas opiniões. Vou é tentar descrever algumas coisas que dão uma imagem falsa e factores que a corroboram, na esperança de que a minha descrição pareça verdadeira e contribua para uma visão correcta. Doravante, analiso os efeitos práticos da imagem dos media sobre a Rússia.
A sua origem vem das suspeitas habituais no caso de ideias feitas: distorção dos factos através do exagero, afirmações e falseamento; inferências falsas, inconsistências; e desconhecimento da língua.
Comecemos com o exagero: o argumento de que Putin domina totalmente os media russos é frequentemente exagerado. Muita da TV é estatal, mas alguns dos canais do Estado, como a RIA Novosti, criticam Putin, assim como muitas estações de rádio e jornais. Putin é muito mais criticado pela imprensa russa do que Cameron na imprensa britânica. Não fomos comparar tudo, já que no geral há mais razões para criticar Putin, mas é um facto, que entra em contradição com a imagem que se tem actualmente da Rússia. A internet é mais livre do que na Inglaterra — uma das razões por que a pirataria intelectual está disseminada — e muitos russos recebem as notícias pela Internet. O controlo governamental da imprensa não pode ser indicado como uma razão significativa para o apoio constante a Putin.
Por outro lado, os protestos contra ele, recebem boa cobertura mesmo que sejam exagerados apesar do facto de os protestos, grandes e pacíficos, indicarem o direito ao protesto. As demonstrações em Moscovo depois da eleição presidencial em Março de 2012 são a prova disso. A cobertura desses protestos também englobou declarações de muitos políticos importantes opositores – os comunistas. O apoio ao partido comunista está nuns 20% tornando-o o partido de oposição mais importante. Os media britânicos, porém, focam principalmente a oposição liberal. É compreensível que o faça, dado que é essa a tendência que apoia, mas dá também uma impressão falsa que agora a oposição «liberal» é de facto a principal. O exame das demonstrações em que a bandeira comunista predominou negou os comentários britânicos.
Este exagero do tamanho e importância, tanto dos protestos como dos componentes liberais, é claramente o produto de um modo de pensar positivo — mas se realmente houver interesse em ver a substituição de Putin por um liberal, não é bom exagerar a importância real da oposição liberal mesmo para si. Em vez disso devíamos confrontar o facto de que os partidos liberais conseguiram apenas 5% dos votos, e deveriam então tentar descobrir o que está errado com a mensagem destes partidos e/ou dos lideres, e/ou o que esta errado com a capacidade dos votantes para entender o interesse das suas mensagens.
Mas a elisão mais importante ao cobrir a Rússia é a dos melhoramentos nos indicadores democráticos, níveis de vida, afluência nacional e a regra de lei, que mencionei. Durante os seus primeiros doze anos no poder o PIB aumentou cerca de 850%. O país está quase sem dívidas, com uma grande reserva de moeda. Devido às políticas de Putin as receitas do petróleo servem agora a economia nacional. A mortalidade declinou muito, e os nascimentos aumentaram. Portanto fabricam-se notícias ou especulações são apresentadas como factos.
Um bom exemplo disso é a riqueza pessoal de Putin — que recebeu números fantásticos na Forbes e na Bloomberg, incluindo que ele é o nono homem mais rico no mundo, ou mesmo o homem mais rico do mundo. Estas teorias nascem muito de reclamações de dois homens, o analista Stanislav Belkovsky, primo de Berezovsky, e o politico liberal Boris Memtsov. As alegações são que ele tem secretamente uma grande parte da Gazprom e companhias de energia relacionadas como a Gunvor. Na verdade, quando The Economist publicou as alegações sobre o lugar de Putin na Gunvor em 2008 foi multado e obrigado a publicar uma retratação. Haverá poucas pessoas no mundo que realmente conheçam o verdadeiro estado das finanças de Putin: ele próprio e mais uma ou duas pessoas. Diria, primeiro, que alegações específicas não foram provadas; segundo, que especulações não devem ser apresentadas como factos confirmados; e terceiro, que nada do que se sabe sobre a história de Putin, o carácter orgulhoso e «workaholic» sugere alguém, a quem as coisas que o dinheiro pode comprar interessam; ele não é um Goering sibarítico.
Outras reclamações sobre corrupção na Rússia são perfeitamente absurdas. Algumas sobre a corrupção nos Olímpicos de Sochi, a serem verdade, significam que se teria perdido mais dinheiro na corrupção do que todo o PIB do país.
A credulidade destas reclamações feitas por críticos de Putin já que são feitas por críticos de Putin levam-me a uma inferência inductiva falsa que normalmente se aplica acerca de Putin: que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Quando combinada com a assunção que há uma interferência governamental na operação da lei na Rússia, tem como resultado que quando alguém é acusado de um crime na Rússia vozes de crítica a Putin surgem normalmente ao lado de protestos da sua inocência, principalmente na imprensa britânica.
Ou seja, não só o inimigo do meu inimigo é meu amigo, e não só o critico de Putin é meu amigo, mas o critico de Putin está inocente — não apenas negativamente inocente de qualquer crime imputado, mas positivamente inocente e bom, porque quem se opõe a um tirano, é dissidente e, portanto, do mesmo género de pessoa como os santos Solzhenitsyn ou Sakarov. Na realidade, um prisioneiro com ideias politicas não é o mesmo que um prisioneiro político.
É certo que o sistema legal da Rússia é menos brando que o de Inglaterra, e tem menos das suas características importantes tanto na lei civil como na criminal — por exemplo o principio de abertura das provas contrárias. O sistema é jovem, tendo sido criado pelo nosso sistema capitalista no fim do comunismo. Muitos dos advogados e juízes são assim relativamente jovens e inexperientes. E cingem-se muito à lei. A defesa ainda não está tão bem estabelecida na profissão como a acusação. Estes factores afectam a justiça de todos os julgamentos do país.
Mas devem acrescentar-se a isto duas coisas importantes. Primeiro, a situação vai gradualmente melhorando. Putin não destruiu a independência judicial e antes dele quase nada existia, e está agora a ser gradualmente criado. Segundo, a alegação de que todos os julgamentos dos críticos de Putin são injustos pelos padrões do sistema vigente pois há muito poucas provas em que se apoiar.
Nos anos 90 muita da riqueza da Rússia passou por meios violentos e corruptos para as mãos de alguns assim chamados oligarcas. Quando Putin se tornou presidente fez-lhes uma proposta que constituiu provavelmente a intersecção óptima de pragmatismo, justiça e pensamento avançado. Ou podiam pagar algumas das taxas não pagas, investir algum dinheiro em projectos regionais e não usarem a riqueza como alavanca para o poder político — ou serem perseguidos pelos crimes anteriores. Alguns, como Abramovitch, aceitaram o compromisso oferecido, e floresceram. Outros como Khodorkovsky, não quiseram. O seu julgamento por evasão fiscal foi altamente criticado pelo Ocidente como sendo irregular e uma vingança política. O que poucos sabem é que a 25 de Julho de 2013 o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a que a Rússia como membro do Conselho da Europa pertence) declarou que o julgamento não era politicamente motivado, que Khodorkovsky era culpado, e que tinha sido devidamente sentenciado (embora se encontrassem algumas irregularidades, pelo que foi devidamente indemnizado). Noutros casos como o das Pussy e do futuro candidato presidencial Aleksei Navalny (cujos apelos ao Tribunal de Direitos Humanos ainda estão para ser ouvidos) os réus foram condenados pela lei russa com provas e receberam penas que não só se adaptavam bem às sentenças para esses crimes, como receberiam o mesmo tratamento se tivessem sido cometidos na Inglaterra. Na Inglaterra as Pussy teriam sido condenados ao abrigo do Acto Publico de 1986, por ofensas com a pena máxima de dois anos (que foi o que elas receberam). Navalny seria enquadrado no Acto Theft de 1968, por crimes com a pena máxima de seis anos (Navalny recebeu 5). Nalguns aspectos a operação da lei russa é mais benevolente do que a Britânica. Antes da prece punk na Catedral de Cristo Salvador, membros do grupo Pussy fizeram sexo público no museu e atiram gatos vivos a trabalhadores num restaurante MacDonalds. Em Inglaterra esses actos teriam resultado em sentenças de prisão de pelo menos dois anos. Enquanto que na Rússia não tiveram qualquer pena. Uma das razões porque as Pussy foram perseguidas pela «prece punk» é que interromperam e parodiaram um acto litúrgico, o que é especificamente proibido na Rússia (como também na Inglaterra) e que é particularmente repreensível num país com uma história de perseguição religiosa pelo Estado.
Finalmente, a critica da condenação de crimes políticos comprovados por aqueles que se opuseram a Putin, que deveriam estar acima da lei por essa única razão. Deveria afirma-se que os maiores aliados de Putin (como o anterior ministro da Defesa Serdyukov, cujo julgamento por fraude foi muito atrasado), se suspeito de actividades criminais, não devia ter estar acima da lei. Fazer o inverso é aceitar que a lei na Rússia está minada. Mas, é implícito discutir que Putin devia impedir a lei de seguir o seu curso no caso de alguém que o critique, que é o mesmo que pedir interferência na lei, que é precisamente o que está a ser criticado. A ser verdade que nem todos os oligarcas tiveram o mesmo tratamento, e resposta verdadeira é exigir que todos sejam responsáveis pelos seus crimes, sem excepção.
Vale acrescentar que apoiar alguém, não importa quão criminoso, desde que se oponha a Putin, nos transforma em puros idiotas, fazem-nos parecer idiotas perante muitos russos, que só assim podem entender que Boris Berezovsky recebesse asilo em Inglaterra, em vez de ser extraditado para responder pelos crimes na Rússia. Internacionalmente, algo na mesma dinâmica de apoio a um inimigo de um inimigo é aparente. A NATO é hostil à Rússia, assim, para alguns, há uma razão para apoiar a NATO. Mas em que base discordam a Rússia e a NATO? Primeiro, a Rússia opôs-se pouco ou muito à intervenção da NATO na Jugoslávia, Afeganistão, Iraque e Líbia. O que está certo dependendo da nossa atitude para com essas intervenções, mas se alguém deseja a paz em vez da guerra — civil ou outra — então a Rússia deveria ser julgada por ter agido melhor do que a NATO
Segundo, a NATO portou-se com muito maior hostilidade para com a Rússia do que a Rússia para com ela. Em 1990 tanto os Estados Unidos como a NATO prometeram à Rússia que não iam expandir-se para leste. Desde então têm continuado a fazê-lo desafiadoramente. A Rússia quase nem respondeu. Mas, protestou com veemência e com razão contra a deslocação dos interceptores dos mísseis balísticos norte-americanos na Polónia e na Roménia. Os Estados Unidos de certeza não iriam tolerar sistemas de bases semelhantes em Cuba ou na Venezuela.
Isto leva-nos à aplicação inconsistente de padrões. O governo russo é quase invariavelmente mal-entendido, com exigência de padrões mais elevados do que os outros países.
Vejamos a recente e controversa «lei gay». Com ela o governo russo granjeou por pouco tempo aos olhos dos apoiantes de Edward Snowden quando este recebeu asilo na Rússia um aspecto positivo, que logo se perdeu na campanha orquestrada pelos Estados Unidos contra a lei gay que começou logo depois.
A lei que tornava «uma ofensa administrativa» [crime menor] mostrar a homossexualidade a uma luz positiva a menores é uma lei má, porque torna uma ofensa menor de algo que quase não era praticado e que não devia ser proibido. Considera ilegal propaganda «homossexual pedófila» não fazendo menção da «propaganda heterossexual pedófila». Mas, na Rússia a homossexualidade pública e privada é tão legal como a heterossexualidade — embora haja um apoio ínfimo a um boicote por exemplo no Qatar, destinado a ter a Copa Mundial, que tem uma legislação muita mais repressiva anti-gay. De resto vários estados americanos tem uma legislação anti-gay muito mais forte do que a da Rússia, mas ninguém propôs nenhum boicote da América com base nisso. Os barmen pró-gay não deitavam o wisky escocês pelo cano abaixo entre 1988 e 2003 para protestar contra uma lei muito semelhante (Secção 28 do Acto Local do Governo) que existia então na Inglaterra. Torna-se claro que a campanha contra a lei russa anti gay floresceu por causa da Russofobia — o fenómeno que estou a descrever. Lembramo-nos que durante a cobertura dos Olímpicos de Sochy, Claire Balding respondeu muito abertamente às enormes facilidades e ao apoio fraterno dos russos locais, junto do correspondente russo da BBC Daniel Sandford, que interrompia repetidamente quase como um comissário soviético — ah, ah, mas não devemos esquecer que este é o país onde a apresentação da homossexualidade a menores numa maneira positiva é crime administrativo».
Não afirmo que qualquer número de facilidades impressionante e o apoio dos locais dê uma caiadela nas violações dos direitos humanos — a lei gay russa não é isso. O activista gay russo Nikolai Alexeyev, ficou muito aborrecido com a maneira como a campanha anti gay, liderada pelos Estados Unidos contra a Rússia estava a ser conduzida como uma ferramenta da Russofobia. A 17 de Agosto de 2013 declarou: Todos os media ocidentais querem ouvir de mim que a Rússia não presta e não quero tomar parte nessa hipocrisia. Portanto acabaram-se as entrevistas! Por essa reacção, ele um bravo campeão contra a lei gay, foi considerado um parceiro de Putin — e assim abriu-se um fosso entre os activistas russofóbicos pró-gay e os activistas gays russos, cujo trabalho é actualmente trocar opiniões sobre o assunto.
E o que acontece aos direitos gay acontece com os direitos humanos em geral. A Rússia é considerada superior por países como o Barein e a China, mas também os Estados Unidos. Segundo os media ocidental pensaríamos que a situação dos direitos humanos da Rússia era pior do que a dos Estados Unidos e pelo menos tão má como a China — sendo que as duas noções são absurdas.
Comparemos a Rússia aos Estados Unidos (sendo a China muito pior do que os dois) Os Estados Unidos têm 730 prisioneiros em comparação com os 598 da Rússia para cada 100.000 da população. Usa a pena de morte, executa menores, e dá poder ao presidente para autorizar o rapto, a tortura, a morte de cidadãos estrangeiros e nacionais sem julgamento. A Rússia não faz nada disso. O governo americano cerceou as liberdades civis com o O Patriot Act, espia ostensivamente a sua imprensa e a estrangeira, e detém centenas de pessoas sem julgamento numa rede internacional de prisões secretas. As liberdades civis da Rússia estão agora mais garantidas por lei do que as americanas; não há prova ou sugestão que a Rússia rapte indivíduos no exterior ou torture no exterior ou que mantenha um campo de tortura como Guantánamo, nem que o governo espie cidadãos russos como faz a NSA sobre os americanos ou estrangeiros. A este respeito — quanto à espionagem sobre os seus concidadãos — a Rússia e os Estados Unidos trocaram de lugar desde o fim da União Soviética. Embora a tendência das leis americanas na última década e meia seja a diminuição das liberdades civis, na Rússia a cultura legal tem-se tornado cada vez mais humana e liberal. A Rússia leva a julgamento suspeitos terroristas islâmicos capturados num tempo razoável e não lhes nega o habeas corpus. A cultura popular americana (incluindo filmes como Zero Dark Thirty) mostra que a América pratica a tortura e sugere que é justificada. A cultura popular da Rússia não aceita a prática da tortura. O contraste entre o tratamento ocidental da Rússia e dos Estados Unidos sobre os direitos humanos viu-se quando em 2012 a Amnistia Internacional levou a efeito uma campanha de Acção Prioritária sobre as Pussy, cujos membros foram declarados prisioneiros de consciência, enquanto a campanha para Bradley – actualmente Chelsea – Manning, que não tinha sido declarado prisioneiro de consciência, nem foi ainda. Os membros das Pussy foram condenados como já mencionei a dois anos de prisão, de acordo com a lei, por um crime que cometeram. Ao mesmo tempo, Bradley Manning foi submetido a um castigo cruel, desumano e degradante, antes de ter sido julgado por qualquer crime. Isso deu uma má ideia de parcialidade politica ás decisões da Amnistia, mostrando que eles consideram o tratamento relativamente humano e legal dos críticos de Putin como uma violação maior e mais flagrante dos direitos humanos do que a tortura antes do julgamento.
Acerca de duas medidas diferentes consideremos também o conselho que a América dá à Rússia. Durante os protestos na praça Maidan em Kiev lembremos John Kerry pedindo a Yanukovich para mostrar calma para com os manifestantes. Ele mostrou tanta calma que deixou a cidade em vez de ordenar à polícia que avançasse e defendesse o Presidente, como poderiam ter feito. Podem imaginar um presidente americano a ser obrigado a fugir por protestos violentos em Washington? Em Washington, os protestos de Maidan não teriam durado dois dias. Se apontar uma arma letal a um polícia pode ser legalmente abatido. Em Kiev, foram mortos cerca de vinte policiais. Podemos imaginar a resposta violenta e desdenhosa se Putin tivesse aconselhado Obama a ter calma diante de protestos violentos, e a deixar-se derrubar.
E não falemos dos ditadores com quem a Rússia tem boas relações, na Síria, Coreia do Norte e Cuba, são atacados não de uma maneira diferente dos ditadores da Arábia Saudita, Barein, Quatar, Uzebequistão, Honduras, Tailândia e Egipto mas de modo a que a Rússia também não os ataque. Em geral o Ocidente não só não pratica o que prega à Rússia, prega onde a Rússia não está — embora não veja grande mal em pregar — sou lawrenciana —, não gosto da pregação de hipócritas.
Uma coisa que está presente na nossa inconsistente aplicação de padrões é o nosso uso da linguagem. Os manifestantes em Maidan protestavam; em Slaviansk, Kramatorsk, Maiupol eram rebeldes. O governo de Putin é frequentemente conhecido como regime, e assim ligado à ditadura, onde não existe, como não existe nos Estados Unidos uma democracia perfeita, mas Putin pessoalmente tem mais 20% de aprovação do que Obama. E pelo menos mais 25% do que Cameron. Mas há essencialmente uma palavra mal utilizada no contexto russo — «liberal». Essa é uma palavra notoriamente proteana, mas parece haver acordo sobre a sua denotação num contexto russo que em relação é Rússia é unânime, onde geralmente quer dizer «promover os valores ocidentais em relação à liberdade individual, igualdade, democracia e a regra da lei». Mas, quando se consideram as politicas desses políticos e comentadores descritas como liberais, descobrimos que aquilo que se vê é a promoção de politicas económicas estrangeiras alinhadas com os interesses ocidentais, enquanto outras possivelmente não liberais se mantém. Por exemplo, Aleksei Navalny, que é frequentemente descrito como o líder liberal da oposição, tem opiniões que a maioria dos liberais ocidentais considera racistas. Como a maioria dos russos não quer que a Rússia aceite os interesses geopolíticos e económicos da NATO à sua custa, e como o capitalismo ocidental está associado aos anos 90 (um período que nunca foi muito bem aceite no Ocidente com tendo sido uma catástrofe, os chamados «liberais» estão numa proporção pequena em relação ao voto popular. Mas a narrativa russofóbica confunde «liberal» com democrático. O facto das políticas de Putin terem mais apoio do que as chamadas liberais não torna Putin num anti liberal e os que se opõem a Putin democraticamente eleito não são pró democratas por essa razão. A Russofobia, segundo a ideia de Said no Orientalismo assenta assim e gera contradições. Também constrói um inimigo agressivo e a temer, ameaçando os seus vizinhos como a Ucrânia e a Geórgia. Por outro lado, cria um inimigo risível de que a economia esta fragilmente dependente do petróleo — um ponto que não é tão importante como quando pensamos na Arábia Saudita um aliado possuidor de petróleo
Mas tanto a agressão da Rússia como a sua fraqueza são sobrestimadas ou seja, o desejo (por razões que a seguir exporei) de construir um inimigo produz uma imagem (e mesmo, uma realidade), que se receia, cujo poder precisa de ser entendido. Desde 1989, quando se retirou do Afeganistão, mandou as suas tropas apenas para a Geórgia, e isso em apoio aos habitantes de um enclave semi-autónomo em que as tropas da Geórgia tinham entrado em violação de tratados internacionais. Na realidade não ameaçou ninguém.
Mas o conhecimento do seu poder é importante. Falando para comerciantes na Rússia — russos e estrangeiros — percebi que a Rússia tem produções imensa e economicamente diversas, evitando muitas das armadilhas de divida e sistema bancário falso que aflige a nossa economia.
A L’Oreal, Danone, Peugeot e Renault estão a conseguir grandes lucros na Rússia. Longe de estar totalmente dependente da exportação de petróleo, a Rússia tem muitos produtos manufacturados como aço, produtos químicos, farmacêuticos, roupa, construção de navios, maquinaria, aviões, alimentos processados, mobiliário, computadores, tractores, produtos ópticos, carros, telemóveis. Tem uma grande indústria de construção e lidera no campo nuclear a tecnologia espacial. O Ocidente provavelmente não pensa muito nisso porque são produtos pesados, não consumíveis, e não se encontram assim nas lojas ocidentais. O imposto de renda é baixo 13%, encorajando assim o crescimento económico (embora, em minha opinião seja uma medida temporária, e será depois substituída por um imposto de renda gradualmente mais socialista. Há um juro de 10% nas contas correntes. As sanções doeram, mas levaram também a um maior investimento interno. E a história da fraqueza russa deve-se à ignorância das suas relações com o resto do mundo ocidental. Há laços sino-russos a aumentar e relações estreitas entre a Rússia e muitos países asiáticos, africanos e sul-americanos, China e Japão, Índia e Paquistão, Israel e Palestina.
Quando assisti a uma reunião de comerciantes que discutiam respostas às sanções a Moscovo em Abril foi dito que os embaixadores que decidiram vir pelos menos os que eu vi— eram da Africa do Sul, México, Peru, Benim, Indonésia e Malásia. Nenhum do «Ocidente» e isso é realmente uma metáfora pelo facto de que o Ocidente não vê e não quer ver, as boas relações que a Rússia tem com o resto do mundo.
Mas há muitos factores que favorecem a construção e persistência da Russofobia.
Um dos primeiros e mais óbvios é o contacto limitado com o próprio país.
Desde o século dezasseis quando os europeus ocidentais começaram a viajar para a Rússia, observaram que a Rússia é difícil de atravessar, de entrar, e onerosa nos requisitos de passaporte. O mesmo acontece com a política quer dizer que não é fácil chegar a são Petersburgo para uma volta rápida — na realidade há muito menos voos directos entre Londres, o centro das vias aéreas e a segunda maior cidade do maior país do mundo — que, para qualquer outra parte do mundo, o que é estranho. O contacto limitado com a Rússia, e aprendizagem limitada da língua, significam capacidade limitada para testar a validade da imagem da media na Rússia. Essa imagem é parcialmente a construção de jornalistas que eles mesmos sabem muito pouco do país, e que fazem eco uns dos outros. Mas é igualmente a construção dos correspondentes estrangeiros locais como Luke Harding do The Guardien e Ed Lucas do The Economist’s, que na minha opinião caem dentro da categoria de pessoas que podem viver num país detestando-o e interpretando-o de maneira errada, assim como certas pessoas podem viver num país amando-o, e interpretando de maneira errada no sentido oposto.
Uma das características em favor do eco de opiniões entre jornalistas residentes e outros é o inverso de um fenómeno que descobri entre pessoas que discordam deles. Em Moscovo amigos meus que aprovam Putin incluem-se Russos, Americanos, um Finlandês e um Francês. Trabalham na Rússia como jornalistas, comerciantes e advogados. A sua visão política vai de Conservadores a quase comunistas e verdes. Mas todos eles, nos seus diversos caminhos e das suas perspectivas próprias acabaram por admirar Putin, cujas políticas não podem ser facilmente descritas em termos de análise da esquerda-direita tradicional. O inverso disso é que ele pode ser criticado de todas as perspectivas, pelo que temos, portanto, uma rara unidade na Russofobia britânica, entre a ala esquerda e a ala direita e mesmo em grandes jornais e tabloides.
Outra característica que favorece a Russofobia é que a sua imagem de Rússia condiz com imagens antigas que a Rússia tinha no Ocidente — principalmente como autocrática. O principal período de contacto entre a Europa ocidental e a Rússia tem sido caracterizado pela disparidade crescente entre níveis de democracia no Ocidente e no Oriente; isso era verdadeiro até recentemente. Afirmações de que Putin é autocrático enquadram bem numa narrativa primária sobre a Rússia, não condizente com a democracia: há só dois problemas. Um, o primarismo está agora tão desacreditado na ciência politica como o racismo, e por razões semelhantes (veja-se o êxito de Martin Sixsmith em 2011: Rússia: Mil anos do Oriente Selvagem). Segundo, Putin não é autocrático. A narrativa de reversão de autocracia depois dos anos relativamente democráticos de Yelstin, é particularmente absurda dado que em 1993 Yeltsin fechou jornais e enviou tanques para a Casa Branca para dispersar o Parlamento russo, que se opunha à sua política económica profundamente antipopular. Nos escassos anos seguintes calcula-se que entre 187 a 2.000 pessoas foram mortas. Putin nunca fez nada semelhante, e claro que é possível interpretar mal alguém cujas políticas são grandemente apoiadas — dentro e fora do parlamento — como um ditador que não vai contra a oposição.
Mas temos de dizer, que a Rússia tem sido uma casa maior do pensamento primordial, principalmente por si. O que é a ideia de russkaiadusha, ou a alma russa, mas um argumento que a Rússia é a) distinta e b) imutável na sua essência? O discurso da alma russa é complicado mas parte disso condiz com a ideia que o povo russo é subserviente e sofredor. E esta ideia é reforçada desde Tolstoi e Dostoievsky. Mas, não foi a única verdade primordialistica. O eurasianismo compete com o eslavofilismo, e o ocidentalismo — os ocidentalistas dizendo claro que a Rússia podia e devia pôr-se a par do Ocidente. Mas, a Rússia acima de tudo, tem na sua literatura e filosofia, dado encorajamento suficiente ao pensamento primordialista.
Mencionei a homologia do primordialismo ao racismo — e posso garantir que há uma dimensão racial na Russofobia do que posso ter alternadamente chamado Russismo. Mais uma vez vamos através da contradição. Por um lado, os Russos são acusados de favorecer a autocracia e a subserviência. Por outro, espera-se que eles se comportem como europeus ocidentais apesar das circunstancias históricas imensamente diversas e, tenho a certeza de que uma razão disso é que os russos europeus são exactamente iguais aos europeus ocidentais, o que não acontece com os Chineses ou os Turcos. Na proporção das diferenças de pigmentação de melanina, cor de olhos, e estrutura facial, pouca diferença de comportamento político é tolerada — e quando acontece, é então por reacção essencializado.
O próprio Putin tem sido amplamente demonizado. O seu passado de KGB é frequentemente invocado de um modo que ultrapassa o facto de que o próprio KGB era uma opção de carreira para jovens soviéticos ambiciosos quando ele escolheu essa carreira. Posso mencionar o facto de que ela citar Maxim Isayev como uma influência para o seu desejo de se juntar ao KGB. Isayev é o herói da mini série de culto soviética, Dezassete Instantes de uma Primavera — a resposta soviética a James Bond. Isayevé um agente russo que pretende ser um dirigente em Berlim no fim da Segunda Guerra Mundial. Era corajoso, culto, inteligente, generoso e de uma integridade soviética — um herói soviético, que protegia a Rússia da Alemanha e a Alemanha de si própria, um tipo que pessoas como Putin gostariam de ser. Claro, que sabemos que a espionagem não é como nos filmes. Mas na nossa era de revelações pós Snowden, é estranho continuar a atacar alguém por ter espiado cidadãos de outro país, e usar isso repetidamente como uma lente de interpretação negativa sobre todas as suas acções subsequentes.
Na sua apresentação como macho man Putin não faz favores ao Ocidente. Mas acho que os russos não precisam de ligar ao nosso desprezo generalizado por esta imagem, como os Britânicos não tem de ligar aos Americanos, cuja impressão generalizada é que todos os homens britânicos são gays. A razão disso é que o comportamento normal masculino aqui é mais suave, e metafórica e literalmente menos musculado, do que é a norma na América do Norte. Na Rússia o comportamento másculo de Putin é muito menos aceitável do que aqui — principalmente em contrate com as séries de gerontocratas que governaram a União Soviética após Stalin, e Yeltsin um embaraço etílico. Devemos lembrar que não é apenas pelo seu estilo machão que ele é admirado; é também admirado por uma vida limpa, em contrate com Yeltsin e muitos outros do período de Yelstin no poder, e com boa educação — fala Russo sem erros gramaticais, de novo em contrate com Yelstin.
Mas a sua auto-projecção é enfaticamente dirigida mais ao povo russo do que ao resto do mundo, e isso deve-se ao facto de que Putin não imita o Ocidente — bate-lhes (para usar uma metáfora inglesa) com um bastão directo. Algo de um desprezo de anúncio comunista surge na sua falta de interesse em anunciar o país ou a si próprio, no que toca ao Ocidente. Foi por isso que a Geórgia teve a maior cobertura no conflito Rússia-Georgia, de uma maneira que até Martin Sixsmith admite ter sido incrementada pela BBC.
Saakashvili educado na Columbia estava pronto a fazer de PR de uma maneira que Medvedev não estava. Um contraste diferente à Rússia é a China, que responde prontamente e até agressivamente à critica pública, e que até beneficia do opróbrio amontoado sobre a Rússia, desde que afaste as atenções de si mesma, sendo uma ameaça muito mais tangível para os interesses da Europa. A Rússia, por outro lado, nada faz para atacar a Russofobia.
Dou ainda mais razões para a atração da Russofobia. A desconfiança da media na Rússia já vem de longe, e com boa razão. A má atitude dos Russos, ainda hoje, é de cepticismo e crítica. Podem votar em Putin porque gostam dele ou das suas políticas, mas isso nãos os faz acreditar mais no que leem, e há ainda muita insegurança sobre o estado do país, sobre o que se queixam. Apesar do desafecto dos votantes deste país, penso que há um nível muito mais alto de segurança do que se lê no Guardian, noEconomist, The Sun, a BBC, entre os britânicos do que canais equivalentes na Rússia. Ou seja, uma diferença entre nós e os Russos é que somos menos cépticos sobre o que lemos.
Cuyu bono? Quais são as motivações mais obvias para criar a Russofobia?
Em resumo (e as razões substantivas realmente são breves): a política estrangeira da Rússia não segue a do Ocidente. Os fabricantes de armamento ocidentais não têm interesse numa nova Guerra Fria, porque a guerra contra o terror não preenche o vazio na venda de armas — especialmente de armas nucleares — deixado pelo fim da Guerra Fria. E a NATO necessita desesperadamente de raison d’être (razão de existir).
Mas os interesses dos fabricantes de armas e da NATO não são os do Ocidente num todo. A Russofobia age de maneiras muito contraproducentes. Restringe potencialmente a sua enorme cooperação económica e cultural e intercambio com a Rússia — uma razão porque os comerciantes se opuseram às sanções — e que empurra decisivamente a Rússia para uma cooperação económica, politica e militar com a China e na verdade com o resto do mundo. As sanções tiveram o efeito de obrigar a Rússia a pensar em desenvolver a sua própria versão do VISA. Fez repatriar a riqueza da Rússia espalhada fora. E na Ucrânia, o apoio ocidental de um golpe contra um presidente eleito colocou o país à beira de uma guerra civil, e aumentou o território da Rússia. Como um amigo meu tem comentado repetidamente «as guerras começam quando os políticos mentem aos jornalistas e depois acreditam no que lêem na imprensa. A popularidade de Putin estava em 83% na véspera dos acontecimentos na Ucrânia, e o sentimento dos russos comuns contra os Estados Unidos e a União Europeia começa a aumentar. Isso torna a vida mais difícil para os Russos cuja agenda politica tem apoio no Ocidente. Um bom exemplo é o dos activistas dos direitos gay, que têm muito mais dificuldade em alcançar os seus fins já que uma atitude pró-gay se alinha com uma atitude anti russa. Os activistas gay russos são agora um grupo muito mais isolado e de quem se desconfia do que antes de receber apoio ocidental.
Todos os russos familiarizados com a Russofobia veem que a Rússia está a ser criticada por muitas coisas erradas — e essa é a ironia mais trágica. O país não é perfeito. A segurança social é miserável; há problemas no exército e nas prisões, e problemas com racismo, drogas, e violência doméstica, a educação e a saúde estão mal; o imposto de renda está mal. Mas não por isso que a Rússia é criticada, tanto pelos ocidentais como pelos seus chamados partidos liberais, que estão obcessivamente preocupados com Putin.
As pessoas que sofrem na Rússia não são os lideres da oposição com a sua cobertura abundante na imprensa ocidental, mas os pobres.
E fora os Comunistas, e mesmo Putin quem fala deles?
A Russofobia é composta de ignorância, falha de cepticismo e raciocínio, orgulho, hipocrisia, condescendência e grosseria, tudo colocado ao serviço do complexo militar-industruial e da NATO: apoia uma Guerra Fria de um só lado, contra um país que só agora começa a erguer-se depois da queda, está mais interessada em melhorar as condições de vida do seu povo, não quer a guerra e não deseja ser nosso inimigo a menos que tenha de defender-se. Desejo-lhe o melhor
* Jornalista
Este texto foi publicado em:
http://www.informationcleaninghouse.info/article44908.htm

Tradução de Manuela Antunes

in ODiario.info

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