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segunda-feira, 29 de junho de 2009

O meu comentário à morte de M. Jackson saíu frustrado na tentativa de fazer ironia fina (além de um «têem» que era para ser «têm»). Juro que era ironia, os elogios ditirâmbicos vinham nos grandes meios de comunicação global (com sede na cabeça do Império). Sincera é a margura que sinto todos os dias que me lembra a invasão e a ocupação continuada do Iraque, a destruição de uma nação independente, de uma civilização multimilenar, de uma região do globo pela qual aprendi em petiz a amar a História e a arqueologia. Tem toda a razão o Moedas Duarte. Aqui fica o reparo.
Os recauchutados liberais centristas (??) que sempre apoiaram o PS português andam mui optimistas a a trabalhar a nova ideologia norte-americana, antes do colapso e depois das catástrofes. Já têem um novo messias, o líder mundial que não traz apenas um novo estilo mas uma nova governação para o Império. Cá temos outra vez o cesarismo (de César!). Boa gente esta para quem o Bush foi um mero interregno a esquecer depressa. O Império é bom, somente necessita de um novo fôlego. Gente séria estes académicos que ainda acreditam que o liberalismo é de esquerda.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Mikhael Jackson

Aqui registo a minha homenagem a um genial inovador da música ligeira, com um forte contributo na mudança de costumes. A sua morte prematura é profundamente lamentável. Aproveito para homenagear os anónimos inocentes que morrem todos os dias nas guerras do Iraque.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

ROLANDO E JASMINA



Chamava-se Rolando, porque o pai acabara de ler La Chanson de Roland, chegara mesmo à página derradeira no instante sublime em que uma cabeça surpreendida assomara do útero ensanguentado da mulher. Contrariou, assim, a vontade desta, que preferia Romão, pois que o vira, entre gemidos e suores, como uma romã rubra a rasgar-lhe as entranhas. E não foi nem a primeira, nem a última vez, que o homem a contrariou.
Rolando fez-se garoto aprendiz de adulto; jogava aos botões e aos berlindes, mas perdia sempre, sem rancores, ora porque se distraía pelo pipiar súbito de um pardal do telhado, ora porque o azul esverdeado de um berlinde evocava, num repente fresco, o marulhar das ondas pelas noites de verão, e o odor imperioso das sereias de algas.
O pai ensinou-o a ler, ainda antes de poder frequentar a escola. Lia para ele romances do Walter Scott e o rebento franzino que o escutava com os olhos muito abertos para dominar o sono não entendia uma palavra mas imaginava as cenas.
Começou a ler de repente, um dia depois do pai morrer. Foi levado para a terra áspera da sepultura da família, numa vila longínqua, nas arribas do monte, entre amendoeiras e olivais ; imobilizara-se-lhe o coração quando dormitava, sobressaltado, morrera literalmente do medo que a mulher lhe morresse primeiro num hospital de Coimbra para onde uma ambulância a levara na tarde desse dia. O pai partiu, a mãe por cá se arrastou algum tempo mais, emudecida e pálida e leve como os lírios que murchavam, eternamente esquecidos, sobre uma mesinha de pau de limoeiro na sala de jantar. Sempre se suspeitara que o seu amor mais substantivo era todo dirigido não para Rolando, mas para o filho mais velho, o primeiro de uma longa série da qual desapareceram dois prematuramente. Rolando pressentira desde sempre essa realidade definitiva e dolorosa, como uma agulha que dentro dele houvesse sido abandonada no instante em que nasceu.
Assim cresceu. Sempre encostado às palavras, como se estas viessem suprir a ausência do abraço oportuno que lhe faltou quando dava os primeiros passos, quando, em seguida, aprendeu a correr sem se estatelar no chão bravio da horta, na areia miúda e cortante como vidro do caminho tosco que unia a casa rústica ao largo adro da igrejinha do lugar. Apaixonou-se pelas palavras no mesmo dia em que proferiu as primeiras. Prestava absorta atenção infantil ao linguajar dos vizinhos, arrebitava a orelha aos impropérios do pastor que atravessava todas as tardes com o rebanho a rua principal, repetia baixinho os vocábulos desconhecidos que o pai escolhia a propósito quando o médico da vila que também era o boticário era convidado para jantar. O pai nunca falava do pároco, na presença dos filhos, nem o cumprimentava quando com este se cruzava, por razões ocultas de quezílias antigas, ou simplesmente para demonstrar o seu ponto de vista inabalável de que os padres são parasitas e a religião era coisa perfeitamente dispensável. Apesar disso, o padre, velho e avermelhado pela pinga, quando via o rapazito, chamava-o com voz avinagrada e fazia-lhe festas na cabeça. Oficiou gratuitamente uma missa em memória do mestre-escola que o desprezara toda a vida.
Rolando foi subindo em altura, surripiando metáforas dos curtos discursos de um pai cada vez mais ausente, caçando no ar fumarento da cozinha de granito qualquer metonímia que esvoaçasse entre o estralejar do braseiro e o perfume das giestas, á hora de escutar a rádio.
À pancadaria que distraía os fedelhos que, entrementes, se tornaram rapagões de pêlo hirsuto, preferia uma linguagem limpa e clara, oferecida como uma donzela impoluta de brancas carnagens, com que sonhava com os olhos postos na vidraça fosca da janela do quarto onde dormiam três irmãos, uma donzela de olhos tão escuros e profundos como as noites solitárias que ele temia e desejava, febril, cobrindo a cabeça com o lençol de linho, escutando o tape-tape das grandes ratazanas no velho sótão, o alvoroço das galinhas despertadas do sono pelos gatos matreiros, o latejar do universo inteiro, silencioso como um morto-vivo, que o espiava sob a cama de ferro, ou dentro do armário.
Logo que o pai foi a enterrar, fez-se homem e era ainda uma criança. A mãe, auxiliada por um irmão que há muito se instalara em África, pegou nos filhos e para lá partiu, antes que as dívidas lhe levassem a casa. Nesta ficaram os livros, aqueles mundos, ora bravios, ora ternos, mas sempre genuínos, que fizeram o mundo de Rolando.
A prolongada viagem, em um dos paquetes que outrora faziam regularmente carreira entre a metrópole e o ultramar, carregados de colonos campónios e trouxas modestas, foi, para o pequeno Rolando, uma iluminação: a grandiosidade do oceano que lhe permitiu compreender precocemente a relatividade de todas as coisas, a formidável esperança, embora ingénua, daquelas gentes empurradas pela miséria para a terra prometida, o choque agradável com as novas cores e as sonoridades estranhas do novo mundo em que desembarcaram. A felicidade seria completa, não fosse o silêncio austero e sombrio da mãe.
No liceu, quando a professora ensinava os binómios, apurava ele o ouvido para o rumorejar das acácias em flor, o resfolegar dos búfalos esmagando parasitas na casca dos embondeiros; com as equações de 2º grau, deixava-se levitar sobre a asa finíssima de uma nuvem que passava, viajando em oitenta horas sobre o estuário do Rio Amarelo, empoleirado no mastro de um junco de piratas. Com a batalha de Ourique, dava rédea solta ao alazão branco, rompendo a muralha de armaduras e músculos de moiros tisnados e esbeltos, com alaúdes a tiracolo.
Às coisas preferia os nomes. Por essa razão mudou o nome à sua amada : chamou-lhe Jasmina. A seguir aos amores instantâneos de uma adolescência breve, conhecera-a em uma comunidade tresloucada e libérrima de hippies, de saias compridas com as cores de todos os frutos do mundo, grinaldas de flores nos cabelos e adornos de vidro balouçando sobre os peitos levantados. Olhou-a nos olhos disfarçados de outono e apaixonou-se imediatamente, como se um tremor de terra engolisse para sempre os amores passadiços.
Em todas as suas vidas comuns, tão unidas que fizeram uma única, nunca lhe prometeu carros e jóias, em momento algum; sempre metáforas de jade e marfim, pedaços da sala de audiências do imperador Kublai-Khan, aliterações como a prece de um abraço que apetece, anáforas sobre o “Marco que conhece a tua casa, mas a minha não”; anagramas misteriosos que Jasmina decifrava vagarosamente, sentada nos joelhos trémulos de Rolando, com uma cândida inocência que somente o suave ondear das ancas desmentia.
Jasmina acompanhou-o por todo o lado, dissimulando muito bem o facto de que eram ambos que se acompanhavam. Abandonaram o oriente africano e partiram para outros azimutes. Transportavam sempre quase nada, excepto afectos e palavras. Quando os seus olhos nocturnos exigiam que os corpos repousassem, no delta do Nilo, nas dunas de um deserto, nas margens lodosas do Amazonas, Rolando aterrissava obedientemente, recolhendo as asas de púrpura, macias como sumaúma, para que Jasmina adormecesse sem susto.
Com uma palavra armou um laço e surpreendeu uma corça azul. Jasmina achou muita graça. Com outra, teceu uma teia, e enrodilhou o tempo num casulo de seda. Com mais outra, fabricou uma piroga, e desceram abraçados um aluvião de lágrimas. Córregos, arroios, levadas, rios e marés-cheias faziam deles intrépidos marinheiros, Jasmina com um lenço vermelho à volta do pescoço, Rolando com boina preta e estrela e fuzil de comandante.
Nunca Rolando atirou à cara de Jasmina uma simples hipérbole. Jamais o corpo adjectivado de Jasmina fora albergue de outros substantivos sem que fossem submetidos ao teste da experiência. Ainda que ele e ela fossem dois, jamais se permitiram que os contrários cavassem a contradição.
Entretanto, o Tempo implacável foi girando a roda da vida. Aos cabelos negros sucederam-se os cabelos argênteos, às rimas de grafite seguiram-se os sonetos talhados em platina, das possibilidades da existência decorreram escolhas, certezas firmes ancoradas nos actos, mais do que em retóricas. Para Rolando a palavra não perdeu o seu fulgor de archote que incendeia a noite mais escura, mas aprendeu a esgrimi-la com golpes certeiros contra a palavra da mentira, ganhando em tolerância com as ilusões que as palavras semeiam na imaginação dos mais crédulos.
Em vez dos filhos vieram rumos e remos. As ilusões foram caindo da árvore da imaginação, como tombam as folhas das cerejeiras que ele tanto adorava, a primeira que cai assinala o princípio do fim, emite a ordem, o chamamento, numa pronúncia e numa sonoridade que somente elas entendem, vão-se desprendendo uma a uma, por uma certa ordem desconhecida, mas infalível, fatal, irremediável. Assim tombam, uma a uma, todas as crenças que viram a prática inutilizar-lhes o sentido.
Corriam rumores de que ambos haviam desaparecido nas selvas de Sião, alheados do mundo sobre as coxas possantes de um Buda sorridente, ou, dizia-se, andavam lançando pedras às fauces blindadas dos tanques de Israel. Talvez na Colômbia, sob o comando de um médico asmático cujo cadáver havia de ser exibido aureolado de pequeninos cubos de gelo, como se ali fosse servido, em bandeja amortalhada de moscas, um segundo Cristo para a eternidade.
Nunca ninguém soube. Algures, que um dia aturadas pesquisas hão-de descortinar, um lugar sem lugar na geografia dos factos, numa ilha cercada de sonhos e quimeras, onde naufragam todos os idealistas sem remédio, Rolando vergou-se devagarinho, sem temor, sob a espessura de um infinito cansaço. Pressentindo que chegado era o dia, deitou-se sobre um lençol de papoilas, que ardiam como lamparinas num velório, e abandonou-se à brisa de um mar absorto do sul, tentando fixar para sempre, numa simples proposição, a paródia da vida.
Jasmina entendeu perfeitamente que o diálogo que fora a sua vida, terminara naquele preciso instante. Ajoelhou-se, colocou a cabeça de Rolando sobre o seu colo, cerrou-lhe aquele olhar vazio de alegorias e de paradoxos, recolheu com a mão direita um punhado de pétalas delicadíssimas de bem-me-queres, e depositou-lhe uma paráfrase no peito, no lugar do coração.
O céu abriu-se num caudal de água, e o verão terminou ali.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

ALDEBARAN


Se acaso um dia perguntares onde fica Aldebaran, não esperes que te respondam. E mesmo que alguém entendesse a pergunta, dar-te-ia sempre respostas pragmáticas, com um pontinha de compaixão.
Na verdade, ninguém sabe. E ainda que o soubesse, tê-lo-á esquecido. Perguntarás somente àqueles em cujo olhar brilhar uma luz secreta, trazida das grutas antiquíssimas onde soprámos com ocre vermelho o contorno das nossas mãos.
Das perdas sem remédio a vida soma e segue, mas a cicatriz não deixa de ser cicatriz, por muito que se esconda. Conta-se aquela história do náufrago que, tendo posto o pé em terra firme, achou-se o mais feliz dos homens.
Contudo se, ainda que em Aldebaran não creias, a tua consciência admite a possibilidade, é porque a desejas, e o que quer que faças, ficará doravante sob essa contradição. É o desejo por Aldebaran que subtrai sentido àquilo que na verdade não possui valor algum.
Não sei se isto que digo é falso ou verdadeiro, mas convém acreditar que o movimento não é tudo.
Múltiplos estuários possui o eterno fluir; já reparaste, todavia, que as águas passadas são as primeiras a alcançá-los? Eu sei, eu sei, que a vida é um fio-de-prumo: a casa que erguemos é uma teia opaca pendurada entre duas mentiras. Eu também ignoro onde fica Aldebaran, mas desejo-a desesperadamente quando me sopra um vento de aflição; quando a nostalgia se disfarça de outono no olhar cego das toupeiras; quando o dia amanhece como um cadáver, e a alienação enche as ruas com cardumes agonizantes.
Um destes dias vou partir para Aldebaran. Nada levarei comigo, para além desta humanidade tão nua como no instante em que nasci. Em Aldebaran vou voltar a correr como um garoto, trepar ao cocuruto dos coqueiros e pintar a manta; chapinhar nas marés, rebolar pelas dunas, e cavar um túnel até ao outro lado do mundo. Nenhuma culpa, nenhuma condescendência. Em Aldebaran a ideia corresponde à intenção, e as declarações de amor são absolutamente escusadas. As portas não têm ferrolhos, porque do que eu comer comerás tu. Só encontra Aldebaran quem possuir um coração orgulhoso; é de pé que lá se chega.
Há quem diga que Aldebaran é uma estrela: nas noites sombrias contemplam-na à escuta de um sinal; há quem diga que é uma ilha que várias vezes emergiu e outras tantas desapareceu; há quem diga que não passa de uma miragem e que astuto é aquele que não se deixa enganar. Conforme imagino não é uma estrela ou ilha, mas constelação e arquipélago; uma cidade de pontes sobre canais, por onde navegam todas as diferenças; é Veneza à tardinha, é a Roma da Piazza Navona e Bernini, é a Florença da Ponte Vecchio e Cellini, é o Brasil de Sabará e de Ouro Preto, Barcelona e Granada, Leninegrado, Viena, Delfos, Tróia, o Nilo e o Amazonas; é uma planície comum onde a solidão é coisa do passado; um arvoredo sem muros, uma mão-cheia de amigos à volta de uma fogueira, uma merenda no campo sobre um chão de margaridas, uma mesa redonda onde todos saciam a fome e a justiça, e a palavra perfeita na hora do aperto. Não é, portanto, o outro mundo, mas este, humano simplesmente.
Vou partir um dia destes e, se navegar for preciso, faço-me nómada ou marinheiro, mais de sete são as partidas do mundo. Não há deserto que a águia não vença, nem abuso e violência que não desfaleça nas margens. Eu sei de ciência certa que à entrada de Aldebaran floresce a amendoeira; pelo seu fruto eu pressentirei o segredo da vida nova, a agitação rodopiante das infinitas possibilidades da existência.
Imediatamente se anularão os centros e os círculos, e o filho da noite galopará para mim trazendo a liberdade.
Se chegares do Ocidente, inflecte para Oriente. Quando uma coruja te chamar pelo teu nome verdadeiro, saberás que é a Oriente que a esfinge contempla o nascer do sol.
Não a olhes nos olhos (muitos cegaram por isso): Vê, antes, pelos olhos dela, emergir do sonho os verdes campos da atlântida naufragada.
Um destes dias vou partir para Aldebaran. Levo a mente lúcida como uma página de Diderot. Não há paciência que resista a esta fossa de simulacros e resignações.
Vou de mãos nuas, porque tudo que levasse só me empurraria para trás como um íman.
São tantos os vivos que a esperam e tantos os mortos que por ela morreram, que é mais fácil chegar a Aldebaran do que alcançar Andrómeda.
Vou mas é partir para Aldebaran!
Se me perguntas onde fica, não sei, mas asseguro-te que, sozinho, não a alcanças jamais. É preciso andar muito, mas até os mortos vão ao nosso lado.
Dizes-me, amigo, que tudo isto são palavras apenas? Uma viagem inútil e que a única realidade é aquela que se vê?
Se assim fosse, meu caro artista, porque te empenhas tanto na criação?
Se assim fosse, coração solitário, porque aguardas a madrugada?

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.