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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Um grande revolucionário

Morreu João Varela Gomes, coronel opositor à ditadura e ao fascismo

O coronel João Varela Gomes, um dos militares mais activos politicamente antes e depois do 25 de Abril, morreu na segunda-feira, em sua casa, aos 93 anos.
 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Com a História nos mentiram

Cláudio Torres: "D. Afonso Henriques não conquistou Lisboa aos mouros, foi aos cristãos" Carlos Torres

O arqueólogo, especialista em cultura islâmica, desfaz vários mitos da História. Defende que não houve invasões muçulmanas em massa na Pensínsula Ibérica.
As batalhas de Covadonga e Poitiers são um mito. Cláudio Torres olha para o buraco no tecto, por onde entra a pouca luz do sol de Inverno, e exclama: "Foi aqui que tudo começou". O "aqui" é a cisterna medieval, junto ao castelo de Mértola.
"Quando cá vim pela primeira vez, em 1976, trazido pelo presidente da Câmara, o Serrão Martins, meu aluno de História na Faculdade de Letras de Lisboa, havia uma grande figueira junto a este buraco. Espreitei lá para dentro, aquilo estava cheio de lixo, e logo na altura apanhei vários cacos de cerâmica islâmica".
Sentado no que resta das paredes de uma casa com 900 anos, Cláudio Torres aponta para o terreiro junto ao castelo: "Os miúdos costumavam vir para aqui brincar. Havia hortas, assavam-se galinhas, namorava-se às escondidas. Em 40 anos, mudámos isto: já desenterrámos o bairro almóada do século XII, o baptistério do século VI e o palácio episcopal. Se continuarmos a escavar, vamos encontrar o fórum romano".
Hoje com 78 anos, Cláudio Torres anda a escavar Mértola desde 1976. O arqueólogo instalou-se em definitivo com a mulher e as filhas na vila alentejana em 1985. Fundador e director do Campo Arqueológico de Mértola (trabalho que lhe valeu, em 1991, o Prémio Pessoa), é um dos mais conceituados investigadores da civilização islâmica no Mediterrâneo.
Em entrevista à SÁBADO, a propósito da edição 711 (o ano, segundo a História, que marca o início do domínio islâmico na Península Ibérica), o arqueólogo aproveita para desfazer vários mitos das invasões muçulmanas e da reconquista.
Com tantas e tão interessantes informações, decidimos dividir a entrevista em três partes, a publicar hoje e nos próximos dois dias. Na primeira, o arqueólogo aborda o que aconteceu realmente em batalhas como Covadonga e Poitiers (tidas como decisivas para travar o avanço muçulmano), assim como as conquistas de Coimbra e de Lisboa.
Na segunda parte, Cláudio Torres explica como era o actual território português em 711, fala da corrida ao ouro em Mértola e do grande contraste entre as gigantescas e opulentas cidades do sul e as urbes miseráveis como Paris e Londres, feitas de casas de madeira e ruas de lama.
Por fim, o arqueólogo aborda o seu percurso pessoal, as aventuras políticas no PCP, as prisões pela PIDE, a fuga de Portugal para Marrocos num barco a motor, o exílio na Roménia e em Budapeste e ainda o que Portugal poderá fazer para combater os radicais islâmicos do Daesh.
Cláudio Torres junto à cisterna medieval, debaixo do buraco
Cláudio Torres junto à cisterna medieval, debaixo do buraco "onde tudo começou". Foi ali, em 1976, junto às raízes de uma velha figueira, que apanhou os primeiros "cacos islâmicos"
No ano 711, os exércitos muçulmanos que vieram do Norte de África invadiram a Península Ibérica e cinco anos depois já dominavam todo o território pensinsular, antes sob alçada dos visigodos. Como foi possível essa progressão tão rápida?
As coisas não foram bem assim. A arqueologia tem uma linguagem diferente da história escrita. A história escrita é escrita por aqueles senhores que sabem escrever, enquanto a arqueologia vai buscar os restos dos que não sabem escrever. São coisas habitualmente contraditórias. Hoje sabemos, por causa da arqueologia, que não houve nenhuma invasão em 711, não vieram exércitos nenhuns.



Mas isso é o que se aprende nas aulas de História.
Pois, mas a realidade não tem nada a ver com o que é contado nos manuais.
Então, o que aconteceu?
Vejamos… a Península Ibérica, nesse século VIII, tem uma capital que é Toledo. E através dos restos do velho império romano ainda há ligações históricas ao Mediterrâneo, no sul há um conjunto enorme de portos ligados ao Mediterrâneo: Sevilha, Málaga, Almeria, etc, e no sul do que é hoje o território português há Mértola e, numa época mais tardia, Tavira. Pensou-se que Mértola era só uma zona portuária e que a grande cidade era Beja, mas hoje, por razões arqueológicas, estamos convencidos que não. Mértola era uma grande cidade, um grande porto marítimo. Ora, as grandes religiões do Mediterrâneo, o judaísmo, o cristianismo, o islão, que vieram da zona do actual Líbano e Israel, obviamente que não são nunca impostas pelas armas. São religiões de salvação, a sua força tem a ver com o Além. Quer dizer, as pessoas aqui vivem na miséria, são dominadas pelos ricos, mas a sua vingança é depois da morte. Aí, eles é que mandam e os ricos nem entram no Céu. Essas religiões estendem-se rapidamente para os mais pobres, para os dominados. E chegam cá pela dinâmica mercantil dos portos. Não podemos dizer que os cristãos invadiram e conquistaram a Península Ibérica e ela ficou cristã, ou, em relação ao islão, dizer que vieram os muçulmanos a cavalo e de camelo, conquistaram tudo e impuseram o islão, isso é completamente impensável e estúpido.

Mas não houve batalhas, não há nada que prove a vinda desses exércitos muçulmanos do Norte de África?
Houve sempre batalhas, mas isso não tem nada a ver com a expansão de religiões deste tipo. A religião islâmica veio através do comércio, dos portos. O diálogo é a base do comércio, e é através do diálogo que se expandem as ideias, as religiões, as coisas novas. O islão não é imposto à espadeirada. Os militares, quando vêm fazer uma conquista, matam, defendem-se, não há diálogo.

O arqueólogo começou a fazer escavações em Mértola há 40 anos. Em 1985 instalou-se em definitivo na vila com a mulher e as filhas

A Península Ibérica não foi ocupada militarmente pelos muçulmanos em 711?
Só mais tarde.

Quando?
No final do século XI, início do século XII. Aí é que há o primeiro império almorávida, e depois almóada, que inclui o Norte de África e a zona da Tunísia, e apanha o sul da Península Ibérica. É um império cujo domínio, tal como aconteceu com o romano e outros, é de uma série de tribos e de militares, não tem nada a ver com religiões.

Portanto, os muçulmanos não conquistaram a Península Ibérica no século VIII?
Não. Em 711 pode ter havido batalhas e escaramuças, mas isso é normal, houve sempre batalhas na zona do estreito de Gibraltar. Ao contrário do que se pensa, o estreito servia para unir, só começou a separar quando aconteceu a primeira invasão séria na Península Ibérica, feita pelos cristãos, pelos cavaleiros da Ordem de Clunny, no século XIII. Aí sim, vieram tropas, hordas militares, e entrou neste espaço o catolicismo, que era uma religião diferente da que estava cá, que era o cristianismo.

E que chegou quando?
Nos séculos V e VI havia na Península Ibérica dois tipos de cristianismo. Na zona de Toledo era um cristianismo ariano, da classe dirigente, dos visigodos. Mais a sul havia outro, ligado à Tunísia, à Alexandria, que era o donatismo, um cristianismo monofisita, de um só Deus, que ia contra a trindade, o Pai, Filho e Espírito Santo. Havia na altura uma guerra entre o sul do Mediterrâneo, donatista e monofisita,  com Bizâncio e Roma, que eram católicos. O sul da Península Ibérica era donatista. Sabemos isso com toda a certeza, até pela arqueologia.

Encontraram vestígios?
Encontrámos em Mértola um cemitério com lápides funerárias desses donatistas, que eram hostis à trindade. Esse cristianismo, que antecede o islão, já é monoteísta, com um só Deus.

E o que aconteceu na Península Ibérica?
Toda essa base cristã do sul, esse cristianismo monofisita converteu-se ao islão devido aos contactos com os portos do Mediterrâneo, com Alexandria, com a Tunísia, o Oriente. Sabemos isso do ponto de vista histórico e arqueológico. Em Mértola, temos os cemitérios dos antigos cristãos monoteístas, temos uma basílica paleo-cristã do século VI e por cima do cemitério cristão temos um cemitério muçulmano já dos séculos VIII e IX. Agora estamos a fazer esse estudo arqueológico, que é a ligação entre um pai que ainda era cristão e um filho que já era muçulmano. O filho quis ser enterrado junto do pai, e sabemos isso porque conhecemos bem os rituais de enterramento muçulmanos, com a cabeça virada para sul. Os resultados vão ser dados pela análise de ADN, mas certamente que vamos constatar que um pai cristão já tem um filho muçulmano. O que vem provar o fenómeno da continuidade.

Cláudio Torres:
Cláudio Torres: "O islão não foi imposto na Península Ibérica à espadeirada. Foi através dos comerciantes"

A entrada do islão na Península Ibérica faz-se pelo comércio?
Precisamente. É através dos comerciantes que vêm nos barcos, até porque é uma religião parecida com a cristã, de salvação, de diálogo.

Há uma convivência sadia entre cristianismo e islão?
O cristianismo monofisita, do Norte de África e do Sul da Península, vem desde o século V. E a maioria vai-se convertendo lenta e pacificamente ao islão. O que resta desses cristãos ainda existe hoje no Egipto, são os coptas, que são monoteístas. Em todo o norte de África, até há bem pouco tempo ainda havia comunidades fortes de donatistas, na Síria, no Líbano, no Iraque – estão agora a liquidá-los na Síria. Ainda conheci, no norte da Síria, várias aldeias em que cada uma ainda tinha a sua comunidade cristã. Viam-se as torres da igreja e o minarete. Só agora é que estão a rebentar aquilo tudo.

Nos livros de História destaca-se a batalha de Covadonga, em 720, em que Pelágio derrota os exércitos muçulmanos. Também é um mito?
O norte da Península Ibérica faz parte de outro território. Há uma espécie de fronteira a meio, que são as montanhas. O sul é Mediterrâneo, o norte é Atlântico, e a fronteira são a serra da Estrela, a serra de Gredos, Guadarrama, serras que vão até ao Ebro. E tudo é diferente do sul para o norte, as rodas dos carros, as técnicas de construção… as casas no sul são de taipa, no norte são de pedra. O norte tem uma ligação forte além-Pirenéus desde Carlos Magno. Ainda hoje existem os caminhos de Santiago, que fazem a ligação de Toulouse, na França, à Galiza. Já o sul, sempre esteve mais ligado ao Mediterrâneo.

O que é que aconteceu realmente em Covadonga? Houve tropas muçulmanas tão a norte?
Iam lá para saquear. Tal como vinham do norte saquear as cidades do sul, roubar mulheres, crianças, gado, riquezas. Toda a Idade Média é feita dos chamados ataques de saqueio, de grupos a cavalo que vão atacar as cidades, e por isso a cidade é defendida com muralhas, com tropas. E então eles atacam os arredores, roubam as casas, levam mulheres e crianças para escravizar.

Mas não eram ataques entre cristãos e muçulmanos? Podia haver cristãos e muçulmanos no mesmo bando de saqueadores?
Claro. Muitos dos bandos que iam atacar Santiago de Compostela, que foi saqueado por exércitos do sul, também tinham membros de tropas das Beiras e de Trás-os-Montes. Eram cavaleiros ligados aos senhores feudais do norte. Eram tudo menos muçulmanos. Iam roubar, só que em vez de irem para sul, iam para norte. Houve sempre cumplicidades nos ataques às cidades, porque mantinham uma certa autonomia, eram quase cidades-Estado, com o seu governo próprio e os seus poderes, as suas riquezas.


As batalhas de Covadonga e Poitiers são um mito. "O atravessamento dos Pirenéus por tropas muçulmanas nunca aconteceu"


Há também registos de uma grande batalha em Poitiers, em 732, em que se refere que é aí que as forças muçulmanas são impedidas de conquistar o Norte da Europa, numa batalha ganha por Charles Martel.
Isso é outro mito. Nessa altura, o atravessamento dos Pirenéus por tropas muçulmanas nunca aconteceu. Houve lutas, mas no sul de França. A França também teve os seus mouros, os albigenses ou cátaros, que foram conquistados pelo reino de França. Eram gente do Mediterrâneo, viviam no sul de França e tinham uma religião diferente dos do Norte. Eram considerados heréticos e foram atacados pelo rei de França, foram massacrados e o seu território foi conquistado e incorporado na França.

Tinham influência do Norte de África?
Eram do Mediterrâneo, estavam ligados ao comércio. As zonas de comércio são diferentes das zonas de camponeses. Havia trocas, tinha-se outra visão do mundo. Nessa altura havia o norte feudal, com os senhores agarrados aos seus castelos a dominar o território e o maralhal eram escravos ligados à terra. O sul era diferente: aí entra o comerciante, há contacto com os portos. E o sul de França também era assim.

Quando é que a religião começa a ser usada na reconquista?

Com a reconquista há um outro cristianismo a entrar na Península Ibérica, o católico, que vem de Roma. Houve tentativas, no século VI, de Bizâncio conquistar o Ocidente. Houve batalhas, Bizâncio conquistou parte do Norte de África, a actual Tunísia, e um pedaço da Península Ibérica, na costa do Mediterrâneo. Mas nunca conseguiu conquistar esta parte do extremo, do actual Algarve, que era hostil a Bizâncio.

A reconquista trouxe o catolicismo, através dos cruzados franceses.
A reconquista trouxe o catolicismo, através dos cruzados franceses. "O primeiro a falar alguma coisa de português ou parecido deve ter sido o D. Afonso Henriques"

Quando é que a fé entra na reconquista? No final do século XI, com as cruzadas?
Antes de irem para o Oriente, as cruzadas começam aqui, na Península Ibérica, com a Ordem de Clunny, que depois vai dar a grande Ordem de Cister, e a reconquista, em Portugal, é comandada pela Ordem de Cister, sediada em Alcobaça, onde está o grande convento. Onde se dá o grande choque é em Coimbra, é aí a fronteira do Mediterrâneo. A reconquista é nos séculos XI e XII, e nessa altura a cidade tinha um cristianismo ligado ao sul, moçárabe, que não tinha nada a ver com Roma. Portanto, em 1111 dá-se o choque, é aí que se dá a grande batalha, perdida pelos cultos cristãos do sul, em que Coimbra é conquistada pelos franceses da Ordem de Cister.

Comandados por D. Henrique?
Coimbra é conquistada pelo D. Henrique, o pai do D. Afonso Henriques, que falava francês. O primeiro a falar alguma coisa de português ou parecido deve ter sido o D. Afonso Henriques. Aquilo era gente de fora. Não tinham muito a ver com isto, nem sequer tinham ideia que havia aqui um cristianismo diferente. A conquista de Coimbra foi uma transformação total. Depois, pouco a pouco foram andando para sul. Por exemplo, D. Afonso Henriques não conquistou Lisboa aos mouros, foi aos cristãos, porque a maioria ainda era cristã. Aliás, há documentos de um cruzado inglês que refere que as pessoas na rua gritavam, antes de serem mortas: "Valha-me Santa Maria!"

Mas aprendemos na escola que D. Afonso Henriques conquistou Lisboa aos mouros. Isso não é verdade?
Claro que não. Lisboa era, na altura, uma cidade mais ao menos autónoma, tinha um território muito importante, que englobava toda a zona do baixo Tejo, que ia até Santarém. Era uma cidade importantíssima, porque permitia o contacto com o Norte, era o grande porto que permitia a navegação do Mediterrâneo para o Báltico: os barcos ficavam em Lisboa à espera que o vento virasse, porque o vento dominante é o noroeste, que é violento, e quando há muito vento nem pensar em seguir viagem, por isso os barcos às vezes ficavam retidos em Lisboa um mês. O mesmo acontecia no cabo de São Vicente, porque para dar a volta ao cabo era preciso que o vento virasse, os barcos ficavam lá, daí ter surgido ali a escola de Sagres.

Opinião

A unidade das esquerdas: Como? Porquê? Para quê?

A articulação entre forças de esquerda só é possível quando é partilhada a vontade de não articular com outras forças, de direita ou centro-direita.
O governo em funções em Portugal desde o final de 2015 é pioneiro em termos da articulação entre vários partidos de esquerda. É ainda pouco conhecido internacionalmente porque Portugal é um país pequeno, cujos processos políticos raramente fazem parte da actualidade política internacional, e porque representa uma solução política que vai contra os interesses dos dois grandes inimigos globais do aprofundamento da democracia que hoje dominam os media – o neoliberalismo e o capital financeiro global. Convém recapitular. Desde a Revolução de 25 de Abril de 1974, os portugueses votaram frequentemente na sua maioria em partidos de esquerda, mas foram governados por partidos de direita ou pelo Partido Socialista sozinho ou coligado com partidos de direita. Os partidos de direita apresentavam-se a eleições sozinhos ou em coligação enquanto os partidos de esquerda, na lógica de uma longa trajectória histórica, se apresentavam divididos por diferenças aparentemente inultrapassáveis. O mesmo aconteceu em Outubro de 2015. Só que nessa ocasião, num gesto de inovação política que ficará nos anais da democracia europeia, os três partidos de esquerda resolveram entrar em negociações para buscarem uma articulação de incidência parlamentar que viabilizasse um governo de esquerda liderado por um desses partidos, o que teve mais votos, o Partido Socialista. A inovação destes acordos consistiu em várias premissas: os acordos eram limitados e pragmáticos, estavam centrados em menores denominadores comuns com o objectivo de possibilitar uma governação que travasse a continuação das políticas de empobrecimento dos portugueses que os partidos de direita neoliberal tinham vindo a aplicar no país; os partidos mantinham ciosamente a sua identidade programática, as suas bandeiras, e tornavam claro que os acordos não as punham em risco, porque a resposta à conjuntura política não exigia que fossem consideradas, e muito menos abandonadas; o governo deveria ter coerência e, para isso, deveria ser da responsabilidade de um só partido, e o apoio parlamentar garantiria a sua estabilidade; os acordos seriam celebrados de boa-fé e seriam acompanhados e verificados regularmente pelas partes.
Os textos dos acordos constituem modelos de contenção política e detalham até ao pormenor os termos acordados. Basicamente, as medidas acordadas tinham dois grandes objectivos políticos: parar o empobrecimento dos portugueses, repondo rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas na base da escala de rendimentos, e travar as privatizações que, como todas as que ocorrem sobre a égide do neoliberalismo e do capital financeiro global, são actos de privataria. Os acordos foram negociados com êxito e o governo tomou posse num ambiente politicamente hostil, por parte do Presidente da República de então, da Comissão Europeia e das agências financeiras. A pouco e pouco a política executada em cumprimento dos acordos foi dando resultados, para muitos, surpreendentes, e ao fim de algum tempo muitos dos detractores do governo tinham de ser vergar perante os números do crescimento da economia, da descida da taxa de desemprego, da melhoria geral da imagem do país, finalmente ratificada pelas agências de notação de crédito. O significado de tudo isto podia resumir-se no seguinte: realizando políticas opostas às receitas neoliberais obtêm-se os resultados que tais receitas sempre anunciam e nunca conseguem e isso é possível sem aumentar o sofrimento e o empobrecimento dos portugueses. Antes, pelo contrário, reduzindo-os. De uma maneira mais directa, o significado desta inovação política é mostrar que o neoliberalismo é uma mentira, e que o seu único e verdadeiro objectivo é acelerar a todo o custo a concentração da riqueza sob a égide do capital financeiro global.
Dada a curiosidade que a solução portuguesa começa finalmente a suscitar a nível internacional, parece-me oportuno definir alguns dos parâmetros para que as articulações entre forças políticas de esquerda tenham êxito qualquer que seja o futuro da solução portuguesa.
Primeiro, as articulações entre partidos de esquerda podem ser de vários tipos, podem resultar de acordos pré-eleitorais ou acordos pós-eleitorais; podem envolver participação no governo ou apenas apoio parlamentar. Sempre que os partidos partem de posições ideológicas muito diferentes, e se não houver outros factores que recomendem o contrário, é preferível optar por acordos pós-eleitorais (porque ocorrem depois de medir pesos relativos) e acordos de incidência parlamentar (porque minimizam os riscos dos parceiros minoritários e permitem que as divergências sejam mais visíveis e disponham de sistemas de alerta conhecidos dos cidadãos).
Segundo, as soluções políticas de risco pressupõem lideranças com visão política e capacidade para negociar. É o caso do actual primeiro-ministro e dos líderes dos outros partidos de esquerda. Não podemos esquecer que o fundador do PS, o Dr. Mário Soares, na fase final da sua vida política, tinha advogado este tipo de políticas, ao contrário, por exemplo, do fundador do PS espanhol, Felipe Gonzalez, que se virou à direita com o passar dos anos e se manifestou sempre contra quaisquer entendimentos à esquerda.
Terceiro, as soluções inovadoras e de risco não podem sair apenas das cabeças dos líderes políticos. É necessário consultar as “bases” do partido e deixar-se mobilizar pelas inquietações e aspirações que manifestam.
Quarto, a articulação entre forças de esquerda só é possível quando é partilhada a vontade de não articular com outras forças, de direita ou centro-direita. Sem uma forte identidade de esquerda, o partido ou força de esquerda em que tal identidade for fraca será sempre um parceiro relutante, disponível para abandonar a coligação. A ideia de centro é hoje particularmente perigosa para a esquerda porque o espectro político se tem deslocado no seu todo para a direita por pressão do neoliberalismo e do capital financeiro. O centro tende a ser centro-direita, mesmo quando afirma ser centro-esquerda. É crucial distinguir entre uma política moderada de esquerda e uma política de centro-esquerda. A primeira pode resultar de um acordo conjuntural entre forças de esquerda, enquanto a segunda é o resultado de articulações com a direita que pressupõem cumplicidades maiores que a descaracterizam como política de esquerda. Neste domínio, a solução portuguesa, embora constitua uma articulação entre forças de esquerda e eu considere que configura uma política moderada de esquerda, a verdade é que contém, por acção ou por omissão, algumas opções que implicam cedências graves aos interesses que normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no domínio do direito do trabalho e da saúde. Tudo leva a crer que o teste à vontade real em garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nestas áreas no futuro próximo.
Quinto, não há articulação ou unidade sem programa e sem sistemas de consulta e de alerta que avaliem regularmente o seu cumprimento. Passar cheques em branco a um qualquer líder político no seio de uma coligação de esquerda é um convite ao desastre.
Sexto, a articulação é tanto mais viável quanto mais partilhado for o diagnóstico de que estamos num período de lutas defensivas, um período em que a democracia, mesmo a de baixa intensidade, corre um sério risco de ser duradouramente sequestrada por forças anti-democráticas e fascizantes.
Sétimo, a disputa eleitoral tem de ter mínima credibilidade. Para isso deve assentar num sistema eleitoral que garanta a certeza dos processos eleitorais de modo a que os resultados da disputa eleitoral sejam incertos.
Oitavo, a vontade de convergir nunca pode neutralizar a possibilidade de divergir. Consoante os contextos e as condições, pode ser tão fundamental convergir como divergir. Mesmo durante a vigência das coligações, as diferentes forças de esquerda devem manter canais de divergência construtiva. Quando ela deixar de ser construtiva significará que o fim da coligação está próximo.
Nono, num contexto mediático e comunicacional hostil às políticas de esquerda é decisivo que haja canais de comunicação constantes e eficazes entre os parceiros da coligação e que prontamente sejam esclarecidos equívocos.
Décimo, nunca esquecer os limites dos acordos, quer para não criar expectativas exageradas, quer para saber avançar para outros acordos ou para romper os existentes quando as condições permitirem políticas mais avançadas. No caso português, os detalhados acordos entre os três partidos revelam bem o carácter defensivo e limitado das políticas acordadas. A solução portuguesa visou criar um espaço de manobra mínimo num contexto que prefigurava uma janela de oportunidade. Recorrendo a uma metáfora, a solução portuguesa permitiu à sociedade portuguesa respirar. Ora respirar não é o mesmo que florescer; é tão-só o mesmo que sobreviver.
Décimo-primeiro, no contexto actual de asfixiante doutrinação neoliberal, a construção e implementação de alternativas, por mais limitadas, têm, quando realizadas com êxito, além do impacto concreto e benéfico na vida dos cidadãos, um efeito simbólico decisivo que consiste em desfazer o mito que os partidos de esquerda-esquerda só servem para protestar e não sabem negociar e muito menos assumir as complexas responsabilidades da governação.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Materialismo, idealismo e dialética: chamando as coisas pelos seus nomes

MaterialismoO senso comum faz uma grande confusão entre os termos materialismo e idealismo. Com influência, provavelmente, da moral religiosa, várias pessoas defendem a ideia de que o materialismo é o enaltecimento dos prazeres mundanos em detrimento de ideais mais “elevados”.
Essa ideia não é nova:
 “O filisteu entende por materialismo glutonaria, bebedeira, cobiça, prazer da carne e vida faustosa, cupidez, avareza, rapacidade, caça ao lucro e intrujice de Bolsa, em suma, todos os vícios sujos de que ele próprio em segredo é escravo; e por idealismo, a crença na virtude, na filantropia universal e, em geral, num ‘mundo melhor’, de que faz alarde diante de outros, mas nos quais ele próprio [só] acredita, no máximo, enquanto cuida de atravessar a ressaca ou a bancarrota que necessariamente se seguem aos seus habituais excessos ‘materialistas’ e [enquanto], além disso, canta a sua cantiga predileta: que é o homem? — meio animal, meio anjo.”
(ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. 1886)
Como demonstra o texto a seguir, essa visão não condiz com a realidade. Ele explica o ponto de vista de um dos principais teóricos do materialismo, o alemão Karl Marx. O materialismo (em especial o materialismo histórico e dialético) é uma concepção filosófica, não um preceito moral. O preceito básico seguido pelo materialismo é a observação da matéria, ou seja, do mundo real, sem o uso de hipóteses mágicas ou fantásticas. Ou seja, o materialismo defende que o mundo deve ser explicado a partir de si mesmo, até porque a matéria é a realidade objetiva e existe independente de nossa percepção ou consciência.
Leia também As teses de Marx sobre a filosofia de Feuerbach.


Karl Marx e o Materialismo Histórico-Dialético

João Junior Bonfim Joia Pereira
Fatima Aparecida de Souza Francioli

De acordo com Spirkine; Yakhot (1975a) é comum encontrarmos pessoas que acreditam que o materialista é a pessoa que se preocupa em acumular bens materiais e que idealista é a pessoa que luta por uma causa com objetivos que beneficie todos na sociedade. Para esses autores, ambas as interpretações estão equivocadas, pois o materialismo procura apoio na ciência, visto que a ciência nos proporciona a sabedoria que necessitamos para ver o mundo como ele realmente é. O materialismo também defende a superação da exploração da força de trabalho e das desigualdades sociais fixadas na sociedade capitalista. Em contrapartida, o idealismo alemão desenvolvido por Hegel (1770-1831), nas primeiras décadas do século XIX, considera que o homem se desenvolve por si mesmo, ou seja, a consciência humana independe da natureza, mas sim das ideias. Desta forma o idealismo hegeliano não levava em consideração as origens materiais para o desenvolvimento da consciência humana, diferente do materialismo que acredita que o homem se desenvolve na medida em que interage com a natureza e modifica os meios de produção material.
Na perspectiva materialista, é preciso conhecer a sociedade e seus aspectos para trabalhar na superação das desigualdades sociais. Nesse sentido, o materialismo considera que na sociedade tudo está ligado à natureza, visto que o homem age sobre ela para produzir seus materiais de consumo, no entanto, não somos produtos da natureza, mas sim da história humana. Por mais que exista esta ligação entre o homem e a natureza suas histórias são distintas e sobre isto Spirkine; Yakhot (1975b, p. 9) afirmam que “A história da sociedade distingue-se da história da natureza, em primeiro lugar, pelo facto de que a primeira é feita pelos homens enquanto ninguém faz a segunda”. Essa citação esclarece que na medida em que o homem transforma a natureza para fabricar seus materiais de consumo, modifica-se a si mesmo porque suas necessidades também mudam. Partindo desses princípios, podemos considerar que o materialismo histórico é a ciência filosófica que busca compreender a sociedade humana, estudando a evolução desta sociedade e como os homens a utilizam. Sobre isto Spirkine; Yakhot afirmam:
É o materialismo histórico, uma das componentes fundamentais da filosofia marxista-leninista, que elabora a teoria geral e o método de conhecimento da sociedade humana como sistema, estuda as leis da sua evolução e a sua utilização pelos homens. (SPIRKINE; YAKHOT, 1975b, p. 10, grifos do autor).
Para Spirkine; Yakhot (1975b) a essência da concepção materialista da história é o trabalho, visto que é por meio do trabalho que o homem produz os materiais necessários para sua sobrevivência. O homem faz sua história à medida que modifica os meios de produção e transforma a natureza, o homem evolui, muda a sociedade, trava combates.
Nas exatas palavras de Spirkine; Yakhot (1975b, p.13):
[…] O Marxismo mostrou que os homens faziam eles próprios sua história, que nenhuma força sobrenatural se dissimulava atrás do processo histórico. A história, escrevem os fundadores do marxismo, não fez nada, “não possui riqueza enorme”, não “trava combates”! É pelo contrário o homem, o homem real e vivo que faz tudo isso, possui tudo isso e trava todos os combates; não é a “história” que se serve do homem como meio para realidade – como se ela fosse uma pessoa à parte –, os seus fins próprios; ela não é mais que a actividade do homem na produção de seus objectivos.
Essa passagem nos dá a ideia de que a história nada mais é do que o resultado, as consequências e as mudanças geradas pelas ações do homem sobre a natureza e sobre os próprios homens. À medida que o homem modifica suas necessidades materiais, sua maneira de pensar e agir, ele gera mudanças no seu ser social que irá resultar em outras mudanças na forma de organização da sociedade, são essas mudanças que darão origem a história. Quando se fala em sociedade, para compreendê-la, é preciso buscar conhecer quem à compõe, ou seja, o ser humano como o agente que desenvolve a sociedade. Logo é necessário levar em consideração os homens, visto que os homens são os agentes de transformação histórica e social. Em virtude disso é possível considerar que:
Para compreender a marcha da história, não se deve tomar como ponto de partida a atividade do indivíduo, mas as ações das massas populares, das classes sociais. É o povo que sempre trabalhou e que trabalha ainda hoje. Desse modo, são as massas as verdadeiras criadoras da história, e não as forças celestes misteriosas ou os reis, os capitães e os legisladores. (SPIRKINE; YAKHOT, 1975b, p. 14)
Não restam dúvidas que são os trabalhadores que lutam para que as mudanças sociais e econômicas aconteçam. Na maioria das vezes lutam de forma inconsciente, mas são eles que estão trabalhando para manter o equilíbrio econômico da sociedade em que estão inseridos. Portanto, ao se analisar um fato histórico deve-se ater à classe operária como peça principal para o processo de transição
de um momento histórico a outro. Por essas razões é que Spirkine; Yakhot (1975b) reafirmam que não se pode ignorar a atividade dos homens, visto que são eles que constituem os processos históricos.
Como é amplamente conhecido, Marx e Engels desenvolveram a teoria do materialismo histórico e dialético, empregando um materialismo que unisse dialeticamente a realidade objetiva, os sujeitos e suas modificações. Esse entendimento sustenta que “[…] a dialética é a ciência das leis mais gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade e do pensamento, a ciência da ligação universal de todos os fenômenos que existem no mundo” (SPIRKINE; YAKHOT, 1975a, p. 20). Em outras palavras, a dialética é o estudo das mudanças que ocorrem na natureza, no homem e na sociedade no decorrer da história. Esta não vê o mundo como um objeto fixo, mas sim tem uma visão de que tudo está em constante movimento e transformação.
Na concepção de Marx, como na de Hegel, a Dialética compreende o que hoje se chama de teoria do conhecimento ou gnoseologia, que deve igualmente considerar seu objeto do ponto de vista histórico, estudando e generalizando a origem e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem da ignorância ao conhecimento. (LENIN, 1979, p.20)
Desta forma o processo de compreensão do conhecimento é voltado para a visão histórica do mesmo, considerando as mudanças e transformações que o mesmo passou, ou seja, para a dialética nada é permanente tudo está em constante transformação. Segundo Lênin (1979) o materialismo dialético busca compreender as mudanças do mundo a partir da realidade material, utilizando os critérios de análise da dialética para assim alcançar o conhecimento mais abrangente e detalhado da evolução. A dialética em uma concepção materialista não se limita em analisar e compreender as transformações e mudanças, mas sim busca compreendê-las a partir da realidade em que aconteceram.
O materialismo dialético, de base materialista, procura, por meio de um método dialético, compreender as transformações sociais que ocorrem na sociedade, sendo este inseparável do materialismo histórico. A partir do momento que ocorre uma transformação ou mudança também se transforma e muda a história por meio da ação do homem sobre a natureza. Sendo assim, o materialismo histórico e dialético é um método de análise do desenvolvimento humano, levando em consideração que o homem se desenvolve à medida que age e transforma a natureza e neste processo também se modifica.

LENIN, V. I. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. São Paulo: Global Editora, 1979 (Coleção Bases n.09)
SPIRKINE, A. YAKHOT, O. Princípios do Materialismo Dialético. S. São Paulo: Estampa, 1975a.
SPIRKINE, A. YAKHOT, O. Princípios do Materialismo Histórico. S. São Paulo: Estampa, 1975b.
Materialismo Hístórico-Dialético: Contribuições para a Teoria Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica
João Junior Bonfim Joia Pereira e Fatima Aparecida de Souza Francioli
Revista Germinal – Universidade Estadual de Londrina
v. 3, n. 2, p. 93-101, dez. 2011 
in LIVRE PENSAMENTO

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018


António Borges Coelho. “Lemos sempre o passado com os olhos do presente”

Miguel Silva Nuno Ramos de Almeida 20/02/2018 22:17
O povo que fez a primeira revolução burguesa no planeta perdeu o seu avanço nas malhas do capital rentista que
perduram até hoje
Já tinha entrevistado António Borges Coelho outras duas vezes: a primeira para um documentário sobre Álvaro Cunhal e a segunda para um documentário sobre a vida na clandestinidade. Creio que desde a última vez passaram quase dez anos. Aquilo que mais me fascina no historiador, para além da sua magnífica obra, escrita com paixão, em que parece que vemos respirar as vozes do passado, como se estivessem ao nosso lado, é a forma sempre viva e inteligente como fala das coisas. O gancho da atualidade da entrevista é a reedição, por parte da Editorial Caminho, da obra do autor e a saída para as livrarias de “A Revolução de 1383”. Numa anterior entrevista dada ao “SOL”, o historiador, nascido em Murça em 1928, fazia notar que “a História não é uma linguagem matemática”. Nela cabem várias  texturas. É uma sinfonia composta de vários sons e tocada em vários instrumentos, num resultado em que o todo é mais que a soma das partes, mas em que, para perceber essa mesma História, não se pode reduzir tudo ao barulho dos tambores. O homem que saiu do seminário convencido que saía para o inferno, mas a achar que antes isso que lá ficar, a quem um pedreiro deu a ler um volume d’“O Capital” de Marx, que tinha escondido numa lata enterrada num quintal, acha que a economia não é a única explicação da História e que a vida é muito mais rica que qualquer determinismo. Anos mais tarde, não participou na fuga dos dirigentes comunistas da fortaleza de Peniche para poder dedicar-se a escrever a história e tentar colmatar alguns silêncios demasiado ruidosos que a ensombravam. Como era possível que o islão tivesse estado 500 anos na península Ibérica e ninguém falasse disso?
   
Em que circunstâncias foi escrito “A Revolução de 1383”?
Parte da investigação foi feita na fortaleza de Peniche. Li e tirei notas da “Crónica de D. João i” e, como só podia receber um volume de cada vez, tirei notas exaustivas do primeiro volume e do segundo. Somando a leitura em Peniche de outros autores que escreveram sobre o tema,  trouxe muito material que depois me deu as bases, já em liberdade, para escrever “As Raízes da Expansão Portuguesa”. A PIDE mandou logo retirar o livro das livrarias e submeteu-me a um interrogatório, com a ameaça de me revogar a liberdade condicional. Que eu estava a atacar as teses do Estado Novo. Era um livro de História, não era um livro sobre o regime nem sobre o colonialismo português. No ano seguinte, em 1965, publiquei “A Revolução de 1383”. Integrou-se numa coleção muito inovadora da Portugália em que participavam novos historiadores. Eu tinha de me apresentar mensalmente à PIDE e, quando o volume saiu, fecharam-me numa cela blindada e sem janelas. Estive lá duas horas. No fim mandaram-me embora sem uma palavra. Isto só para dizer…
Que o “1383” era muito importante para a PIDE (risos). Esteve preso quantos anos mais depois da fuga de Peniche?
Mais dois anos.
Não devem ter sido dois anos fáceis.
Foram os piores anos, anos de provocação quase constante. Logo a seguir à fuga, fui levado para o Aljube e submetido à estátua [tortura em que os presos políticos eram obrigados a passar muitas horas em pé, sem se mexerem]. Estivemos na iminência de ir para a cadeia de Izeda, em Bragança. Tínhamos ficado quatro.
Na altura pesou no facto de não ter fugido o querer ficar na legalidade e publicar esses livros?
Sim, não queria ser funcionário do partido [PCP], queria ficar cá, escrever, dedicar-me à História e à literatura, era esse o meu grande objetivo.
Foi uma decisão difícil? O seu alfaiate, e julgo que padrinho de casamento, aceitou facilmente?       
(Risos) O meu padrinho de casamento foi o Alexandre O’Neill e nessa altura não podia falar comigo, mas o Cunhal tentou dissuadir-me uma série de vezes.  Sofri algumas represálias, consideraram que eu tinha abandonado o combate, já não era o homem que dedicava toda a vida à luta nem vivia só para ela.
Não considera que quando Cunhal consegue publicar, em 1975, um livro sobre as lutas de classes na Idade Média, ele vai retirar alguma inspiração ao seu trabalho?
É ao contrário. Ele escreveu o livro dele na Penitenciária e, quando chega a Peniche, já tem o livro, e eu levo o manuscrito escondido por baixo da camisola para a minha cela. Tirei uma série de notas na mesma tarde. Algumas delas estão citadas [em nota de pé de página] no capítulo sobre a agricultura portuguesa no séc. xiv. Dá-se precisamente o contrário, até por que a minha visão não é coincidente com a do Cunhal.
Como é possível que tenhamos em Portugal a primeira revolução burguesa e, ao mesmo tempo, um historiador, da envergadura de um Fernão Lopes, capaz de descrever outras realidades para além dos poderosos?
Na Europa desenvolvia-se a Guerra dos Cem Anos e o Grande Cisma do Ocidente, com um papa em Roma e outro em Avinhão. Portugal travara três guerra com Castela e Lisboa sofrera o incêndio dos arrabaldes ricos da cidade. Os principais dirigentes tinham sido derrotados e presos na batalha naval de Saltes e levados em escárnio para Sevilha, onde estiveram cerca de um ano presos. Viveu-se uma explosão revolucionária. Nas Cortes de Coimbra foi “eleito” um rei quase parlamentar, padre, e um homem letrado autor do “Livro da Montaria”. A sua descendência também tinha essa característica. Por exemplo, D. Duarte escreveu um livro bem original, “O Leal Conselheiro”; e D. Pedro, “A Virtuosa Benfeitoria”. O infante D. Henrique, um homem de ação, era um visionário. Fernão Lopes, muito provavelmente de origem mesteiral, esteve ligado desde cedo à casa real e à casa do infante D. Fernando, o mártir de Arzila e Fez. Fernão Lopes era tabelião e essa profissão foi essencial para o seu labor de historiador. Fez um trabalho extraordinário, ainda hoje me admiro como era possível escrever o que relatou. Como era possível o cronista pintar quadros como o do rei D. João i a beber urina para convencer um seu vassalo a vencer o veneno que trazia no corpo? Basta-lhe um brado para nos fazer entrar no bruaá das multidões.
O que é também extraordinário para um homem que vivia na corte é a perceção não só do aparecimento da burguesia, mas do povo na arena histórica.
Sem dúvida. Nessa altura, os concelhos tinham uma força muito grande e a nobreza não tinha a força que terá mais tarde. O clero estava dividido pelo Grande Cisma do Ocidente e perdeu o senhorio de algumas cidades principais. O golpe do mestre de Avis obedecia a uma estratégia que pressupunha a mobilização do povo. Esta mobilização foi fundamental na cidade de Lisboa. Durante uma semana, a cidade está sozinha em revolta e depois começam outras cidades e vilas a tomarem partido pelo mestre de Avis. 
Qual a razão que explica que, inicialmente, metade das terras que tomam partido pelo mestre sejam do Alentejo?
Tem a ver com o desenvolvimento de novas forças produtivas, de uma nova agricultura no sul, uma agricultura voltada para a exportação e para o mercado. Não era exclusiva, mas era dominante nos concelhos principais.
Apesar de Portugal ter feito a primeira revolução burguesa, porque é que esse avanço, em relação a outros países, se foi esfumando com o tempo?
O problema das revoluções é que trazem bandeiras que, mesmo vitoriosas, tendem a rasgar-se com o vento das tempestades. Há novas gerações que aparecem, que vêm à vida, muitas vezes a primeira ainda tem todo o orgulho em relação ao passado. Aljubarrota foi a derrota estrondosa da orgulhosa nobreza feudal peninsular. As vitórias marcaram várias gerações, mas cada geração quer deixar a sua marca. A dos filhos de Aljubarrota será a da arrancada para o Atlântico e para a expansão no norte e na costa de África.
Não é também a derrota no norte de África, na batalha de Tânger, e a prisão de D. Fernando que levou a isso, obrigando os portugueses a desistir dessa região?
Tânger foi um episódio, a expansão para a costa de Marrocos continuou e manteve-se até à segunda metade do séc. xviii. No séc. xv, a expansão para Marrocos seguia um impulso contraditório: a classe que vivia das rendas e não pagava impostos queria meter lanças em África para aumentar as rendas a cobrar no reino; Lisboa e as cidades e vilas suas aliadas queriam ocupar bases marítimas para chegar ao ouro africano e lançar-se no negócio dos escravos. A família real dividiu-se. O infante D. Pedro, um homem muito culto, autor da obra “Virtuosa Benfeitoria”, viajou na Europa e protagonizou uma segunda revolução, em Lisboa, em 1438. Como cabeça das cidades e das vilas, opôs-se à política guerreira. O homem da derrota de Tânger é o infante D. Henrique, é ele que promove as primeiras viagens e inicia o comércio e o rapto de escravos.
Foi feita uma história séria da escravatura ou, com a ideia dos brandos costumes e de que Portugal foi dos primeiros países a aboli-la, continua a ser uma questão pouco tratada?
É preciso ver que há uma historiografia do Estado Novo e outra depois da Revolução de Abril. A nova historiografia está atenta e até há especialistas na história da escravatura. Até 1974 era ignorada pura e simplesmente. E se aparecia era como uma pequena legenda a uma gravura, sem relevar o sofrimento dos escravos índios e africanos ou o seu papel na história de Portugal e do Brasil. O Brasil foi o suporte da Restauração e da economia portuguesa, e vai ligar-nos profundamente a Inglaterra, tornando-nos muito dependentes de Inglaterra.
De alguma maneira, esse processo já existia em 1383-1385, com a participação de tropas inglesas, nomeadamente em Aljubarrota….
A situação é muito diferente. As forças produtivas são muito diferentes no séc. xiv em comparação com as da Restauração ou nos finais do séc. xvii, com a descoberta do ouro. Normalmente tende-se a dizer que foram os ingleses que nos ajudaram, que fizeram a Restauração e que venceram em Aljubarrota. Isso não é verdade. Os ingleses participaram e nem sempre com sucesso. Na terceira guerra com Castela, no tempo de D. Fernando, foram muitos mortos pelas populações do Alentejo. Foram para o Alentejo assaltar e roubar porque não lhes pagavam o soldo, e a malta tratou-lhes da saúde. Depois houve o casamento de D. João i com a inglesa [Filipa de Lencastre], mas a Inglaterra ainda não era a potência em que se tornou no séc. xviii. Em Aljubarrota participa com a tática “pé terra”  [um conjunto de técnicas de defesa das forças de infantaria em inferioridade numérica], mas essas técnicas já tinham sido usadas por Nuno Álvares Pereira na Batalha dos Atoleiros.
Como é justificável que estando Portugal tão avançado do ponto de vista político em 1383-85, passe a ser dos países mais atrasados e que mais usaram a Inquisição, expulsando centenas de quadros preparados? Como é que estes dois países são possíveis e um chega ao outro?
Avanços, atrasos. Até ao final do séc. xvi,  Portugal mantém o monopólio da navegação pela rota do Cabo e as bases dum considerável “império” na América do Sul, nas ilhas atlânticas, nas costas de África e na Índia. D. Manuel foi um rei venturoso em todos os aspetos, quer como herdeiro da coroa, quer pela riqueza que veio do Oriente. Só que a economia e a sociedade têm o seu ritmo. D. Manuel converteu à força os judeus e deixou partir os muçulmanos. Os judeus convertidos foram segregados como minoria, tornaram-se cristãos-novos. Dedicavam-se ao comércio, aos ofícios e à finança. Despertavam a inveja e a cobiça. Na Europa do norte vingava a Reforma e multiplicavam-se as guerras religiosas. A Igreja Católica respondeu à Reforma na península Ibérica com o Concílio de Trento e com a Inquisição criada em Portugal pelo rei D. João iii. Durante mais de dois séculos, a condenação à fogueira e as expropriações levaram à fuga de milhares e milhares de cristãos- -novos e dos seus capitais, fortalecendo os países reformados. No início, os judeus convertidos foram equiparados em direitos aos outros cristãos, os velhos.
A Inquisição surge como uma forma de eliminar concorrência?
Já Gil Vicente tinha chamado a atenção: o paço em frade tornado não é frade nem é paço. No tempo de D. João iii, o paço está dominado pelo clero. Quais as consequências? D. João de Castro, que foi vice-rei da Índia, defendeu aquilo a que hoje chamamos o método experimental. Era amigo do rei e do infante D. Luís, e teve medo. O desenvolvimento científico foi travado pelos qualificadores do Santo Ofício e pelos teólogos tridentinos. Vai correr muita água pelos rios. Temos de esperar pelo marquês de Pombal e pelas revoluções liberais do séc. xix para mudar o rumo. Quando se dá a Restauração, a Inquisição é apanhada em contrapé. O inquisidor-geral  entrou na conspiração para matar o rei restaurador D. João iv. Consegue salvar-se e é recebido com uma manifestação de regozijo em Évora. Já o arcebispo, e chefe da conjura, morre na prisão. Os inquisidores arrogam-se o direito de chamar à Mesa um diplomata restaurador. Desencarapuçado, é ameaçado por falta ao respeito ao rei Filipe iv de Espanha, o nosso inimigo que combatíamos de armas na mão. Os restauradores querem  criar uma companhia de comércio [Companhia do Comércio do Brasil] e a Inquisição é contra. O Padre António Vieira e a maior parte dos jesuítas são a favor. Aprovada a companhia, os inquisidores recorrem ao Papa, que obstaculizasse à formação desta. No reinado de D. Pedro ii  houve força para suspender alguns anos a Inquisição, mas esse esforço foi gorado. Voltou a haver mais fuga de capitais. As riquezas geradas pelo Império Português foram alimentar a Holanda, Inglaterra, Itália e o Mediterrâneo oriental. As duas Companhias das Índias holandesas, por exemplo, foram formadas com muitos capitais originários de Portugal.
Esse atraso é todo devido ao domínio religioso?
Deve-se à formação de uma monarquia teocrática, à concorrência dos países que admitiam a liberdade de consciência, a uma sociedade em que o clero e a nobreza possuíam boa parte da terra e não pagavam impostos e em que metade do país mantinha uma estrutura produtiva quase feudal. Os concelhos tinham perdido a sua força, dirigidos em boa parte por fidalgos e fidalgos titulares. Estive recentemente a rever as provas do meu livro sobre a Inquisição de Évora. É brutal a razia sobre cidades e vilas feita pela Inquisição na época da Restauração. Só num ano prenderam 116 cristãos-novos em Elvas, cidade fundamental para a resistência ao inimigo espanhol. Num ano prenderam 116 pessoas, não da plebe, mas militares e gente com responsabilidades na defesa.
A Inquisição andou a fazer o trabalho dos espanhóis?
Esteve do lado da monarquia universal católica encimada pelos espanhóis, embora alguns inquisidores individualmente estivessem pela Restauração. Mas o núcleo da Inquisição estava do outro lado.
Porque é que a Inquisição teve um peso tão grande em Portugal e Espanha, comparados com outros países católicos?
Tem que ver com a correlação de forças internas e também com o facto de Portugal estar no cu da Europa. Está isolado. Por um lado, os conflitos que ocorrem na Europa central passam-lhe, em parte ao lado, mas, por outro lado, isso deixou-nos mais isolados e esse isolamento marcou bem a nossa história.
Pode-se dizer que a História que faz é marxista?
Evito o rótulo.
O rótulo é mau?
Não, o Marx não é mau. Li Marx com muito entusiasmo. Mas ele não é tudo, a ciência histórica tem regras. Para a sua escrita, não se pode recorrer à chapa cinco. Fui muito influenciado por Marx, mas mal de mim se não tivesse sido influenciado por outros.
O próprio Marx, que foi beber a muitos – ao socialismo francês, à economia política inglesa e à filosofia alemã – concordaria com isso. (risos)
Também bebeu nos gregos. A fila dos pensadores é imensa. Nenhum foi liquidado pelos que se seguem – combatido, ultrapassado, mas fica sempre uma marca.
De alguma forma pode dizer-se que a sua historiografia coloca os homens e mulheres que fazem a História nas condicionantes em que vivem e é mais uma história de estruturas do que uma história política de acontecimentos centrada nos príncipes e reis?
Eu sou o pior juiz daquilo que escrevi e escrevo. Não parto de ideias prévias, mas da construção dos factos. Na marcha dos homens no tempo, o corpo não está separado da mente, formam uma unidade material, e se as suas ideias repousam em suportes materiais ou na mente dos outros, a morte do corpo é a morte da mente produtora de ideias. E a mente, agora, está cada vez mais insubmissa. Depois do 25 de Abril, a historiografia foi submersa pela economia e a sociologia, mas não se pode subestimar a história política. O homem faz-se cada vez mais a si próprio, usando uma frase de Gordon Childe.
A História é-nos útil para nos preparar para o futuro?  
Os homens olham o passado histórico com os olhos do presente. Mas para irem cada vez mais ao fundo, têm de mergulhar profundamente no passado. E como é que isso se faz? Temos de passar uma parte da vida a ouvir o que disseram as vozes do passado e saber como é que reproduziam as suas condições de existência. O processo histórico segue a sua marcha não no sentido do progresso contínuo, como acreditavam os iluministas, mas com avanços, recuos, mudanças de rumo. São raros e luminosos os finais felizes, sobram o quotidiano pesado e as ruturas brutais.
Durante grande parte da história da humanidade, a Ásia foi dominante. Recentemente, num período que vai da descoberta das ciências, passando pela Revolução Industrial, até agora, o chamado mundo ocidental dominou. Há uma inversão deste movimento no presente?
Estamos à beira de isso poder consumar--se, mas não vou aventurar-me por aí. Não sou adivinho. Podemos analisar as forças que estão no terreno. E observa--se um desenvolvimento material velocíssimo na Ásia.
Não é adivinho, mas por vezes não é premente esse exercício de tentar projetar um futuro para além dos dados do presente? A ideia da utopia e de uma sociedade diferente não está também nessa capacidade?
Com a queda do Muro de Berlim decretou-se o fim das ideologias. Elas vivem e muito, muito lentamente, morrem. O decreto da morte das ideologias projetava consigo a ideia de uma nova utopia, a da paz universal, o fim da História. Multiplicaram-se as guerras por boa parte do mundo e volta de novo o pesadelo da aniquilação nuclear.
Como se qualifica politicamente?
(Risos) Anda a fazer perguntas que não deve… Continuo a situar-me num quadrante político que foi o da minha vida.
Que é?
Esquerda, se quiser. O termo é demasiado largo. Tenho muita dificuldade em definir-me. Sou um cético militante há muitos anos. Questiono tudo. Mas não estou claramente com as forças que tudo fazem para engordar cada vez mais os novos “ungidos”, que procuram por todos os meios aumentar as suas rendas, deixando a esmagadora maioria da população sem acesso a uma vida digna e ao conhecimento.
A sua fidelidade a um quadrante político tem muito de afetivo? 
Certo. Boa parte dos meus amigos foram e são aqueles que viveram comigo momentos únicos de sacrifício e de entrega aos outros. Esses tempos de entrega marcaram-me profundamente e as marcas vão durar até ao fim da minha vida.
Como vê hoje um homem como Álvaro Cunhal?
Um homem que foi fundamental no seu tempo e que, na fase final da vida, violou as regras do seu partido. E, de certo modo, manteve-o.
Está a dizer que ele violou, durante o período do “Novo Impulso” (resolução do comité central, aprovada durante a liderança de Carlos Carvalhas, que previa medidas políticas para “modernizar” o PCP e alterar algumas normas do seu funcionamento), as regras de não emitir a sua opinião fora da organização, o chamado centralismo democrático? 
Saiu ao terreno, correu o país inteiro dizendo que a solução do “Novo Impulso” não era a correta. Não há dúvida nenhuma de que, saindo ao terreno, fez com que o Partido Comunista se mantivesse e sobrevivesse.
O PCP, se tivesse mantido o “Novo Impulso”, teria acabado?
É provável. Dividir-se-ia talvez em pequenas capelas mais ou menos marxistas-leninistas. Esta é a minha visão, apanhada agora por si em cima do joelho.
Nessas capelas, estaria onde?
Talvez em nenhuma.
Mas pode dizer-se que é um compagnon de route (companheiro de caminho, termo em francês que se utiliza para designar gente que trabalha com os comunistas sem ser do partido)? 
Sim.
Em grande parte do mundo, o movimento comunista acabou. Acha que voltará sob outras formas e outros nomes? 
Lembro-me de Babeuf [jornalista que participou na Revolução Francesa e foi executado pelo seu papel na Conspiração dos Iguais]. Foi um comunista. O ideário tumultuoso dos socialistas e comunistas dos sécs. xix e xx, principalmente depois de Marx e da Revolução de Outubro, espalhou-se por grande parte da Terra. A queda do Muro de Berlim travou a fundo a sua marcha, mas a utopia não morreu. Ainda há pouco, lendo a regra dos frades beneditinos medievais, encontrei a consigna “dar a cada um segundo as suas necessidades”.
Foi militante comunista, casou na cadeia e, depois de libertado, não continuou a vida política ativa, mas como foi esse período do militante antes do historiador?
Foi muito intenso. Vim para Lisboa aos 20 anos, em outubro de 1948, sem dinheiro, sem casa, sem emprego. Até arranjar emprego foram os meus colegas estudantes que me mataram a fome. Aderi ao MUD Juvenil [organização juvenil de massas que congregava jovens oposicionistas, com o predomínio dos comunistas, e que chegou a ter 20 mil inscritos] e participo logo na campanha de Norton de Matos [general que se candidatou nas presidenciais pela oposição em 1949, que acabou por desistir dado não haver condições democráticas para participar nas eleições]. Rapidamente cheguei à comissão executiva do MUD Juvenil. De 1949 a 1955 dirigi o setor operário de Lisboa, a organização da Marinha Grande, do Alentejo e do Algarve. Quando a PIDE me foi caçar ao emprego, a rapaziada decidiu que eu tinha de passar à clandestinidade e que não podia voltar ao emprego. Estive dois anos como funcionário do MUD Juvenil, sem salário. Foram dois anos incríveis. Depois fui convidado para funcionário do Partido Comunista. Ao cabo de meio ano, duas brigadas da PIDE assaltaram-me a casa. Revistaram-me, encostaram-me à parede. De cima do poial da casa, antes de me empurrarem para a ramona, gritei, mas ao bradar “abaixo a PIDE!”, as pessoas inverteram a marcha com medo. Estive nas celas do Aljube (dois metros por um metro e dez) durante seis meses, com interrogatórios variados. Depois foi o julgamento. As sessões diárias começaram em dezembro de 1956 e prolongaram-se até 12 de junho de 1957. Da PIDE do Porto fui transferido com os meus companheiros para a fortaleza de Peniche…
Onde estava o Álvaro Cunhal
Estava. Eu levava um poema que lhe era dedicado e ao Militão Ribeiro [dirigente comunista que  morreu em greve de fome], como o célebre poema do Pablo Neruda [“A Lâmpada Marinha”, poema escrito pelo Prémio Nobel dedicado a Álvaro Cunhal e em protesto pela sua prisão]. Ele ouviu o poema e disse-me – eram tempos de crítica ao culto da personalidade –: “Eh pá, não podes escrever outra coisa?” Eu rasguei o poema. Tenho pena. Tivemos grandes conversas. Ele tinha uma grande abertura. Falávamos sobre tudo, até sobre arte e a arquitetura soviética. Teve sobre mim uma grande influência. Mas o relatório de Khrushchov ao xx Congresso do Partido Comunista Soviético tinha-me lançado numa outra órbita. Não quis continuar como funcionário do partido.
Não acha que faz falta um balanço equilibrado desses países, bastante diferente da hagiografia ou da demonologia?   
Não é só por causa das questões políticas que não queria lá viver, mas não aguentava aquele frio. Sou muito mediterrânico. Estiva lá um mês, com o Blasco Hugo Fernandes, e publicámos um livro, “No País dos Sovietes”. Eu escrevi a parte da reportagem, e ele as grandes análises económicas. Não revi as provas, ele é que o fez, e tinha lá coisas incríveis. Uma delas de que me recordo era esta, “no país dos sovietes também se morre, mas não com a injeção atrás da orelha”, uma coisa assim, ao que o revisor soviético acrescentou: “Na União Soviética também se morre, mas não com uma injeção atrás da orelha como no Ocidente.” (risos)Estava lá o Pescada, um tradutor magnífico que trabalhava ali, que me mandou avisar que era impossível que eu tivesse escrito aquelas coisas. (risos) E então eu exigi as provas, mandaram-me as provas e eu recusei o livro. Recorreram ao Cunhal, e ele deu-me razão. Depois eles sujeitaram-se a que eu passasse tinta sobre os livros que já estavam impressos, tinta em cima das passagens que considerava inaceitáveis.
A sério? (risos)
Está ali o livro (pega no livro e recita o que escreveu no prefácio): “Nasceu de uma viagem curta e longa…” Uma das coisas que me chocaram era não haver vida noturna. Um dos guias tinha estado em Moçambique, era um gajo esperto, convidou-me para jantar em casa dele. Saí pelas dez e meia da noite e cheguei à rua e pensei: “Agora como é que eu vou para o hotel?” O gajo mandou parar um táxi, ele devia ser do KGB, e ao meter-me no táxi disse: “Agora não vais dizer que o KGB te raptou.” (risos)
Porque escolheu o passado mais longínquo e não a história contemporânea para escrever?
Quando em Peniche me lancei na investigação historiográfica, comecei como quase toda a gente: quis começar pelo princípio. Sentia que a história de Portugal estava mal contada. O poder e os historiadores tinham feito uma história que era só da gente que estava em cima. E, afinal, um povo inteiro participa na caminhada ao lado dos outros povos, partilhando ou subjugando. Da leitura da “História de Portugal” de Alexandre Herculano concluí que havia uma lacuna brutal na história portuguesa, faltava o islão. Era inconcebível. Metia-se pelos olhos dentro que 500 anos em que aqui foram poder tivessem deixado marcas. Ninguém via nada, só viam romanos. Isso foi o ponto de partida, mas também há um outro ponto de chegada. Exigia muito mais informação, exigia equipas de trabalho. E haveria liberdade para escrever uma história do presente? Está quieto, ó mau. Admiro aqueles que hoje têm a coragem de fazer uma história honesta do presente. 

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Afeganistão, onde as pessoas são o que menos interessa, por António Abreu

Passado e presente de um país ainda com futuro. História, política e economia de uma região na encruzilhada de continentes e de civilizações, devastada pela geoestratégia imperial dos EUA.

 
Compreender um percurso de dor

Falar do Afeganistão, 16 anos depois de as Twin Towers ainda esperarem a verdade desse massacre fundador, é um percurso de dor e de uma consciência que se vai construindo, através das peças de um puzzle onde as pessoas parecem ser o que menos interessa.

Mas também constitui uma oportunidade para recuperar hoje elementos essenciais da situação no Afeganistão para se compreender como tudo surgiu e porque muito ainda se mantém.

Os atentados do Daesh em 29 Janeiro
A recente série de atentados terroristas no Afeganistão

Há duas semanas, no dia 29 de Janeiro, um ataque suicida perpetrado por cinco atacantes, contra um posto militar em Cabul, próximo da principal academia militar do país, deixou 11 soldados mortos e 15 feridos. Quatro dos atacantes foram mortos ou fizeram-se explodir e um quinto terrorista foi preso. O ataque foi reivindicado pelo Estado Islâmico (EI, Al-Qaeda e Talibans interpenetram-se num jogo de espelhos comandado por serviços secretos ocidentais que os criaram e/ou assessoraram).

Foi mais um de uma série recente de ataques no Afeganistão. No sábado anterior, dia 27, outros terroristas usaram uma ambulância-bomba para matar 103 pessoas e ferir outras 235. O chefe da missão da ONU no Afeganistão, Tadamichi Yamamoto, classificou o ataque como uma «atrocidade». No dia 24, um grupo tinha atacado a sede da ONG «Save the Children» em Jalalabad, provocando três mortos e 24 feridos. No dia 20, um ataque armado ao luxuoso Hotel Intercontinental de Cabul causara 19 mortos, 14 dos quais estrangeiros, provocando um grande incêndio em vários andares do prédio.

Tropas internacionais

Para compreender esta agressividade assassina crescente, o jornalista afegão Masud Waganas referia, há dias, existirem fortes rivalidades geopolíticas entre poderes, imperialistas e hegemónicos, relativas aos recursos naturais do Afeganistão e às rotas comerciais e de trânsito, atendendo à localização geoestratégica do país, tendo essas rivalidades crescido de forma significativa nos últimos anos.

 

O legado do Império Britânico, o regime democrático e socialista, a intervenção soviética e o regime Taliban

 Desde o século XVIII a Inglaterra deteve o monopólio da produção de ópio na Índia, que estendeu depois ao Afeganistão. No Afeganistão a resistência à ocupação malogrou uma primeira tentativa de os ingleses destronarem o rei Dost Mohammad. No início de 1842 os ingleses foram forçados a deixar Cabul e, na retirada para Jalalabad, deixaram na neve 17 mil corpos de militares e auxiliares. A Inglaterra torneou a questão cortando os acessos do Afeganistão ao mar, retirando-lhe o território para cá das cordilheiras do Hindu Kush.

 
Preocupada com o vizinho Império Russo, a Inglaterra realizou novas intervenções e, sem consultar os afegãos, acabou por assinar com aquele uma convenção, em 1907, que retirou parcelas ao país e resultou no afastamento dos Pashtuns, que integravam o Afeganistão desde tempos imemoriáveis.

 

Cerca de 90 anos tarde foi precisamente entre as rebeldes tribos Pashtun que nasceu o movimento Taliban, que, em poucos anos, ganhou a guerra civil e se estabeleceu no poder no Afeganistão. Desalojado do governo de Cabul pela intervenção americana, ainda hoje dominam boa parte do território afegão e mantêm em cheque o governo de Karzai e os seus aliados americanos.

 
Em 22 de Novembro de 1917, menos de uma semana após a Revolução Bolchevique, o governo soviético denunciou e tornou públicos os tratados assinados pelo governo czarista, anulando os entendimentos entre britânicos e russos acerca do Afganistão. O rei Amanullah declarou a independência do país em relação ao império britânico em 1915 e tentou fazer regressar os Pashtun ao país mas os ingleses reagiram com mais uma guerra anglo-afegã (a terceira em 80 anos) e o objectivo não foi atingido. Face às tentativas de reunificação pacífica, os britânicos, em 1920, enviaram uma força conjunta de dois mil ingleses e indianos que mataram quatro mil habitantes de aldeias no Noroeste.

 
O rei tornou-se um liberalizador: reforçou o exército; aboliu a escravatura e os trabalhos forçados; defendeu maiores liberdades para as mulheres, desencorajou o uso do véu e a opressão feminina; e introduziu oportunidades educativas para as mulheres.

 
Em 1924 ocorreram violentas revoltas dos islamitas conservadores na cidade fronteiriça de Khost, que foi dominada pelo exército afegão. A revolta foi uma reacção às reformas sociais de Amanullah, particularmente a educação pública para meninas e uma maior liberdade para as mulheres. O historiador afegão Abdul Samad Ghaus escreveu em 1988: «A Grã-Bretanha foi vista como culpada no caso, manipulando as tribos contra Amanullah na tentativa de provocar a sua queda.» Em 1929 grandes revoltas das tribos conservadoras levaram à queda do rei, com a suspeição geral que os ingleses tinham estado por detrás disso.

A intervenção norte-americana começa a ocorrer após a Segunda Guerra Mundial, em 1950, a partir da Directiva 68 de Segurança Nacional onde se afirmava que a URSS tinha o «desígnio do domínio do mundo». Em 1956 os EUA construíram em Kandahar um aeroporto internacional que servia a actividade de bombardeiros para a declarada eventualidade de um confronto com a URSS. No início dos anos 70 a CIA garantiu a retaguarda dos radicais islâmicos até ao início de 1973.

 
Entretanto no Afeganistão, em 1978, ocorreu uma revolução dirigida pelo Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA), comunista.

Em Agosto de 1979, um relatório classificado do Departamento de Estado afirmava: «os interesses maiores dos Estados Unidos (…) serão satisfeitos com o desaparecimento do actual regime afegão, apesar de quaisquer contratempos que isso possa significar para as futuras reformas sociais e económicas no Afeganistão.»

Zbigniew Brzezinski, assessor de segurança nacional do presidente Carter, admitiu, após a guerra contra os soviéticos, que a CIA fornecia ajuda secreta aos Mujahideen afegãos seis meses antes da invasão soviética. E salientou que a intenção dos EUA ao fornecer essa ajuda era «atrair os russos para a armadilha afegã». No dia em que os soviéticos cruzaram oficialmente a fronteira, afirmou ter escrito ao presidente Carter: «agora temos a oportunidade de dar à URSS a sua Guerra do Vietname.» A intervenção soviética no Afeganistão, a 26 de Dezembro de 1979, a pedido do governo afegão, envolveu as forças soviéticas no apoio ao governo marxista do PDPA contra os fundamentalistas islâmicos, principalmente Mujahideen.
Após a intervenção, os Estados Unidos foram rápidos em fornecer armas aos Mujahideen. Em Fevereiro de 1980, o Washington Post informou que eles estavam a receber armas provenientes do governo dos EUA. Os montantes foram significativos: 10 mil toneladas de armas e munições em 1983, que foram crescendo e atingiram 65 mil toneladas 1987, de acordo com Mohammad Yousaf, general paquistanês que supervisionou a guerra secreta de 1983 a 1987. Milton Bearden, chefe da estação da CIA no Paquistão de 1986 a 1989, que foi responsável por armar os Mujahideen, comentou: «Os EUA estavam a lutar contra os soviéticos até ao último afegão».

Estima-se que os EUA e a Arábia Saudita deram 40 mil milhões de dólares em armas e dinheiro aos Mujahideen fundamentalistas ao longo da guerra. O dinheiro foi canalizado através do governo do Paquistão, que usou algum dele para criar milhares de escolas religiosas islâmicas fundamentalistas (madrassas) para as crianças refugiadas afegãs que inundaram o país. Estas tornaram-se as instituições de formação para os Talibans.

Em Maio de 1988 a União Soviética começou a retirada das suas tropas do território afegão, uma retirada que só completou em Fevereiro de 1989. Porém, mesmo após a retirada, a guerra civil continuou no país até os rebeldes tomarem Cabul, em Abril de 1992, assassinando o presidente deposto, Mohamed Najibulah, que tivera o apoio dos soviéticos.

O país passou a ser uma república islâmica e, no ano seguinte, uma assembleia nacional, composta por várias facções rivais, líderes tribais e religiosos, aprovou a criação de um novo parlamento. Esta união entre as várias facções durou pouco tempo. Violentas disputas internas favoreceram a ascensão de uma nova força política, os Talibans, grupo fundamentalista islâmico financiado pelo Paquistão. A partir daí foram anos de destruição do país, da sua cultura, dos direitos dos cidadãos, de assassinatos em massa que conduziram o país ao que hoje existe: um país de privações alimentares; de habitação, saúde, e de direitos democráticos condicionados; com regras rígidas para as mulheres e destruído por sucessivas guerras.

 As potências ocidentais mantiveram-se impávidas e serenas. Para elas o importante tinha sido a queda de um regime alinhado com a URSS e a saída desta do país. Assistiram a anos de uma loucura indescritível e os EUA só lá entraram em 2001 por razões relacionadas com os seus interesses económicos de exploração das riquezas naturais e estratégicos de expansão para leste.

 

O regime socialista e as transformações no Afeganistão (1978-1992)

 Atendendo ao que fui estudando nestes anos, de entre as diferentes narrativas sobre este período subscrevo a de Dana Visalli, agricultora biológica norte-americana e comentadora de política internacional.

 

1. Legislação. Direitos.
O novo governo iniciou um programa de reformas que eliminou a usura, lançou uma campanha de alfabetização, eliminou a cultura do ópio, legalizou os sindicatos, estabeleceu um salário mínimo e diminuiu entre 20% e 30% os preços dos bens mais necessários, introduziu o ensino superior qualificado para os trabalhadores, aumentou os salários numa média anual de 26% e os salários mais baixos em 50%.

O Estado subsidiou, para os manter, os preços de bens básicos, como a gasolina, o gasóleo, o querosene («petróleo») ou o açúcar, enquanto outros, como o trigo, a farinha e a lenha, passaram a ser vendidos a preços fixos.
Quanto aos direitos das mulheres, o regime socialista concedeu a permissão para não usar véu, aboliu o dote, promoveu a integração das mulheres no trabalho (245 mil trabalhadoras, sendo 40% dos médicos mulheres) e a alfabetização (o analfabetismo feminino foi reduzido de 98% para 75%); 60% do corpo docente da Universidade de Cabul passou a ser de mulheres, 440 mil mulheres passaram a trabalhar na educação e 80 mil participaram na campanha de alfabetização. O mesmo aconteceu na vida política. As mulheres passaram a ter, por lei, direitos iguais aos dos homens.

A taxa de mortalidade de crianças menores de cinco anos diminuiu de 38% em 1960 para 30% em 1988, 80% da população urbana passou a ter acesso aos serviços de saúde e a expectativa de vida, de 33 anos em 1960, passou para 42. Duplicou o número de camas hospitalares. Aumentou em 50% o número de médicos. Pela primeira vez foram criados jardins-de-infância e casas de repouso para os trabalhadores.

Foi realizada a cobertura hospitalar e de centros de saúde, mesmo nas regiões rurais remotas. O acesso aos cuidados de saúde era gratuito e os medicamentos eram vendidos a preços acessíveis, e para os mais pobres, os medicamentos eram entregues gratuitamente.

Centenas de milhares de pessoas foram alfabetizadas e 63% das crianças frequentaram o ano escolar em 1985.

Foi fundada a Academia de Ciências (1980), o Instituto Pedagógico (1987) e universidades em Balha (1988), Herat (1988) e Kandahar (1990). O Afeganistão enviou para o espaço o primeiro e único cosmonauta da sua história, Abdul Ahad Mohmand, em 1988. Também desenvolveu a cinematografia nacional.

 Inicialmente a religião foi separada do Estado, mantendo-se a liberdade de culto. Mais tarde, foi criado um fundo estatal para a reparação e construção de mesquitas e anulada a expropriação de terras do clero. Em 1987, o Islão foi restaurado como a religião oficial do Estado.

 

2. Economia

 Depois da revolução, o governo Taraki nacionalizou sectores estratégicos da economia e a realizou uma reforma agrária, que incluiu a formação de cooperativas agrícolas e a expropriação de terras dos latifundiários e sua distribuição entre os camponeses (o limite da propriedade privada da terra era de seis hectares).

 A proporção de indústrias extractivas e transformadoras cresceu de 3,3% do PIB em 1978 para 10% em 1985. No mesmo período, o investimento na indústria nacional ultrapassou em 80% todos os investimentos nos vinte anos anteriores à Revolução. Em 1984, os investimentos em sectores estatais e mistos aumentou em 50%. Nesse ano foram criadas 100 novas empresas. Em 1984, as colheitas ultrapassaram significativamente as anteriores.

 O reforço do sector público não excluiu o sector privado. No governo Karmal foi fundada a Câmara de Comércio e Indústria, com o objectivo de reunir representantes de capitais privados de mais de vinte associações de comerciantes.

 Com a ajuda da União Soviética, no sector estatal da economia foram construídas cerca de 200 empresas, que passaram a fornecer a maior parte da produção global. Entre elas as empresas hidro-eléctricas e a Puli-Humri Naghlu, a fábrica de fertilizantes de azoto em Mazar-i-Sharif, uma empresa de panificação e outra de casas pré-fabricadas em Kabul.

A Checoslováquia abriu um alinha de crédito para ser construída uma linha de eléctricos em Cabul, equipadas minas de carvão e construída uma fábrica de cimento em Herat. Com créditos da Bulgária, foi construída uma grande exploração aviária, explorações de ovinos e de seda, outras empresas de aves, de produtos lácteos, tijolo e curtumes, e duas empresas para o sector das pescas. A Alemanha Oriental participou da criação de uma central telefónica automática em Cabul, que estabeleceu as linhas de comunicação e a ampliação do sistema de fornecimento de electricidade em várias cidades. A Hungria participou da construção de uma empresa farmacêutica.

Para além do comércio com o campo socialista, no início dos anos 80, o volume de comércio entre o Afeganistão e o Japão tinha aumentado 33% e ambos os países criaram a empresa comercial conjunta Nichi-afegã Lda. Também o comércio com a Índia aumentou em 50%.

A guerra civil viria a provocar graves danos para a economia afegã. Só até 1985 o número de perdas tinha sido de 35 mil milhões de afegãos (moeda). Com os Talibans todos os avanços do país foram destruídos e regressou-se a um profundo obscurantismo.

 

2001: a invasão norte-americana

 Em 2001, os EUA e a NATO invadiram o Afeganistão, fizeram dele um protectorado, com dirigentes que, apesar de formalmente eleitos, foram sendo afastados em função dos «superiores interesses dos EUA». O caso mais notório foi o de Hamid Karzai, que foi presidente do país entre 2004 e 2014, afastado por não aceitar o estatuto do Paquistão como base de grupos terroristas como os EUA queriam.

Exército
Os EUA ensaiaram para 2014 uma «saída» das suas tropas que acabou por se traduzir apenas num outro modelo de protectorado, com os Talibans e outros grupos terroristas a servirem os interesses dos estado-unidenses de desestabilização regional, incluindo em outros países, como a Síria ou as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central que fazem fronteira com a Rússia e a China.
Em 30 de Setembro de 2014, o Afeganistão, os Estados Unidos e a NATO assinaram um acordo para justificar formalmente a presença de um contingente militar limitado no estado da Ásia Central, após a retirada formal das forças internacionais. Uma força de seguimento de cerca de 12 mil soldados permaneceu em 2015 em tarefas de treino e apoio. No final desse ano, cerca de 41 mil soldados da NATO permaneciam no Afeganistão lutando contra a revolta de Talibans, ao lado de soldados e polícias afegãos, com o mandato de missão de combate da NATO a terminar em Dezembro. Os EUA falharam redondamente o seu programa de formação de polícias e os afegãos passaram a confiar ainda menos neles.

Em Agosto passado Trump anunciou ir continuar a guerra no Afeganistão. Em reacção, um porta-voz dos Talibans condenou essa decisão de Trump e disse, citado pela France Press, que o grupo terrorista continuaria a jihad no país, afirmando ainda que o país se tornaria num «cemitério» dos EUA após a decisão de Trump de enviar mais tropas para o Afeganistão. Na sequência disso, o secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, declarou que o movimento Taliban seria incapaz de alcançar uma vitória militar no Afeganistão mas que, no entanto, poderia receber um estatuto legal através de negociações…

A nova estratégia dos EUA no Afeganistão inclui a expansão de forças de autoridade para atacar terroristas. No entanto, Trump disse que os Estados Unidos não revelariam o número de tropas ou quaisquer futuros planos de acção militar no Afeganistão.

 A vaga de atentados em Janeiro de 2018 revela a falência dessas e anteriores estratégias e a liberdade de circulação dos Talibans, al-Qaeda e Estado Islâmico.

 

Os objectivos geoestratégicos

 Apesar de 16 anos de uma pesada presença dos EUA, a fim de estabelecer a sua hegemonia no Afeganistão e para além dele, a influência de potências regionais como a Rússia, China, Irão, Paquistão e a Índia está a crescer. No entanto, os EUA mantêm um papel desestabilizador na região, tendo em vista estabelecer um domínio imperial alargado numa situação internacional onde já não têm a mesma capacidade de influência.

Esta estratégia tem girado em torno de variantes da chamada Doutrina Wolfowitz (subsecretário de Estado de George Bush pai), que visou «prevenir o surgimento de um poder regional ou global que pudesse desafiar o estatuto hegemónico único por parte dos EUA» e a sua cavalgada até à China, para garantirem recursos energéticos e minerais que implicariam uma ocupação logística de uma vasta parte da Eurásia, com governos de fidelidade garantida.

Era um sonho louco, desmentido após as invasões do Iraque e do Afganistão, de várias «revoluções coloridas», da introdução do «caos» como melhor forma de gerir o terrorismo, do narcotráfico, da exploração sem regras de petróleo e riquezas minerais. Evitar um trajecto comercial normal entre países, para o deixar entregue a bandidos que fazem a administração desses imensos espaços, destruiu o Afeganistão e outros países, como a Líbia. Mas há fortes realidades que hoje pesam em sentido diferente desta cavalgada diabólica.

Dezasseis anos depois da guerra mais longa da sua história, os EUA no Afeganistão tomam atitudes que dependem mais do que entendem ser a necessidade de reagirem à derrota na Síria, podendo acrescentar-se-lhe a do Iraque, onde hoje é significativa a influência da Rússia e do Irão, com a China mais distanciada, apesar de já estar a fechar contratos com o Afeganistão.
Trump pode estar a transformar esta guerra «em aberto» desde 2001 numa guerra em termos qualitativos e quantitativos muito diferentes da dos seus antecessores na Casa Branca. Mas está limitado, pese embora a pressão do Pentágono para o aventureirismo sem medir consequências.

 

A CIA, os terroristas e o controlo da heroína

 Vale a pena lembrar aqui a história do comércio de drogas do Crescente Dourado, que está intimamente relacionado com as operações secretas da CIA na região desde a guerra contra os soviéticos e as consequências que isso teve.

 Ate à revolução socialista a cultura do ópio (papoila) era vasta e controlada pelos ingleses. Depois da revolução, a produção de ópio foi proibida no Afeganistão e no Paquistão, e foi dirigida a pequenos mercados regionais. Não existia produção local de heroína (Alfred McCoy, «Drug Fallout: quarenta  anos de cumplicidade da CIA no comércio de narcóticos», The Progressive, 1/08/1997).

A economia afegã de narcóticos foi um projecto cuidadosamente preparado pela CIA, apoiado pela política externa dos EUA e intimamente relacionado com as operações secretas da CIA na região, desde a guerra contra os soviéticos.

Conforme revelado nos escândalos Irão-Contra e Bank of Commerce e Credit International (BCCI), as operações secretas da CIA em apoio aos Mujahideen afegãos foram financiadas através da lavagem de dinheiro da droga. O «dinheiro sujo» foi reciclado – através de várias instituições bancárias (no Médio Oriente), bem como através de empresas anónimas da CIA, com «dinheiro encoberto» usado para financiar vários grupos insurgentes durante a guerra contra os soviéticos.

 Em «The Dirtiest Bank of All» pode ler-se que «os EUA queriam fornecer aos rebeldes Mujahideen no Afeganistão mísseis stinger e outros equipamentos militares, E precisavam da cooperação total do Paquistão. Em meados da década de 1980, a estação da CIA em Islamabad era uma das maiores estações de inteligência dos EUA no mundo. A revista Time de 29/07/1991, a páginas 22, revelava que «os EUA se voltaram para o tráfico de heroína no Paquistão», citando um oficial dos serviços secretos dos EUA.

O estudo do investigador Alfred McCoy confirmou que, depois da operação secreta da CIA no Afeganistão em 1979, «as fronteiras do Paquistão e o Afeganistão tornaram-se o maior produtor de heroína do mundo, fornecendo 60% da procura dos EUA. No Paquistão, a população viciada em heroína passou de quase zero em 1979 para 1,2 milhões em 1985, um aumento muito mais acentuado do que em qualquer outra nação».

E que «os activos da CIA controlaram novamente esse comércio de heroína. À medida que os guerrilheiros Mujahideen ocuparam território dentro do Afeganistão, pediram que os camponeses plantassem o ópio como um “imposto revolucionário”. Em toda a fronteira no Paquistão, líderes afegãos e grupos de bandidos locais, sob a protecção dos serviços secretos do Paquistão, faziam funcionar centenas de laboratórios de heroína. Durante esta década de 1979 a 1989 de tráfico aberto de drogas, a Agência de Controle de Drogas (DEA) dos EUA em Islamabad não levantou processos ou fez prisões».

Continua McCoy: «funcionários dos EUA recusaram-se a investigar acusações de heroína por parte de seus aliados afegãos porque a política de narcóticos dos EUA no Afeganistão foi subordinada à guerra contra a influência soviética. Em 1995, o ex-diretor da CIA em operação no Afeganistão, Charles Cogan, admitiu que a CIA realmente sacrificou a guerra contra as drogas para fazer a Guerra Fria.»

 

As vastas reservas de minerais e gás natural do Afeganistão: a cereja em cima do bolo que os afegãos estão impedidos de comer
De acordo com um relatório conjunto do Pentágono, do U.S. Geological Survey (USGS) e a USAID, revelaram-se no Afeganistão em 2010 reservas de minerais «anteriormente desconhecidas» e inexploradas, estimadas na ordem dos mil milhões de dólares («EUA identificam grandes riquezas minerais no Afeganistão», New York Times, 14/06/2010; veja-se também a BBC, 14/06/2010): «os depósitos anteriormente desconhecidos – incluindo grandes veias de ferro, cobre, cobalto, ouro e metais para industrias críticos como o lítio – são tão grandes e incluem tantos minerais que são essenciais para a indústria moderna, que o Afeganistão poderia eventualmente ser transformado num dos mais importantes centros mineiros mundiais, acreditam os funcionários dos Estados Unidos.»

Um memorando interno do Pentágono, por exemplo, afirma que o Afeganistão poderia tornar-se a «Arábia Saudita do lítio», uma matéria-prima chave na fabricação de baterias para laptops e blackberrys.

A vasta escala da riqueza mineral do Afeganistão foi descoberta por uma pequena equipa de funcionários do Pentágono e geólogos americanos. O governo afegão e o presidente Hamid Karzai foram posteriormente informados, segundo afirmaram autoridades americanas.

Embora possa levar muitos anos para desenvolver uma indústria de mineração, o potencial é tão grande que funcionários e executivos da indústria acreditam que isso poderia atrair investimentos pesados mesmo antes de as minas se tornarem lucrativas, proporcionando a possibilidade de empregos que acabassem com o estado de guerra.

O valor dos depósitos minerais recém-descobertos diminui o peso relativo da economia de guerra do Afeganistão, baseada em grande parte na produção de ópio e tráfico de narcóticos, e poderá abrir perspectivas para uma economia livre dessa actividade criminosa.

 
Rematemos, regressando ao título deste artigo: «Afeganistão, onde as pessoas parecem ser o que menos interessa».
 
Originalmente publicado em www.abrilabril.pt
 
Este artigo encontra-se em: antreus http://bit.ly/2GmThtp

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