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sexta-feira, 10 de novembro de 2017


Annie Lacroix-Riz *
A historiografia dominante está alinhada com a propaganda antibolchevique e russófoba desenvolvida desde o final de 1917. Mas pode-se, ainda, confrontar a ladainha dos grandes média e dos seus historiadores fetiches com as muitas obras científicas que descreveram corretamente a Revolução de Outubro. Lê-las, sobre o maior acontecimento do século 20, permite aspirar uma grande lufada de ar fresco. Não hesitem...

A Revolução de Outubro é tão lógica como a Revolução Francesa, que só pode ser explicada descrevendo-a, seguindo o exemplo dos grandes historiadores Albert Mathiez, Georges Lefebvre e Albert Soboul sobre a crise, a longo e curto prazos, do Antigo Regime feudal, que precedeu e provocou esse terramoto.

Uma longa situação pré-revolucionária
Um país atrasado, lançado no capitalismo entre o ukase [1] de 1861, que aboliu a servidão, e a imposição de sacrifícios desta caverna de Ali Baba, a partir de 1890, pelas potências imperialistas desenvolvidas. A massa de camponeses, mais de 80% da população, foi privada de terra ou humilhada – mais gravemente, ao longo de gerações –, com a dívida de resgate obrigatório de terras tornadas “livres”, com a superfície reduzida a quase nada (os camponeses franceses tinham conseguido, em julho de 1793, depois de uma luta ininterrupta de quatro anos, a abolição dos direitos senhoriais sem indemnização). A classe operária saída deste miserável mundo camponês foi sobre-explorada pela grande burguesia nacional e, ainda mais, pelos tutores desta, os grandes grupos bancários e industriais estrangeiros (franceses, britânicos, alemães, suíços, americanos), que, depois do Ministro de Witte, controlavam toda a economia moderna. Concentrada, mais do que em qualquer outro país, nas grandes cidades – sobretudo na capital política, São Petersburgo-Petrogrado, com a enorme fábrica de armamento Poutilov –, era muito combativa: antes de 1914, 40% dos 3 milhões de operários trabalhavam em fábricas com mais de mil operários, e a “curva de greves” aumentou incessantemente do segundo semestre de 1914 até fevereiro de 1917, passando de 30 mil para 700 mil grevistas.
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 As manifestações das mulheres operárias em Petrogrado, em 1917,
iniciam a revolução russa.

A Guerra russo-japonesa de 1904 – símbolo dos apetites dos grandes imperialismos rivais pela mina de ouro da Rússia –, tinha terminado, dada a inépcia militar do regime czarista, com um fracasso tão lamentável como aquele que tinha posto fim à guerra da Crimeia. E teve como consequência a revolução de 1905, na qual Lénine, líder da fração “bolchevique” (maioritária no Congresso de Londres de 1903) do Partido Operário Social-Democrata da Rússia (POSDR), vive, em retrospetiva, “o maior movimento do proletariado após a Comuna” e “a repetição geral” da revolução de 1917. O fracasso do movimento fundador dos “conselhos” (sovietes), nova forma de expressão e de poder popular, foi seguido duma terrível e duradoura repressão: mais do que nunca, o império foi uma prisão dos povos, amor absoluto do grande capital francês, financiador de créditos garantidos pelo Estado francês e “cortador de cupões” (Lénine, capítulo 8, de O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo). Esse fracasso retardaria em cinquenta anos o surgimento de uma nova revolução, a menos que, pensava Lénine, surgisse uma crise ou uma guerra. A fase seguinte encurtou os prazos, conjugando os dois.

O sistema czarista mostrou-se inepto, como de costume, na condução geral da guerra. A sua carne para canhão não dispunha mesmo do mínimo de munições, com a Rússia a fabricar, de 1914 a 1917, 9 vezes menos cartuchos e armas do que o necessário. Baixa da produção agrícola de quase um quarto, irregularidades nas requisições, culturas a apodrecer nos locais de produção, insuperáveis problemas ​​de transporte, catástrofe no abastecimento: no início de 1917, mesmo na frente, a ração de pão não dava para o dia e os soldados-camponeses (95% do exército) reentravam em sua casa a pé. Era pior nas cidades, designadamente, em Moscovo e Petrogrado. A fome foi “a causa imediata da revolução” de fevereiro (Michel Laran, Rússia-URSS 1870-1970, Paris, Masson, 1973). Isto levou à abdicação de Nicholas II, que “tinha conseguido a unanimidade contra ele”.

Uma revolução lógica
Os bolcheviques, exilados, como Lénine (na Finlândia), ou clandestinos na Rússia, eram então certamente ultraminoritários. Mas deixaram rapidamente de o ser, pois o povo russo, ávido de reformas profundas, teve de perceber que o seu destino não mudava. Ao longo de meses ficou amargamente desapontado com aqueles a quem tinha dado a sua confiança, como os socialistas-revolucionários, que tinham prometido, há muito tempo, a terra aos que a trabalhavam. Até mesmo os camponeses acabaram por admitir, na passagem do outubro de 1917, que nenhum outro partido, além do de Lénine – o único a demonstrar, desde fevereiro, a capacidade de manter os seus compromissos –, lhes daria a terra e os libertaria de direito da carnificina, que desde 1916 eles começaram a abandonar de facto.
Os historiadores franceses dos anos 1970 mostraram como a evolução da conjuntura e das relações sociais tinham, em tempo recorde, sobretudo entre agosto e outubro de 1917, erigido os minoritários de fevereiro em representantes exclusivos das “aspirações populares”. O académico René Girault descreveu este processo como dominado por duas questões, a terra e a paz. «A partir do fracassado golpe de Estado do general Kornilov (no final de agosto), a evolução acelerada dos sovietes em direção aos bolcheviques, marcada pela passagem de muitos sovietes urbanos, de soldados e até de camponeses para as maiorias bolcheviques, mostra que a constante oposição dos bolcheviques ao Governo Provisório (e à sua “encarnação” Kerensky) ganhou a adesão popular».
Logo que tomou o poder, o Partido bolchevique realizou as reformas prometidas “fazendo inclinar para o seu lado a grande massa do campesinato”, sabendo que “a confiança [que lhe conferiam] as massas urbanas era muito mais forte” do que a dos camponeses. A análise do historiador socialista juntava-se, sessenta anos mais tarde, (“As revoluções russas”, t. 5 da História económica e social do mundo, Léon Pierre, ed., Paris, Armand Colin, 1977, pp. 125-142), à do grande jornalista comunista norte-americano John Reed, autor de Os Dez dias que abalaram o mundo, obra-prima da “história imediata” da Revolução de outubro e das suas questões de classe, que é necessário ler e reler (Paris, 10-18, reedição, 1963).

A coligação imperialista contra os Sovietes
Foram essas transformações, realizadas com tanto de pragmatismo como de fidelidade aos princípios, de acordo com Girault, que asseguraram aos bolcheviques sozinhos (solidão que não quiseram) a vitória final numa “guerra civil” que, como a Revolução Francesa e todas as “guerras civis” posteriores, teve origem e financiamento principalmente estrangeiros (como o atesta o atual caso venezuelano). Não foi por os bolcheviques serem detestados ditadores sanguinários do seu povo que, depois de 1918, “as forças armadas de catorze Estados invadiram a Rússia soviética sem declaração de guerra”, tendo à cabeça “a Grã-Bretanha, a França, o Japão, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos”, mataram mais russos do que a própria guerra – 7 milhões de “homens, mulheres e crianças” – e causaram “perdas materiais estimadas pelo governo soviético em 60 mil milhões de dólares”, montante muito superior às “dívidas czaristas aos Aliados” e que não deu origem a “qualquer reparação” por parte dos invasores, de acordo com “o balanço” de Michael Sayers e Albert Kahn (The Great Conspiracy: The Secret War Against Soviet Russia [A Grande Conspiração: A guerra secreta contra a Rússia Soviética – NT], Little, Boni & Gaer, Nova York, 1946, traduzido em 1947). Como os aristocratas da Europa coligados, em 1792, para restabelecer em França o Antigo Regime e garantir para eles a sobrevivência dos privilégios feudais, os grupos estrangeiros que deitaram a mão ao império russo e os Estados ao seu serviço mergulharam novamente a Rússia em três anos de caos, para preservar os seus tesouros e conseguir outros novos, como a Royal Dutch Shell, que contava na ocasião levar a totalidade do petróleo caucasiano. Como na França, o Terror revolucionário foi apenas a resposta necessária aos assaltos externos.

A atual etapa de demonização da Rússia soviética (ou não)
Ao comparar as revoluções francesa e russa, o grande historiador americano Arno Mayer, professor de Princeton, confirmou estas análises de Sayers e Kahn, futuras vítimas do macartismo (http://www.independent.co.uk/news/obituaries/michael-sayers-writer-whose-career-never-recovered-from-being-blacklisted-in-the-united-states-2032080.html; https://en.wikipedia.org/wiki/Albert_E._Kahn). Se a França, concluiu ele, tinha sido uma “fortaleza sitiada” antes de a nova classe dominante poder “combinar-se” com os privilegiados contrarrevolucionários da França e de outros lugares, a Rússia soviética permaneceu uma pária assaltada desde o seu nascimento até a sua morte, e por razões independentes do caráter e dos modos de Lénine ou de Stáline (Les Furies, 1789, 1917, Violence vengeance terreur aux temps de la révolution française et de la révolution russe [As Fúrias, 1789,1917, Violência, vingança e terror no tempo da Revolução Francesa e da Revolução Russa], Paris, Fayard, 2002 ). Exceção, felizmente traduzida, na paisagem historiográfica.

Exceção feliz, por que os historiadores “reconhecidos” apresentam hoje a Revolução de Outubro como o golpe de Estado de um grupúsculo antidemocrático e sedento de sangue ou, na melhor das hipóteses, como uma empresa inicial simpática, confiscada por uma “minoria política a atuar no vazio ambiente institucional” e conduzindo, oh horror, a “décadas de ditadura” e ao “fracasso soviético [marcando] o fracasso e a derrota de todas as formas históricas de emancipação do século XX ligadas ao movimento operário”: estes julgamentos de Nicolas Werth e Frédérick Genevée, em “Que reste-t-il de la révolution d’Octobre? [O que resta da Revolução de Outubro?]”, “edição especial” de L'Humanité, publicado no verão de 2017, confirmam os arrependimentos oficiais do PCF sobre o seu passado “estalinista”, após a publicação do Livro Negro do Comunismo, de 1997, do tandem Stéphane Courtois (sucessor do falecido François Furet)-Nicolas Werth.

Eco significativo da mudança antissoviética e pró-americana dos manuais de história franceses do secundário, negociados a partir de 1983, que atingiu a URSS (Diana Pinto, “L’Amérique dans les livres d’histoire et de géographie des classes terminales françaises [A América nos livros de história e geografia das classes terminais francesas]”, Historiadores e Géografos, n. ° 303, março de 1985, pp. 611-620), depois a Revolução Francesa: foi a dupla obsessão de Furet, historiador sem arquivos, que “os de cima”, na França, nos Estados Unidos e na União Europeia, com a Alemanha em primeiro lugar, usaram tanto (história contemporânea ainda sob influência, Paris, Delga, o tempo das cerejas, 2012). Após a derrota da URSS e suas consequências – a extensão considerável da esfera de influência americana na Europa –, a criminalização da URSS foi tanto mais facilmente imposta, quanto quase todos os antigos partidos comunistas deixaram de lhe resistir.

A historiografia dominante está alinhada com a propaganda antibolchevique e russófoba desenvolvida desde o final de 1917. Mas pode-se, ainda, confrontar a ladainha dos grandes média e dos seus historiadores fetiches com as muitas obras científicas que descreveram corretamente a Revolução de Outubro. Lê-las, sobre o maior acontecimento do século 20, permite aspirar uma grande lufada de ar fresco. Não hesitem...

Notas
[1] ukase (formalmente ‘imposição’) é uma proclamação, um decreto, uma ordem ou um regulamento de natureza definitiva ou arbitrária - https://translate.google.pt/translate?hl=pt-PT&sl=en&u=https://en.wikipedia.org/wiki/Ukase&prev=search. – NT

* Annie Lacroix-Riz, professora emérita de história contemporânea, Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.

Artigo publicado em Le Drapeau rouge, órgão do Partido Comunista Belga, n.º 64, setembro-outubro 2017.

Tradução do francês de MFO

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