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terça-feira, 28 de março de 2023

Cada partido revolucionário deve ser isso mesmo: revolucionário. O socialismo é a alternativa. A unidade não pode ser somente em determinadas ações, sem concepções e valores

 


Kemal Okuyan, Secretário-Geral, Partido Comunista Turco (TKP)

 

Quaisquer que sejam as condições em que opere, quaisquer que sejam as oportunidades que tenha, é sempre possível para um partido comunista agir mais, melhor e de forma mais revolucionária do que antes. Assim, os princípios de respeito mútuo e não interferência em questões internas não devem anular as abordagens críticas, e os partidos comunistas não devem permanecer numa zona de conforto onde estão sozinhos.

 

 

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Por hábito, muitas vezes tendemos a usar a expressão "movimento comunista mundial". No entanto, hoje não podemos falar de um fenómeno que mereça ser rotulado como  movimento comunista mundial.

 

Há comunistas em quase todos os países do mundo; partidos ou formações com o nome de comunistas estão ativos em muitos países. Alguns deles são bastante influentes nos seus países, alguns estão no poder. Podemos até dizer que os partidos comunistas são muito mais abrangentes hoje do que  eram em 1919, quando a Internacional Comunista foi fundada, e nos poucos anos que se seguiram.

 

Mas ainda não podemos falar de um movimento.

 

Porque um movimento, apesar de todas as suas contradições internas, tem uma trajetória. É claro que os partidos comunistas hoje não têm a trajetória comum que esperaríamos de um movimento.

 

Então precisamos de responder à pergunta: É possível que os comunistas de hoje sejam transformados num movimento internacional?

 

O "Partido Comunista" pode ser definido pela sua vontade e determinação de levar a humanidade a uma sociedade livre de classes e de exploração. Preservando a originalidade e a riqueza dos seus componentes, uma soma que não se caracterize por esta vontade e determinação em todo o seu tecido não pode transformar-se num "movimento comunista mundial".

 

Isto não deve ser tomado como uma crítica ou uma polémica, mas como uma avaliação objetiva da situação.

 

A luta pela democracia ou pela paz, e estando na vanguarda de tal luta, não pode substituir a missão histórica dos partidos comunistas. Da mesma forma, enquanto a luta contra o imperialismo dos EUA é uma tarefa indispensável para os partidos comunistas, não é uma característica distintiva para eles.

 

Podemos beneficiar do testemunho da história para entender melhor o que queremos dizer.

 

Sabemos que, entre 1933 e 1945, o movimento comunista mundial se concentrou predominantemente na luta contra o fascismo, enquanto outras missões e objetivos foram relegados para segundo plano. Mas ainda usamos o termo "movimento comunista mundial" para esse período. Ao explicar isso com a existência da URSS, o que não devemos esquecer é o facto de que, mesmo durante esse período, a URSS manteve a perspetiva central de "uma luta por um mundo livre de classes e de exploração" e, apesar de alguns erros, manteve os seus esforços com o objetivo de aproveitar as oportunidades que surgiram para um salto em frente do processo revolucionário mundial.

Se a Internacional Comunista pudesse ser reduzida exclusivamente à política da Frente Popular, poderíamos muito bem dizer que, no contexto histórico, o movimento comunista mundial estava em declínio a partir da década de 1930.

 

Deve ficar claro que essa abordagem não tem nada a ver com denegrir a luta contra o fascismo ou outras tarefas semelhantes. É apenas para nos lembrar que a definição de "movimento comunista mundial" requer uma trajetória comum em linha com a missão histórica do comunismo.

 

De facto, aquilo em que precisamos de nos concentrar é como chegar a um momento em que essa missão histórica venha à tona novamente, tornando-se um centro de gravidade que influencia e molda cada um dos partidos comunistas com diferentes caminhos e agendas.

 

É óbvio que, para o comunismo atingir tal nível de influência e  importância na arena internacional, certamente há a questão das condições objetivas. No entanto, seria um grave erro atribuir o salto do movimento comunista a alguma conjuntura favorável que aparecerá nalgum momento desconhecido, especialmente nos nossos tempos em que o capitalismo enfrenta um impasse económico, político e ideológico insuperável em todo e qualquer país. Sob as condições em que o domínio do capital está a cair de crise em crise e é incapaz de oferecer quaisquer esperanças à humanidade, mesmo falsas esperanças, deve ser evidente que os comunistas precisam priorizar a análise do fator subjetivo em vez de se queixarem da existência dessas condições.

 

Temos de fazer debates ousados.

 

O processo revolucionário mundial tinha começado a ter as referências teóricas e políticas necessárias para as difíceis lutas que se avizinhavam, seguindo as poucas décadas após a redação do Manifesto do Partido Comunista com  palavras incomparáveis. A divergência e a convergência exigem sempre referências. Na viragem do século XX o marxismo  tinha-se tornado a principal referência para o movimento da classe operária, prevalecendo sobre o seu rival, o anarquismo. No entanto, não demorou muito para o movimento marxista se desintegrar. Foi uma cisão que, mesmo aqueles que argumentaram que a "unidade" era, em qualquer caso, algo bom, consideraram inevitável e necessário. Os marxistas tinham tomado dois rumos diferentes, o revolucionário e o reformista.

 

Com o tempo, tornou-se claro que não poderia haver interpretação reformista do marxismo. A social-democracia abandonou as fileiras revolucionárias, infligindo à classe operária a pior traição da sua história.

 

Isso significou também o aparecimento de um período em que os revolucionários no mundo, que agora preferiam o nome "comunista", renovaram e fortaleceram as suas referências. As 21 condições para a adesão à Internacional Comunista fundada em 1919 poderiam muito bem ser vistas como a expressão mais nítida dessas referências.

A partir de 1924, quando a onda revolucionária no mundo recuou, era inevitável uma certa erosão nessas referências teóricas e políticas. O fascismo alemão e, mais tarde, a Segunda Guerra Mundial aceleraram essa erosão.

 

De facto, o período entre 1924 e 1945, contrariamente à filosofia fundadora da Comintern, confrontou cada um dos jovens partidos comunistas com as suas próprias realidades e, além disso, impôs diferentes responsabilidades a cada um deles em termos dos interesses gerais do processo revolucionário mundial.

 

Apesar de tudo isso, a existência da Revolução de Outubro e o seu resultado mais precioso, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, bem como a vontade de estabelecer o socialismo naqueles anos, fortalecida pela transição para uma economia planificada, industrialização e coletivização na agricultura, forneceram um quadro histórico imensamente valioso para os partidos comunistas. Tal vontade não só impedia desvios, mas também serviu como o terreno necessário para saltos em frente. A derrota do fascismo e o fortalecimento do socialismo após a Segunda Guerra Mundial reforçaram isso.

No entanto, o movimento comunista mundial estava a enfrentar problemas internos muito sérios que minavam a integridade que era  capaz de preservar graças ao prestígio da União Soviética.

 

As referências desvaneceram-se, e o "marxismo reformista", que em alguns aspetos se supunha ter sido abandonado,  fez-se novamente ouvir.

 

O discurso de Khrushchev, o então secretário-geral do PCUS, no encerramento do seu XX Congresso, em 1956, cortou as últimas  amarras que ancoravam o movimento comunista mundial nos portos seguros e, ainda mais importante, esmagou o otimismo que prevaleceu desde 1917.

 

O que é interessante é que o discurso de Khrushchev, cheio de distorções, não levou a um debate sólido e, consequentemente, levou a uma divisão no movimento comunista mundial.

 

No entanto, esperava-se que o movimento comunista preservasse e atualizasse os princípios de 1919 e se vinculasse a referências teóricas e políticas mais consolidadas. Em vez disso, o que emergiu foi uma desordem em que um grande número de partidos sem um terreno comum teve  uma relação individualizada, à maneira de cada um, com a União Soviética, que permaneceu como a conquista mais importante da revolução mundial.

 

O conflito entre a República Popular da China e a URSS, que terminou numa divisão violenta, também não deu lugar a uma divisão saudável. No período que se seguiu a essa divisão, a distância entre os partidos que mantinham relações estreitas com o PCUS continuou a aumentar. À medida que alguns dos partidos dominantes nas Repúblicas Populares da Europa Central e Oriental tentaram superar as suas deficiências durante o período entre 1944 e 1949 por hibridização ideológica, a correlação interna de forças dentro do movimento comunista mundial tornou-se ainda mais complicada. Mas o problema era muito maior. Por exemplo, a amizade com a União Soviética era quase a única semelhança entre o Partido Comunista de Cuba - que na década de 1960 trouxe um novo dinamismo ao movimento comunista não só na pequena ilha onde chegou ao poder, mas também em toda a América Latina e no mundo -, e alguns outros partidos que viraram  a face para o eurocomunismo. No final, até à dissolução da União Soviética, não houve nenhum debate ou divisão  que empurrassem o movimento comunista mundial para a frente.

 

Depois de 1991, nem o PCUS - que mantinha muitos, se não todos, os partidos próximos de si - existia, nem havia um eixo segundo o qual os partidos comunistas se pudessem ajustar. 

 

Pelos esforços muito significativos de alguns partidos, nomeadamente o Partido Comunista da Grécia, tornou-se uma tarefa prioritária reunir o que restou em nome do comunismo. Os Partidos Comunistas e Operários reuniram-se 22 vezes. Isso, por si só, tem sido extremamente importante. No entanto, esse período não serviu para o movimento comunista reconstruir as suas próprias referências da maneira de que precisava.

 

E, eventualmente, a visão de que os partidos comunistas não precisam realmente de referências teóricas e políticas, começou a consolidar-se .

 

Hoje, não temos um mecanismo funcional para examinar as diferenças fundamentais que podem ser observadas quando olhamos não apenas para os partidos membros da Solidnet que participam nos Encontros Internacionais dos Partidos Comunistas e Operários, mas para todos os partidos que se identificam como comunistas.

 

Seria um grande erro racionalizar essa falta de comunicação escondendo-a atrás do princípio da não interferência nos assuntos internos, apesar de ser um princípio que pensamos que deve ser rigorosamente preservado no período que se avizinha.

 

Em última análise, o processo revolucionário mundial é um todo, e a forma como cada partido que se identifica como comunista se relaciona com esse processo diz respeito a todos os outros atores que fazem parte desse processo.

 

Este artigo pode ser considerado como uma maneira modesta de pensar em voz alta sobre as diferentes formas que as relações entre os partidos comunistas devem assumir sob as circunstâncias dadas.

 

Vale ressaltar neste momento o que podemos dizer no final. Apesar das inegáveis e amplas divergências entre os partidos comunistas de hoje, não há base para uma cisão ou divisão saudável.

 

Precisamos de organizar um debate, um debate realmente ousado.

 

Isto não deve ser entendido como um apelo para que os partidos comunistas se envolvam num confronto ideológico dentro de si e entre si. A extensão da decadência do capitalismo confronta os partidos comunistas com a tarefa de canalizar uma alternativa real o mais rápido possível. Neste momento, não podemos limitar-nos a um debate académico e teórico.

 

Do  que precisamos é do seguinte: estabelecer um esclarecimento dos pontos teóricos e políticos de referência a partir dos quais cada partido comunista atua. Não faz sentido considerar isso como um problema interno de cada partido. A interação é um dos privilégios mais importantes de um movimento universal como o marxismo.

 

Infelizmente, não estamos a passar por um período saudável para os partidos comunistas se ouvirem e se compreenderem.

 

Do que precisamos é que todos contribuam para criar verdadeiros motivos de discussão sem rotular qualquer outra parte.

 

Mesmo que existam factos suficientes para rotular um partido, a necessidade de abster-se de fazê-lo não é uma questão de cortesia política, mas está totalmente relacionada com as condições particulares de hoje.

 

O processo em que os partidos comunistas perderam os seus pontos de referência durou quase mais de 70 anos. O problema é profundo demais para ser superado por tentativas prematuras de cisões ou separações.

 

Sem dúvida, os partidos que têm posições semelhantes ou aqueles que consideram a formação de parcerias estratégicas podem e devem estabelecer plataformas bilaterais, múltiplas, regionais ou internacionais para reforçar isso. Mas a realidade é que a sua contribuição para a formação desses pontos de referência será limitada.

 

A organização de um debate saudável requer ficar longe de recorrer a epítetos como reformista, sectário, aventureiro ou oportunista. Como dissemos acima, a cortesia política não é o fator decisivo aqui. De facto, no passado, epítetos muito mais duros e dolorosos foram usados pelos marxistas. Mas cada um desses conflitos anteriores amadureceu sobre os pontos de referência que se pensava existirem e compartilhados entre eles.

 

Suponho que o ponto em que precisamos de esclarecer o que entendemos pela palavra "referência" está agora alcançado.

 

Estamos a falar de pontos de partida históricos, teóricos e morais que floresceram no seio do marxismo e foram  adotados internacionalmente.

 

Por exemplo, antes de a Segunda Internacional ter sido manchada com a vergonha de 1914, opor-se categoricamente à guerra imperialista era uma posição de princípio que foi unanimemente assumida. Este princípio foi o resultado do marxismo agindo  com referências comuns, apesar das diferenças sobre a questão ainda não estarem totalmente cristalizadas até então.

 

Outro princípio bem conhecido, não participar em governos burgueses, também derivava das mesmas referências.

 

Tais exemplos podem ser multiplicados. O que precisamos de ter em mente é que, o que está na raiz dos conflitos e divisões entre os marxistas no primeiro quartel do século 20 são essas antigas referências comuns.

 

Essa semelhança foi a razão que levou Lenine a acusar Kautsky e outros como "renegados".

 

Como sublinhei acima, a Terceira Internacional desenvolveu códigos que se transformaram em novas fontes de referência para o movimento comunista após o aprofundamento das diferenças em 1914 que levaram a uma divisão. Enquanto alguns partidos não foram suficientemente corajosos  para declarar abertamente a sua distância dessas referências, alguns outros partidos sinceramente defenderam-nas e seguiram-nas. Em qualquer caso, o movimento comunista mundial moveu-se dentro de um quadro teórico e político.

 

Mencionei acima que essas referências já tinham começado a perder a sua influência muito antes de 1991, quando a União Soviética se dissolveu e, além disso, é impossível hoje estabelecer um novo quadro que seja adotado por todos.

 

No entanto, é óbvio que haverá graves consequências para os partidos comunistas se agirem sobre um terreno cujas fronteiras históricas, teóricas e políticas estão completamente perdidas.

 

O debate e a comunicação aqui devem servir para estabelecer uma clareza sobre o conjunto de princípios que são vinculativos para os partidos comunistas, sem ceder a essa falta de referências. A divergência (se for inevitável) só servirá para o avanço quando for o resultado de tal processo.

 

É claro que, neste processo, é possível e necessário, apesar de todas as diferenças, desenvolver posições e ações comuns sobre questões internacionais, como a guerra e a paz, ou a luta contra o racismo, o fascismo e o anticomunismo. Se não ignorarmos e banalizarmos as diferenças, as posições tomadas podem tornar-se mais reais e as ações conjuntas mais poderosas.

 

O objetivo não é, certamente, a divisão. O objetivo deve ser ajudar o movimento comunista, que afirma ser a vanguarda do processo revolucionário mundial desigual e combinado, a transformar-se num movimento conjunto acima e além dos elementos únicos.

O que queremos dizer com um movimento conjunto não é, naturalmente, formar um modelo que não leve em conta as particularidades das lutas que ocorrem em diferentes países. Por outro lado, todos nós precisaríamos de estar preocupados com a razão pela qual a dicotomia de "questões internas" e "relações internacionais" se transformou numa zona de confronto como nunca antes na nossa história de 170 anos.

 

Debate, interação e comunicação são importantes por causa de tudo isso.

 

Mas como, e sobre o que vamos discutir?


Neste ponto, não deve haver espaço para "tabus" ou áreas intocadas.

 

É claro que precisaremos de partir das nossas próprias histórias. O  TKP, corajosamente, fez esforços para analisar um ponto de viragem muito crítico para si, que é o complicado problema que surgiu logo após a sua fundação, e incluiu o assassinato de quase todos os seus líderes fundadores.

 

As relações com o movimento kemalista, que tinha uma aliança com a Rússia soviética com resultados muito importantes, ainda que temporários, e a aproximação  da revolução burguesa que levou à fundação da República da Turquia em 1923, estavam entre os problemas fundamentais para o TKP, que também tiveram impacto nos anos seguintes. O nosso estudo sobre a história do Partido, cujos dois primeiros volumes foram publicados no centenário da nossa fundação, provou que podemos enfrentar tais problemas com responsabilidade revolucionária.


Estamos a tentar expressar a mesma atitude corajosa diante das ruturas, cisões e liquidações na história do TKP, e estamos a arcar com os custos de uma análise honesta das preferências políticas e ideológicas do partido.


As questões que estamos a discutir não dizem respeito apenas à Turquia. A luta do TKP nunca  se desenrolou num país isolado desde sua fundação, em 1920. Quando examinamos toda a nossa história, podemos ver que o terreno em que o nosso partido lutou interagiu com a Rússia, a Grécia, o Irão, a Índia (e Paquistão), a Arménia, o Azerbaijão, a Geórgia, a Bulgária, a Alemanha, o Chipre, o Iraque, a Síria e muitos outros países.


Além disso, não podemos falar da influência internacional da luta de classes na Turquia como se fosse apenas sobre o TKP. Nesse sentido, o TKP jamais recorrerá à abordagem simplista de “Somos donos dos nossos problemas” e levará a sério qualquer crítica, sugestão ou avaliação que seja fundamentada e respeitosa.


O TKP também realiza debates e estudos  internos sobre questões pouco discutidas da história do movimento comunista, mas sem tirar conclusões precipitadas ou rotulá-las. Não é  bom que os partidos comunistas permaneçam calados sobre muitas questões, incluindo o 7º Congresso do Comintern, as políticas de Frente Popular, a Guerra Civil Espanhola ou o Eurocomunismo, e deixar o campo aberto para os anticomunistas e  a “nova esquerda”.


Não há problema que possa ser deixado de lado para aqueles que testemunharam o trágico colapso da União Soviética. Para nós, é infundada a ideia de que discutir determinados assuntos ameaçaria os valores que nos ligam ao nosso próprio passado. O que realmente ameaça os nossos valores é a falta de referências de hoje. Se pudermos evitar que algumas questões se transformem em tabu, veremos claramente que a história comum do movimento comunista é muito mais rica do que se supõe.


O melhor exemplo do tipo de adversidades que podem surgir quando nos afastamos de um processo saudável de debate e avaliação é a era de Estaline que, depois de 1956, se tornou um tema obscuro e eventualmente um tabu, e depois  objeto de qualquer calúnia ou glorificação. Não se deve esquecer que os anos sob a liderança de Estaline podem tornar-se o capítulo mais ilustrativo e honroso do movimento comunista mundial, quando o fanatismo é deixado para trás.


Os comunistas não devem ter reservas em discutir qualquer tema pertencente à história da luta de classes. No entanto, são necessários mecanismos de debate mais sofisticados se não quisermos permitir que as nossas discussões sejam inibidas pelo respeito das preferências dos partidos comunistas que lutam em cada país.


Vale a pena pensar um pouco mais na ideia de que os debates não devem envolver estigmatização. É óbvio que um partido comunista pode rotular outro, explícita ou implicitamente. Claro, não podemos considerar tudo isso como infundado. Hoje, não é segredo que existem alguns partidos comunistas que estão a adquirir um caráter social-democrata. A identificação como “propagandistas” ou “sectários” de alguns partidos praticamente inexistentes politicamente  também pode ser tomada como justificada. No entanto, podemos observar que esses rótulos não servem para a interação e o debate de que mais precisamos no momento.

Já dissemos que faltam referências comuns no cenário internacional. No entanto, outra verdade é que muitos partidos carregam dentro de si o potencial de mudança. Podemos caracterizar essa mudança como positiva ou negativa em cada caso. No entanto, também podemos ver que as réplicas do grande terremoto que atingiu todos os partidos comunistas na segunda metade da década de 1980 ainda continuam e que muitos partidos não se estabilizaram ideológica e politicamente.

Seria errado atribuir um significado negativo a essas dores de mudança, que às vezes levam a ruturas e cisões. O que está errado, na verdade, é que esses conflitos internos, muitas vezes, não coincidem com um processo tangível e percetível de debate ou divisão. A falta de “debate” entre os partidos comunistas também desempenha um papel nesse defeito.

Neste sentido, podemos argumentar que os problemas são causados por tentativas de desvalorização ou difamação disfarçadas de cortesia,  mais do que por acusações abertas.

É inevitável que as relações se tornem menos saudáveis na falta de uma verdadeira plataforma de debate.

Até agora, discorremos sobre as consequências da falta de referências teóricas e políticas. Outro problema surge nos critérios de avaliação dos partidos comunistas. Ao avaliar um partido comunista, prestamos atenção ao seu programa, ideologia, status organizacional, ações, à sua influência na sociedade, desempenho eleitoral, publicações e padrões de quadros. Alguns deles são puramente qualitativos, mas outros podem ser medidos quantitativamente. Porém, deixando de lado as preferências ideológicas, e não levando em conta rótulos fáceis de colocar como “reformista”, “sectário”, “aventureiro” etc., podemos julgar um partido político apenas questionando se ele é influente ou não.

Nesse contexto, fica claro que a distinção “grande partido-pequeno partido” não é um critério “revolucionário”. Em particular, não faz sentido avaliar a magnitude de um partido com base principalmente nos resultados eleitorais.

Não é preciso lembrar que estamos a levantar esta questão não  referindo-nos a um partido   de que não se espera uma vitória parlamentar nos tempos mais próximos, mas com base na tradição que se formou desde o início do século XX.

Como a igualdade entre os partidos comunistas é um dos princípios mais importantes e universalmente defendidos, vale a pena dar-lhe uma maior ênfase. 

A classificação de “partido grande-pequeno partido” não serve para estimular os partidos a progredir. Mas um verdadeiro debate é absolutamente benéfico. Hoje, qualquer comunista que viva em qualquer país tem o direito, e o dever, de se perguntar como outro partido comunista está a reagir aos acontecimentos naquele país, de fazer perguntas e de expressar opiniões a respeito disso.

Quaisquer que sejam as condições em que opere, quaisquer que sejam as oportunidades que tenha, é sempre possível, para um partido comunista, agir mais, melhor e de forma mais revolucionária do que antes. Assim, os princípios de respeito mútuo e não interferência em questões internas não devem anular as abordagens críticas, e os partidos comunistas não devem permanecer numa zona de conforto onde estão sozinhos.

Os partidos comunistas não se classificam, mas acompanham-se, discutem e procuram formas de colaboração. As bases para isso podem ser criadas avaliando os partidos comunistas com critérios sólidos.

Neste momento vale a pena abordar a situação dos partidos comunistas no poder hoje. Todos esses partidos são portadores de imensa legitimidade histórica. Na medida em que “revolução” e “poder político” são de importância central para os partidos comunistas, não há qualquer problema em considerar que estes partidos terem  um papel acrescido no processo revolucionário mundial.

Hoje, sabemos que existe uma ampla gama de avaliações sobre a política interna desses partidos, o seu caráter ideológico e de classe e o papel que desempenham no cenário internacional. Claro, a legitimidade histórica que acabei de mencionar não cria automaticamente qualquer impunidade para críticas. Todas os partidos podem fazer livremente as suas próprias avaliações, desde que seja preservado certo nível de maturidade e respeito. Também é inevitável que parte dessas avaliações possam ser um pouco prejudiciais. Os partidos comunistas dominantes, neste ou naquele grau, também são atores internacionais que têm influência na luta de classes noutros países.

É necessário que esses partidos tenham um lugar particular entre os partidos comunistas mundiais, com base na extensão acima mencionada? Sabemos que alguns partidos que lutam nos países capitalistas são dessa opinião. Em algumas reuniões internacionais ou bilaterais, deparamo-nos com algumas propostas que  a favor de que os partidos comunistas no poder estejam na vanguarda e tenham um papel decisivo, ou pelo menos regulador.

Muito pode ser dito sobre o papel do PCUS no movimento comunista internacional no passado, positivo e negativo. Mas hoje, a situação é muito diferente. A União Soviética, pelo menos até certo ponto, tentou relacionar a sua própria existência e a sua política externa com o processo revolucionário mundial, mesmo nos momentos mais difíceis. Os partidos comunistas no poder hoje claramente não têm tal posicionamento.

 

As razões para isso serão tema de outro debate. Além disso, as possibilidades e condições de cada um dos países onde os partidos comunistas estão no poder são bastante diferentes entre si. O  TKP nunca  apreciou julgamentos totalistas. Os responsáveis pela luta socialista não estar numa posição mais avançada nos países capitalistas somos nós e as nossas deficiências como partidos comunistas nos países capitalistas.
 
Além disso, na complexa correlação de forças de hoje, é óbvio que, para a agenda dos partidos comunistas no poder, outros partidos comunistas não constituem prioridade.

Isso por si só põe em causa as  afirmações de que os partidos comunistas no poder desempenham um papel mais especial.

O resultado de considerar que os partidos comunistas no poder devem dar hoje o passo em frente nas reuniões internacionais e nas relações entre os partidos comunistas seria que os partidos comunistas passariam a analisar as lutas de classes a partir de uma perspetiva geoestratégica. Mais uma vez, isso não se baseia nas nossas opiniões “subjetivas” sobre as prioridades da política externa dos partidos comunistas no poder.

Embora não o enfatizemos tanto, a abordagem geoestratégica seria a escolha mais perigosa se os partidos comunistas se quiserem posicionar dentro do processo revolucionário mundial. Os partidos comunistas devem abordar a arena internacional tentando harmonizar os interesses da luta revolucionária nos seus próprios países com os interesses gerais do processo revolucionário mundial.

Essa harmonia pode ser difícil ou mesmo impossível, às vezes. No entanto, para os partidos comunistas, é necessário reconhecer os custos da alienação do objetivo da revolução nos seus próprios países e tornar essa harmonia o mais sólida possível.

A geoestratégia poderia, na melhor das hipóteses, ser um elemento analítico complementar para o marxismo. Não é correto substituir a perspetiva em que conceitos como imperialismo, Estado, revolução e luta de classes desempenham um papel central, por lutas de poder que podem a qualquer momento trivializar estes conceitos.

E aqui, precisa de ser apresentado outro problema.

A Rússia Soviética e mais tarde a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas exerceram uma séria influência ideológica e psicológica “a favor do socialismo” entre os trabalhadores e as nações oprimidas nos países capitalistas. E isso foi conseguido mesmo nos momentos mais desafiantes para a União Soviética. Isto aconteceu porque centenas de milhões de pessoas no resto do mundo sentiram que na URSS continuava a luta pela “construção de uma sociedade igualitária”.

Com o tempo, essa influência diminuiu. A União Soviética desintegrou-se. Este artigo é composto por reflexões expressas em voz alta e atenta para não destacar exemplos negativos. Mas sinto a necessidade de prosseguir com um exemplo positivo. Precisamos pensar por que razão Cuba, apesar de todas as circunstâncias extraordinariamente difíceis em que se encontra o país, ainda pode ser um centro de atração para pessoas em busca de um “outro mundo”. Isso é possível porque a Revolução Cubana, apesar de uma série de contratempos, continua a defender um forte sistema de valores.

A realpolitik implementada sem limites, que é o resultado inevitável do pensamento geoestratégico, pode excitar alguns estrategas, intelectuais e políticos, mas não serve como centro de atração para as massas trabalhadoras.

Os partidos comunistas são obrigados a transformar em bandeira sua o ideal de uma sociedade igualitária e um sistema de valores compatível com esse ideal. Mesmo a tarefa indiscutível e mais difundida de hoje de derrotar ou repelir o imperialismo dos EUA não deve  tornar-se um pretexto para ofuscar esse ideal e sistema de valores.

Os partidos comunistas no poder devem manter os seus papéis importantes dentro da família dos partidos comunistas com a sua legitimidade e prestígio históricos, mas  não se deve insistir em apelos para lhes atribuir um papel decisivo. Tal insistência, deve-se ter em mente, pode levar a uma rutura muito dura dentro dos partidos comunistas.

Afinal, o princípio da igualdade e não-ingerência, que talvez seja o princípio mais comummente reconhecido entre os partidos comunistas hoje, não permite tal hierarquia interna.

Neste momento, podemos ser mais específicos sobre o que queremos dizer com um “debate real”. O que está por trás da necessidade de não deixar um único ponto de nossa própria história não clarificada ou sem avaliação honesta, certamente não é o rigor académico. Quando examinamos com atenção, vemos que a “identificação das tarefas prioritárias” esteve no centro de todos os debates, desde a 1ª Internacional até à dissolução da União Soviética. É esta simples questão que determina os debates e as divisões dentro do marxismo.

As tarefas prioritárias foram definidas uma vez como o derrube da monarquia e do feudalismo, outras vezes a expansão do direito da classe trabalhadora  se organizar e se envolver na política e, em alguns outros casos, a neutralização da ameaça do fascismo ou da guerra.

Agora também, os partidos comunistas têm visões diferentes sobre qual é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial, do qual eles próprios constituem elementos.

As necessidades do processo revolucionário mundial são determinantes.

Naturalmente, cada partido comunista avalia essas necessidades do ponto de vista do seu próprio país e dos interesses da luta no seu próprio país. A distância entre as necessidades gerais do processo revolucionário mundial e os interesses de um país é um dos problemas mais sérios que os comunistas têm de resolver ou gerir. Às vezes, essa distância pode transformar-se num conflito. Também aqui os partidos comunistas têm um papel importante a desempenhar.

Devemos admitir que, hoje, as diferenças entre os partidos comunistas são produzidas pelas diferentes respostas à questão de qual é a tarefa prioritária da revolução mundial.

Uma abordagem muito difundida e antiga afirma que expandir o espaço para a democracia e as liberdades é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial.

Mais uma vez, ouvimos cada vez mais descrições de tarefas como “repelir o imperialismo dos EUA” e “repelir o perigo do fascismo e da guerra”.

É óbvio que essas tarefas não podem ser negligenciadas. No entanto, tais definições de tarefas podem eventualmente transformar-se  em defesa de iniciativas e movimentações de política externa deste ou daquele país.
É também uma escolha definir a tarefa urgente no que diz respeito aos interesses da revolução mundial hoje, de como tornar o socialismo uma opção do nosso tempo. Esta abordagem, que também adotamos, deve ser vista como o produto da determinação de rejeitar e acabar com o status em que o socialismo, única alternativa ao capitalismo,  está a passar pelo seu momento menos influente e afirmativo durante um período de 170 anos.
 
Determinar a tarefa principal com base na oportunidade do socialismo e, portanto, na revolução, significa também eliminar as adversidades que podem ser causadas por outras abordagens que limitam ou pacificam a classe trabalhadora.

Falando realisticamente, é impossível para a classe trabalhadora na sua forma atual ser a principal força capaz de repelir o imperialismo dos EUA ou neutralizar a ameaça do fascismo e da guerra. Para que os comunistas  tenham peso nessas tarefas históricas, eles precisam de ter vontade de cumprir a sua principal missão.

O movimento comunista não terá futuro imitando outras forças, enquadrando-se numa definição mais ampla de esquerda. Isto nem chega a ser um mergulho kamikaze porque não fará mal ao inimigo. Também não é um harakiri porque não levará a um fim “honroso”.

Como estratégia de crescimento, as prioridades acima mencionadas não ajudarão o movimento comunista a florescer e a desenvolver-se.

Claro, não podemos falar aqui de um teste de sinceridade. A história é o juiz mais justo. Mas todos nós sabemos que o comunismo tem linhas vermelhas.

Se essas linhas se tornaram ambíguas, isso pode ser um ponto de partida para nós. Sem cair em repetições, sem nos cansarmos uns aos outros com  frases feitas, citações ou repetições.
 
A grande obra de Marx e Lenine está na totalidade dos seus pensamentos e ações. Se o que define a vida de Marx foi o seu ódio infinito ao capitalismo, para Lenine é-o a revolução e a tomada do poder político.

Nos anos anteriores, a cada momento em que os partidos comunistas se esqueciam da sua própria razão de ser, passavam por alguns percalços que hoje podem ser julgados como “erros”.

Por esta razão, se ao invés de querelas caóticas e infrutíferas, os partidos comunistas puderem contribuir para os debates, dando respostas claras sobre como se relacionam com o processo revolucionário mundial e demonstrando referências ideológicas e políticas apropriadas, surgirá para cada um  dos partidos comunistas um resultado coletivamente significativo. Assim, posições comuns, ações conjuntas ou separações terão lugar num terreno muito mais sólido.
 
O TKP dará as suas modestas contribuições na arena internacional com esta perspetiva.

 

Fonte: Thinking Aloud on the “World Communist Movement” | MLToday , publicado e acedido em 20.02.2023

 

 

Tradução de TAM

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Que tipo de raça são? Que tipo de pessoas são vocês?
Sim. Eu disse pessoas, não governo. Não sou politicamente correcta. O vosso governo faz parte de
vós e vós fazeis parte dele. Quer queiram quer não. E não me venham dizer, de modo embaraçado
que eu sei muito bem: «Oh, mas eu não votei neles!»
Estou-me marimbando para quem votaram ou não. Esse não é o meu problema.
O meu problema são vocês. A vossa cultura, o vosso comportamento, a vossa mentalidade, o vosso
carácter, a vossa altivez, a vossa arrogância, o vosso falso orgulho, a vossa negação, a vossa
estupidez e ignorância colectiva, o vosso modo de vida que acho aborrecido, vazio e desagradável,
o vosso sotaque que é uma afronta aos meus ouvidos... e aos meus sentidos.
Eu não gosto de vocês. Ponto final.
Eu sei, eu sei que alguns de vós são boas pessoas.
Eu sei, eu sei que a América não é um grupo homogéneo...
Eu sei toda esta porcaria.
Isso não faz a mínima diferença na minha vida e na vida doutros iraquianos.
Não dou qualquer importância às vossas nuances, à vossa linguagem política, se sois bons ou
maus... Isso não significa nada para mim e para inúmeros outros.
As nossas vidas foram arruinadas, totalmente arruinadas. Não queremos saber das vossas nuances.
Tudo o que sei é que destruíram o meu país. Para além de qualquer reparação.
O passado, vocês saquearam-no e destruíram-no. Tentando apagar a nossa memória colectiva... As
nossas raízes, de onde vimos, o que os nossos antepassados fizeram, as suas conquistas, as suas
provações, as suas estátuas, os seus escritos...
Vocês não conhecem a história, são rejeitados da história. Não têm uma história.
Não têm passado, não têm nada... Não são nada.
Não são nada mais que ogres do consumismo. Não só de coisas materiais, mas o que quer que

consigam engolir inteiro, vocês querem-no.
Até engolem inteira a história de outras pessoas.
Sois pessoas gananciosas, cobiçosas, gulosas, vorazes, ciumentas, invejosas...
Como não são nada, o vosso niilismo contamina todo o resto.
Destrói-em e auto destrói-em...
Sem futuro. Vocês não têm futuro, porque dentro de vós próprios, o vosso futuro está limitado ao
vosso pequeno ego. Os pequenos egos não têm futuro. Pequenos egos são amebas, parasitas, que se
alimentam de outros...
Pensam que têm visão, mas a vossa visão limita-se ao vosso estômago, aos vossos bolsos e ao que
têm entre as pernas... É tudo. É aí que termina. E isso certamente não faz de vocês profetas...
O que é que contribuíram para o mundo? Alguma coisa com substância real? Nada. Excepto força
bruta e poder... e a vossa cultura nojenta que é tão oca e tão vazia como vós. E precisamente porque
não têm um futuro verdadeiro, espoliam-nos o nosso. Colectivamente, vocês são um bando de
criminosos, ladrões, de brutos perversos da pior espécie.
Desde o vosso maldito 11 de Setembro, destruíram totalmente dois países. Afeganistão e Iraque.
E não pararam. Nem um dia, nem uma hora...
Queriam uma mudança de regime no Iraque. Conseguiram-no.
Também nos mudaram, e a mim, para além de tudo o que eu possa reconhecer.
Eu nunca vos odiei, antes. Hoje, eu odeio-vos. Odeio-vos mesmo. Metem-me colectivamente nojo.
Até repugnais as nossas antigas divindades e espíritos mesopotâmicos. Vós repugnais cada letra do
alfabeto. Vós enojais a terra, os rios, o céu, as montanhas, as árvores, as aves do Iraque... Vós
enojais o cosmos...
Sempre que vejo um de vós algures por perto e ouço aquele vosso sotaque horrível, fujo... Evito-vos
como a peste. Não suporto ouvir ou ver-vos.
Para mim, vocês não representam senão a Morte e a Destruição.
A vossa fealdade insinua-se por todo o lado.
Sempre que ligo a televisão ou a rádio e vejo ou ouço um de vós, faço zapping. Quem me dera
poder tirar-vos da minha vida, de uma vez por todas.
Eu sei, continuo a repetir-me, mas vocês continuam a repetir as mesmas acções.
O Iraque desmorona-se, com o seu passado e o seu futuro...
Só posso prometer-vos uma coisa, pode levar tempo, mas vamos arrastar-vos connosco!
17.09.2007
Layla Anwar

terça-feira, 21 de março de 2023

Aristóteles, Marx, Freud, Marcuse, Lacan

 

A infinitude do desejo e da riqueza


Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

Psicanálise e crítica da economia política

Na Grécia antiga

Aristóteles, no século IV a. c., sabia certamente a diferença entre o sensato e o insensato, o medido e o desmedido, em matéria de desejo e de riqueza. E essa percepção está bem patente em sua discussão da posse e da obtenção de bens nas condições da Grécia antiga, que se encontra como se sabe no capítulo III de A política.[i] Sendo assim, como é possível retomar a sua sabedoria milenar referente a uma sociedade escravista para vir a compreender melhor a relação interna entre o desejo e a riqueza no capitalismo, na perspectiva do encontro da psicanálise com a crítica da economia política?

Como se verá no curso da exposição que se segue, essa investigação nada tem de impertinente. Eis que há uma linha de pensamento que acomoda o capitalismo numa suposta natureza da psique humana e ela pode ser contestada. As bases da crítica possível foram assentadas aqui há décadas atrás.

Como se sabe, para o estagirita a economia consistia na economia doméstica. Sob essa perspectiva, ele se pergunta, iniciando um questionamento, se a arte da aquisição faz parte das atividades atinentes ao domínio do domus. Ora, a primeira proporciona e a segunda faz uso dos bens obtidos.

Distingue, então, em primeiro lugar, o que classifica como meios naturais de obter de bens, quais sejam eles, a caça, a pesca, a agricultura e a indústria doméstica. Estes são, para ele, justos e necessários. “Há, portanto, uma espécie de arte da aquisição que é por natureza uma parte da economia doméstica, uma vez que esta deve ter disponíveis, ou proporcionar ela mesma, as coisas passíveis de atender as pessoas, necessárias à vida e úteis à comunidade composta pela família e pela cidade” (op. cit., p. 36).

No curso de sua argumentação, o filósofo distingue, implicitamente, duas modalidades de riqueza: a concreta e a abstrata. A primeira esta fundada na necessidade e consiste em bens uteis por si mesmos e em meios que permitam produzi-los. A provisão de riqueza dessa espécie, portanto, reclama ela mesma a arte aquisitiva do primeiro tipo antes mencionado. Note-se que essa espécie de riqueza está caracterizada por uma infinitude qualitativa; os bens podem se multiplicar, mas nenhum deles em particular pode ser usado, em princípio, em quantidade infinita. Dito de outro modo, o consumo dos bens específicos em geral é sempre saciável.

Mas o que seria a riqueza abstrata? Como ela surge? Quais seriam as suas características?

Em sequência, respondendo a essa pergunta, Aristóteles vai mencionar que há uma espécie de riqueza que não está sujeita à limitação, que há em consequência uma arte de aquisição que não impõe fronteiras ao enriquecimento. À esta última ele chama de “crematística”, designando assim o modo de obter riqueza por meio do mercado. Em sua forma simples, diz ele, ela se aproxima da economia já que um bem qualquer pode ser obtido pela troca por outro com a finalidade de atender às carências das famílias e da cidade. Entretanto, conforme a sociedade se concentrou no espaço e se tornou mais numerosa, a troca simples se tornou insuficiente e precisou ser substituída pelo comércio, o qual não se desenvolve sem o dinheiro. E este constitui a base da riqueza abstrata, uma riqueza que vale por toda outra.

Ao invés de trocar um bem por outro diretamente, o comércio começou a usar nas transações um material que, por si mesmo, fosse útil e de fácil condução nas diversas circunstâncias. E o emprego desse material transformou o modo de trocar: estas últimas passaram ser indiretas, ou seja, mediadas. A matéria primeira que recebeu a forma de dinheiro foi algum metal como o ferro e a prata. Inicialmente, funcionou no comércio com base apenas em suas caraterísticas de dimensão e peso, mas para obviar as medições constantes e impedir as falsificações – diz ele – passou-se a usar o dinheiro cunhado pelo Estado.

O dinheiro não é, como parece à primeira vista, apenas um meio inocente de prover bens; na verdade, ele cria uma forma específica de acumular. Como o comércio proporciona lucros, “daí emergiu a ideia de que a arte de enriquecer está especialmente vinculada ao dinheiro” (idem, p. 38). E, no pressuposto de que essa arte cria muita riqueza e posse, passou-se a presumir que a riqueza consista propriamente em grande quantidade de dinheiro. A acumulação de dinheiro, ao contrário da provisão dos bens comuns, afigura-se insaciável.

Se o desejo de bens em geral está regulado pela necessidade que os próprios bens atendem, ele tem sempre a sua própria medida; já o desejo de acumular dinheiro não tem qualquer limite, corre para além da necessidade e, assim, tende à desmedida. O filósofo aponta então a diferença entre esses dois tipos de riqueza, a abstrata e a concreta, anotando que um homem rico em metais cunhados pode em princípio ser carente em gêneros de primeira necessidade. “É possível” – menciona – “até acontecer o absurdo de um homem dispondo de dinheiro pode muitas vezes carecer do mínimo necessário à subsistência” (p. 38). É evidente, pode-se acrescentar, que se ele gasta um pouco de seu dinheiro para comprar comida, transfigura-se de acumulador em consumidor ou gastador; ao se transformar, ele sacrifica o seu desejo infinito por um desejo finito, comezinho e de acordo com a natureza.

No comércio – indica – a “arte de enriquecer está relacionada com o dinheiro, pois o dinheiro é o primeiro elemento e o fim do comércio”; ora, “a riqueza derivada desta arte de enriquecer é ilimitada” (p. 39). Karl Marx, como se sabe, nos primeiros capítulos de O capital, sintetizou essa diferença apontada por meio dos circuitos da mercadoria e do dinheiro como capital. No primeiro caso, a mercadoria é trocada por dinheiro para obter com ele outra mercadoria, M – D – M; ora, a síntese dessa operação é M – M; no segundo caso, o dinheiro é trocado por mercadoria para obter com ela mais dinheiro, D – M – D’, cuja síntese é agora D – D’. No primeiro caso, a troca está limitada pela necessidade de consumo; no segundo, a permuta se encontra subordinada a um fim ilimitado.

A existência do dinheiro, ademais, pode modificar o modo de comportamento do indivíduo social: ele pode se tornar um ser aquisitivo e acumulador. Eis que certas pessoas se engajam então em enriquecer tentando aumentar o seu cabedal ao infinito. “A razão disso” – diz Aristóteles – “é a estreita afinidade existente entre os dois ramos da arte de enriquecer” (p. 39). As pessoas, algumas pessoas pelo menos, passam mesmo a acreditar que o seu dever enquanto “chefe de família” ou “cidadão da pólis” é aumentar indefinidamente as posses, dando origem a um novo etos. O trecho que se segue é bem importante para os fins desta exposição: “Por isto algumas pessoas supõem que a função da economia doméstica é aumentar as posses, e estão sempre sob a impressão de que seu dever é preservar-lhes o valor em dinheiro ou aumentá-las infinitamente. A causa desse estado de espírito é o fato de a intenção dessas pessoas ser apenas viver, e não viver bem; como o desejo de viver é ilimitado, elas querem que os meios de o satisfazer também sejam ilimitados” (p. 39).

Como Aristóteles explica, assim, o aparecimento do desejo infinito de acumular dinheiro na sociedade constituída pela cidade? Ele é despertado pelo aparecimento do dinheiro, mas está fundado numa condição humana que ele vê seguramente como transistórica. A acumulação infinita de dinheiro vem, pois, se apropriar e mobilizar o desejo infinito de viver, mas em que ele consiste?

Provocado pelo dinheiro que atua primeiro no comércio, mas também na usura, ou seja, no comércio do dinheiro, ancora-se, segundo diz o texto citado, em algo da condição humana; algo que se manifesta de um modo desmedido. Ora, para Aristóteles, uma tendência à imoderação mora para sempre na alma humana. Mas não é ela que explica o aparecimento do dinheiro. Este surge como representante do valor, passando a atuar como meio de troca. Responde imediatamente ao imperativo da divisão social crescente do trabalho, mas seu aparecimento se deve, em última análise, à carência de meios e de bens para satisfazer a todos de um modo satisfatório.

Aristóteles descobre, assim, uma contradição na arte de obter riqueza na grande sociedade, tal como depois dirá Adam Smith. Diz, primeiro, que essa arte se desdobra em duas, aquela que se relaciona à economia doméstica e aquela que se refere ao comércio. Diante dessa oposição conflituosa, mesmo se a considera como inerente à provisão de bens na sociedade do seu tempo, ele não se omite de fazer um julgamento ético. A primeira é “necessária e louvável”, enquanto a segunda é “justamente censurada”; esta última desafia a natureza porque assim uns “homens ganham às custas de outros” e “o seu ganho vem do próprio dinheiro” (p. 41). Os homens aqui referidos, como se sabe, são só aos homens do sexo masculino, ou seja, aqueles que tem plena cidadania na polis – nessa categoria, portanto, não estão incluídos nem as mulheres e nem os escravos.

Antes de passar a focar a sociedade moderna sob a luz das reflexões da crítica da economia política e da psicanálise, é preciso sublinhar um ponto central. Como Aristóteles assenta a busca do dinheiro no desejo de viver, aqui se pensa que ele assumiu, implicitamente, uma ideia de pulsão. E por desejo de viver se entende que viver consiste sempre em desejar.

Sigmund Freud

Atravessando então uma ponte de dois mil e quatrocentos anos de civilização e barbárie, chega-se a uma nova cidade cuja lógica de reprodução é bem mais complexa do que aquela da cidade grega. Em consequência, a apreensão da conexão entre essa lógica e a disposição da psique humana para recebê-la exige uma síntese bem difícil. Procura-se aqui abarcá-la, numa primeira visada, a partir do livro clássico de Herbert Marcuse, Eros e civilização. [ii]

De qualquer modo, este artigo sustenta que a tese básica do estagirita é verdadeira e que ela foi mantida e desenvolvida por Karl Marx em suas obras críticas do modo de produção capitalista.[iii] Segundo ela, o desejo de acumular riqueza de modo insaciável, assim como o etos que lhe é característico, provém da instituição do dinheiro ou, mais propriamente, do capital. Eis o que se encontra já no terceiro capítulo do livro clássico: “Essa contradição entre a limitação quantitativa [de toda soma de dinheiro] e o caráter qualitativamente ilimitado do dinheiro impulsiona incessantemente o entesourador ao trabalho de Sísifo da acumulação” (op. cit., p. 133).

“Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça apaixonada do valor, é comum ao capitalista e ao entesourador, mas enquanto o entesourador é apenas o capitalista demente, o capitalista é o entesourador racional” (idem, p. 130).

Com Freud, a compreensão da psique humana se torna muito mais complexa e mais profunda. Como explica Herbert Marcuse, se ele considera de início uma pulsão vital ligada à autopreservação em oposição a uma pulsão erótica, num momento posterior, compreenderá a primeira delas apenas como um momento subordinado da segunda, a qual passa a responder pelo evolver da vida como um todo. Num momento final, oporá a pulsão de morte à pulsão de vida e ambas se subordinam a uma tendência da vida orgânica, biológica, de voltar a um “estado anterior de coisas que o ser vivo foi obrigado a abandonar, sobre a pressão perturbadora de forças externas” (op. cit., p. 42-43).

Na compreensão final de Freud, tem-se certamente uma dualidade de forças que se contrariam – Eros e Tânatos –, mas a sua teoria parece requer que essa dualidade seja compreendida como uma duplicidade, de tal modo que a pulsão figura agora como portadora de uma contradição inerente ao processo vital, a qual se manifesta por meio de tendências e contratendências. As condições internas e externas da história dos indivíduos sociais exigem constantemente a mobilização dos impulsos eróticos ou dos impulsos de agressão ou de morte, mas as pulsões, ao serem despertas, exigem retornos de prazer – ou gozo.[iv] As pulsões eróticas estabelecem ou mantém os laços sociais e as pulsões de agressão os desfazem quando existem.[v]

No centro das concepções de Freud se encontra sempre uma luta de opostos. Eis que ele descobre contradições no interior da própria psique. Ora, como se sabe, as contradições, agora pensadas dialeticamente, orientam Marx na compreensão da sociedade. É por isso que um capítulo central do livro de Marcuse começa assim: “Freud descreve o desenvolvimento da repressão na estrutura pulsional do indivíduo. A luta pelo destino da liberdade e felicidade humanas é travada e decidida na luta das pulsões – literalmente uma luta de vida ou morte – em que o soma e a psique, a natureza e a civilização participam” (p. 41).

As condições em que essa luta acontece são sintetizadas na oposição entre o princípio do prazer – e de gozo (talvez) – e o princípio de realidade. No curso da vida humana, os impulsos de vida e os impulsos de morte não apenas estão constantemente em combate, mas, dependendo das condições, uns se intervertem nos outros, seus opostos, no curso da existência social.

O princípio do prazer (e do gozo) sustenta a própria vida e se manifesta como impulsos vitais. Mas, diante de dificuldades, os impulsos agressivos também podem aparecer manifestando-se como destrutividade. O princípio de realidade responde pela coerção e pela repressão dos desejos suscitando atitudes contrastantes que se balizam seja pelo amor seja pelo ódio, seja pela coexistência pacífica seja pela violência, seja pela construção seja pela destruição – em síntese, Eros e Tânatos.

Segundo Marcuse, a teoria de Freud no curso de seu desenvolvimento requereu a formulação de um novo conceito do humano, ou seja, de um “sujeito” formado por id, ego e superego. O primeiro é o domínio do inconsciente, em que se encontra a fonte das pulsões. A sua lógica de atuação vem a ser exercer pressão apenas para obter satisfação de suas necessidades (em sentido amplo) pondo fins e objetos para o indivíduo social. Sob a influência do mundo externo, de seus obstáculos e suas exigências, desenvolve-se o ego, sede do consciente cuja função é fazer a mediação entre o id e o próprio mundo externo. Ao cumprir a sua missão, as funções do ego consistem, por um lado, em coordenar as ações da pessoa e, por outro, em controlar os impulsos instintivos do id, de modo a minimizar os conflitos com a realidade.

O superego é aquela parte do ego que se desenvolve para guardar as normas sociais, para representar a normatividade estabelecida pela sociedade perante o próprio “sujeito”, e para reprimir as pulsões.  De acordo com Freud, de modo geral, é o “ego que efetua as repressões a serviço e a mando do superego; contudo, recalcadas, as repressões logo se tornam inconscientes, passando a atuar como se fossem automáticas” (idem, p. 49). Eis aí – veja-se de passagem – o que gera um sentimento de culpa elusivo porque a sua fonte se mantém velada. 

Para compreender a relação entre a estrutura pulsional dos indivíduos sociais e a vida econômica, Marcuse apresenta a seguinte consideração que aqui se considera como chave: “O princípio de realidade ampara o organismo no mundo externo. No caso do ser humano, esse mundo é histórico. O mundo externo que o ego em evolução defronta é, em qualquer estágio, uma organização histórico-social específica da realidade, a qual afeta a estrutura mental por meio de certas agências (…) Uma organização repressiva das pulsões é subjacente a todas as formas históricas do princípio de realidade na civilização” (p. 50).

O que, para Marcuse, caracteriza o princípio de realidade? Trata-se de uma condição fundamental que ele chama de “ananke” ou de carência.  A existência é luta e a luta pela existência tem lugar num “mundo demasiado pobre para a satisfação das necessidades humanas sem restrição, renúncia e dilação constante” (p. 51). Em síntese, qualquer satisfação possível requer esforço, necessita de trabalho e de discurso, implica em lutas com os semelhantes.

Diante das tarefas que nunca terminam, enquanto se mantiverem vivos, os indivíduos sociais têm de renunciar aos prazeres, entregando-se com ou sem gosto aos sacrifícios e mesmo a sofrimentos eventuais. O impulso básico do ser humano consiste em lutar pelo prazer e pela ausência de dor, mas como esse impulso é frequentemente obstado pela realidade, ele tem de ser reprimido. A pulsão contraditória produz então resultados diversos que oscilam entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício, podendo se voltar contra os outros ou a favor deles ou mesmo se reverter contra ou a favor do próprio indivíduo. O prazer insatisfeito produz a condição neurótica – as doenças psíquicas em geral – ou pode ser eventualmente sublimado.

Havendo apresentado o que ele denomina de princípio de desempenho, ou seja, a forma histórica do princípio de realidade, Marcuse se interessa por investigar a questão da exploração e da dominação, já que as formas de resolver o problema da carência – e de distribuir os ônus e os ganhos da solução historicamente encontrada – variam conforme mudam os modos de produção. Aqui, no entanto, a preocupação se volta para compreender todo um etos posto pela existência do dinheiro, do entesouramento e do capital.

Nas concepções de Freud sobre a psique – e isso parece bem certo – há sim uma disposição pulsional que pode ser associada à acumulação infinita. Pois ele admitiu que uma pulsão parcial, a pulsão anal infantil pode se fixar e se tornar o fundamento de uma atitude na vida adulta voltada para a acumulação. “Assim, por exemplo, uma pessoa pode ter o impulso de guardar dinheiro e outros objetos, porque sublimou o desejo inconsciente de reter fezes”.[vi] Tese que, pelo menos para um economista, parece tímida para explicar a compulsão de acumular.

Trata-se, entretanto, de uma possibilidade que pode não se manifestar em outras circunstâncias. Não parece haver, portanto, na compreensão freudiana do ser social, uma constante que possa fundamentar a tese de que a busca do prazer seria infinita em sentido quantitativo, ou seja, que a pulsão originária seria naturalmente insaciável. Ademais, parece excessivo pensar que Freud tenha explicado, implicitamente, o capitalismo a partir das pulsões que supostamente movem os indivíduos.

De qualquer modo, sendo em princípio infinito em sentido qualitativo – o desejo de viver, conforme Aristóteles, é “infinito” –, o ser humano se mostra em geral insatisfeito pois as pulsões fomentam sempre desejos de novas experiências. Ora, assim permanecem sob as condições sociais que são caracterizadas, como já foi dito, pela carência. Logo, apenas à medida que aparece uma forma social caracterizada como tal por um princípio de infinitude quantitativo, o desejo de viver pode e mesmo deve ser capturado por essa lógica. O ser humano pode aparecer então, erroneamente, como intrinsecamente insaciável, ou seja, como um ser adequado à lógica da acumulação de capital.

Para terminar, considera-se agora o que diz sobre isso um autor bem contemporâneo – Adrian Johnston – que está buscando juntar os saberes da psicanálise e da crítica da economia política de um modo inovador. Ao invés de Marcuse, que parte de Freud, ele pensa mais fortemente a partir de Jacques Lacan. Em seu livro A temporalidade da pulsão[vii], ele apresenta o que chama de “dilema fundamental da pulsão em geral”: “a pulsão paradoxalmente ‘desfruta’ o que deseja exclusivamente à medida que nunca realiza tal desejo” (op. cit., p. xxiii-xxiv). Ora, essa interpretação feita por Adrian Johnston parece tornar as pulsões insaciáveis.

De qualquer modo, eis o que diz: “As pulsões não são reprimidas simplesmente porque estão em conflito com a realidade social e legal do mundo exterior (umwelt). Mesmo se os impedimentos externos forem eliminados, as pulsões ainda assim fabricariam a sua própria repressão a fim de preservar as formas fantasmáticas do gozo” (p. xxiv).

Na verdade, com base supostamente em teorizações de Jacques Lacan, afirma nessa citação que a própria pulsão cria barreiras para si mesma independentemente de quaisquer restrições exteriores. Ela se satisfaz (ou melhor, goza) por meio da perene insatisfação. Ora, assim pensada, torna-se da ordem do mau infinito, uma característica da lógica evolutiva do capital! – não é? Se assim for, outro texto precisa ser escrito para examinar a questão da infinitude do desejo e da riqueza tendo em mente as considerações desse autor.

E este é o problema que, ao fim e ao cabo, pretendo considerar num próximo artigo.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

Nota


[i] Aristóteles, A Política, em tradução de Mário Gama Kury. São Paulo: Editora Madamu, 2021.

[ii] Marcuse, Herbert – Eros e civilização – Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. Segundo Samo Tomšič, “Herbert Marcuse foi indiscutivelmente aquele que levou mais o envolvimento da teoria crítica com a psicanálise freudiana.” Para ele, “a economia libidinal no interior do sistema [capitalista] estava agora organizada em torno do mecanismo da ‘dessublimação repressiva’”. “Da perspectiva psicanalítica – completa Tomšič – “o capitalismo aparece de fato como uma cultura de gozo imposto”. Ver The SAGE Handbook of Marxism, Vol. 2, ed. by B. Skeggs, S. R. Farris, A. Toscano and S. Bromberg, London: SAGE Publications Ltd., 2022.

[iii] A nota de rodapé número cinco do primeiro capítulo de O capital resume a tese de Aristóteles sobre a existência de duas artes de aquisição de bens que se contrapõe: uma produz a “boa vida” e a outra gera a “vida ilimitada”; o advir da crematística transforma a finalidade da vida ao fazer do humano um ser insaciável porque agora ele busca uma riqueza infinita. Ver Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 129.

[iv] Há aqui uma complicação, porque gozo (Lacan) não é prazer (Freud). Mas o que é gozo? Aquilo que a pulsão almeja e que permanece inconsciente. 

[v] Ver Tomšič, Samo – A sociedade não existe? https://aterraeredonda.com.br/a-sociedade-nao-existe/ ou https://eleuterioprado.blog/2023/03/12/a-sociedade-nao-existe-parte-i/

[vi] Ver Fromm, Erich – O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1970, p. 229.

[vii] Johnston, Adrian – Time driven – metapsychology and the splitting of the drive. New York: Northwestern University Press, 2005.

domingo, 19 de março de 2023

 

DECLARAÇÃO DO PARTIDO COMUNISTA DOS EUA SOBRE AS OPERAÇÕES MILITARES RUSSAS NA UCRÂNIA
O tempo para a diplomacia teve que terminar para parar a expansão da OTAN e a campanha em curso de violência e genocídio contra a República Popular de Luhansk (LPR) independente e a República Popular de Donetsk (DPR). Por mais de 30 anos, a Rússia pediu à OTAN que interrompesse sua expansão e levasse a sério as preocupações de segurança da Rússia. O eixo EUA-UE-OTAN não apenas rejeitou as preocupações de segurança russas, mas permaneceu em silêncio quando o povo de Donbass foi bombardeado pelos militares ucranianos usando armamento fornecido pelos EUA e pela OTAN, abrindo caminho para o conflito que se desenrola hoje.
O Partido Comunista dos EUA tem observado os eventos na Rússia, LPR, DPR e Ucrânia por muitos anos. Somos totalmente solidários com o povo das Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk em sua luta contra o regime fascista de Bandera, apoiado pelos EUA-UE-OTAN em Kiev.
Dado o aumento das tensões no sistema imperialista, tanto a Rússia quanto a China estão buscando ativamente destruir a dominação imperialista dos EUA internacionalmente após a contra-revolução na União Soviética em 1991. Arrogância e triunfalismo dos EUA na ordem liberal ocidental liderada por Washington como uma potência internacional unipolar . Eles rapidamente começaram a trabalhar violentamente refazendo o mundo à sua imagem capitalista.
Os líderes americanos e ocidentais prometeram “nem um centímetro a leste” tanto ao secretário-geral soviético Gorbachev quanto ao presidente russo Yeltsin. Eles renegaram suas promessas expandindo a OTAN várias vezes nos últimos trinta anos, de originalmente 12 países para 30 países até 2022 e movendo-se 600 milhas mais perto da fronteira russa.
Os EUA e a OTAN desmembraram violentamente e balcanizaram a Iugoslávia socialista na década de 1990, eventualmente criando Kosovo como um protetorado e base militar fora do território sérvio.
Infelizmente, muitos parecem ter esquecido convenientemente os bombardeios de Belgrado, massacres, uso de materiais radioativos empobrecidos em munições e tensões étnico-religiosas alimentadas pelos imperialistas EUA-UE-NATO.
Putin até admitiu em seu recente discurso sobre o reconhecimento do LPR e do DPR que em 2000 ele havia abordado Bill Clinton com a proposta de que a Rússia pudesse ingressar na OTAN, onde foi rejeitado. O imperialismo norte-americano não pode permitir que um rival participe da pilhagem total do mundo.
Os Estados Unidos e a OTAN continuaram a destruir o Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e Iêmen. Em 2014, os EUA e a OTAN orquestraram um golpe fascista na Ucrânia contra o governo eleito democraticamente. Os imperialistas dos EUA e da OTAN continuam sua violência além da Europa na Ásia, África e América Latina.
O golpe fascista na Ucrânia em 2014 levou ao poder uma junta fascista que reabilitou a memória e o legado de Stepan Bandera, o líder fascista da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) que na Segunda Guerra Mundial foi responsável pelo assassinato de 200.000 judeus ucranianos de 1941 a 1945.
Em julho de 1941, logo após a invasão nazista da URSS, a OUN publicou um panfleto em Lvov, oeste da Ucrânia, proclamando aos judeus: “Jogaremos suas cabeças aos pés de Hitler!” O regime pós-2014 concedeu a Bandera o título mais alto de “Herói da Ucrânia” e aprovou uma lei que proíbe negar seu “heroísmo”.
Ele trouxe neonazistas para a vida política e militar, incluindo o Batalhão Azov e o Setor Direito. Esses fascistas cometeram crimes hediondos, incluindo o incêndio do edifício da Casa Sindical em Odessa em 2014, que matou 48 pessoas. Além disso, o povo de LPR e DPR sofreu menos de 8 anos de ataques militares brutais e bombardeios dessas unidades militares neonazistas que atacaram a infraestrutura civil.
Aos olhos do povo russo, eles lembram as brutais invasões de Napoleão no século 19 e da Alemanha nazista no século 20. Em ambos os casos, a Rússia e sua sucessora, a União Soviética, que incluía a Ucrânia, derrotaram esses exércitos inimigos e os expulsaram pela Europa. Dezenas de milhões perderam suas vidas nessas guerras heróicas. A Rússia e a União Soviética salvaram duas vezes a Europa da tirania. Mais uma vez, o inimigo fascista está se movendo para cercar a Rússia, neste caso a OTAN e a junta fascista pós-2014 na Ucrânia. Isso simplesmente não poderia ser tolerado pela Federação Russa.
A hipocrisia dos Estados Unidos é evidente em seu próprio confronto com Cuba e a União Soviética durante a Crise dos Mísseis de Cuba. Quando Cuba, como nação soberana, pediu à União Soviética ajuda militar e a colocação de armas nucleares para proteger a nascente revolução do imperialismo estadunidense e das tentativas da CIA de derrubar Fidel Castro, os Estados Unidos, preocupados com sua segurança e invocando a Doutrina Monroe, colocou os cubanos contra os soviéticos, quase levando o mundo à beira da aniquilação nuclear. Felizmente, a diplomacia prevaleceu e a guerra total foi evitada. O fato de as preocupações de segurança da Rússia estarem relacionadas à Ucrânia.
Os comunistas são sempre os primeiros a lutar pela paz e pela amizade entre todos os povos e nações. Recordamos a irmandade das nações, a amizade dos povos e a solidariedade entre os povos da RSS da Ucrânia e da RSS da Rússia. Milhões se casaram e tiveram famílias em ambos os lados das fronteiras da RSS da Ucrânia.
Em última análise, somos contra a guerra. Guerras entre estados capitalistas acabam prejudicando a classe trabalhadora e apenas beneficiando suas respectivas classes dominantes. No entanto, quando o imperialismo e o fascismo ameaçam a classe trabalhadora, às vezes é necessário, como em 1941, enfrentá-los com força. Uma guerra antifascista é uma guerra justa. Internacionalmente, chegou a hora de montar uma ofensiva contra o fascismo e sua reabilitação na Europa, nos Estados Unidos e além.
Alguns afirmam que o ímpeto subjacente ao conflito na Ucrânia se desenvolveu a partir do longo e intenso confronto entre os interesses imperialistas dos EUA e as ambições russas, ambos buscando garantir uma maior participação no mercado global. Outros afirmam que o atual conflito entre a Ucrânia e a Rússia serve aos interesses dos EUA para aumentar sua competitividade no mercado da UE, que depende da Rússia para uma parte considerável de suas importações, especialmente gás. De fato, assim que a Rússia lançou sua operação militar na Ucrânia, a Alemanha suspendeu o projeto do gasoduto Nord Stream 2.
O Partido Comunista dos EUA se solidariza com a classe trabalhadora antifascista e os comunistas da Rússia, LPR, DPR e Ucrânia, que anseiam pela derrubada das estátuas de Stepan Bandera e sua laia fascista. Lembre-se dos milhões de soviéticos, incluindo russos e ucranianos juntos, que lutaram e morreram para livrar o mundo do fascismo.
Reconhecemos que os Estados Unidos e a OTAN são a principal causa do conflito. Enquanto milhões nos Estados Unidos sofrem com cuidados de saúde, educação e assistência infantil insuficientes, e com o aumento dos custos para a classe trabalhadora de bens e serviços básicos, sabemos que é a classe dominante dos EUA, os capitalistas dos partidos Democrata e Republicano . que eles são os inimigos da classe trabalhadora americana.
Apelamos ao futuro governo da Ucrânia para legalizar o Partido Comunista Ucraniano, que foi banido pela junta fascista, e permitir que o movimento sindical retome seu trabalho. Apresentamos nossas cordiais saudações fraternas e nossa mais profunda solidariedade aos Partidos Comunistas e Operários da ex-URSS neste tempo de guerra.
NÃO AO FASCISMO! NÃO À OTAN!
NÃO ÀS SANÇÕES!
NÃO À GUERRA COM A RÚSSIA!

Um texto de análise geopolítica de uma extraordinária objetividade

 

A morte da Ucrânia por procuração

Chris Hedges [*]

Proxyboy, ilustração de Mr. Fish.

Há muitas maneiras de um Estado projetar o poder e enfraquecer os adversários, mas as guerras por procuração são uma das mais cínicas. As guerras por procuração devoram os países que pretendem defender. Elas seduzem nações ou insurretos a lutar por objetivos geopolíticos que, em última análise, não são do seu interesse. A guerra na Ucrânia tem pouco a ver com a liberdade ucraniana e muito a ver com a degradação do exército russo e o enfraquecimento do poder de Vladimir Putin. E, quando a Ucrânia caminhar para a derrota, ou quando a guerra chegar a um impasse, a Ucrânia será sacrificada como muitos outros Estados, mencionado por um dos membros fundadores da CIA, Miles Copeland Jr., como o "Jogo das Nações" e "a amoralidade da política de poder".

Nas minhas duas décadas como correspondente estrangeiro cobri guerras por procuração, nomeadamente na América Central, onde os EUA armaram os regimes militares em El Salvador e Guatemala e os rebeldes Contra, tentando derrubar o governo sandinista da Nicarágua. Informei sobre a insurreição no Punjab, uma guerra por procuração fomentada pelo Paquistão. Cobri os curdos no norte do Iraque, apoiado e depois traído mais de uma vez pelo Irão e Washington. Durante a minha estadia no Médio Oriente, o Iraque forneceu armas e apoio aos Mujahedeen-e-Khalq (MEK) para desestabilizar o Irão. Quando estive na ex-Jugoslávia, Belgrado pensava que ao armar sérvios bósnios e croatas, poderia absorver a Bósnia e partes da Croácia para uma Grande Sérvia.

As guerras por procuração são notoriamente difíceis de controlar, especialmente quando as aspirações dos que combatem e dos que enviam as armas divergem. Têm também o mau hábito de atrair diretamente para o conflito patrocinadores de guerras por procuração, como aconteceu com os EUA no Vietname e com Israel no Líbano. Há pouca responsabilidade na distribuição de armas aos exércitos por procuração, quantidades significativas das quais acabam no mercado negro ou nas mãos de senhores da guerra ou de terroristas. A CBS News relatou no ano passado que cerca de 30% das armas enviadas para a Ucrânia conseguem chegar à linha da frente, um relatório que preferiu desdizer-se parcialmente sob forte pressão de Kyiv e Washington. O desvio generalizado para o mercado negro de equipamento militar e médico doado à Ucrânia foi também documentado pela jornalista norte-americana Lindsey Snell. As armas nas zonas de guerra são mercadorias lucrativas. Havia sempre grandes quantidades para venda nas guerras que cobri.

Senhores da guerra, gangsters e bandidos – a Ucrânia há muito que é considerada um dos países mais corruptos da Europa – são transformados pelos Estados patrocinadores em heróicos combatentes da liberdade. O apoio aos que combatem estas guerras por procuração é uma celebração da nossa alegada virtude nacional, especialmente sedutora após duas décadas de fiascos militares no Médio Oriente. Joe Biden, com números sombrios nas sondagens, pretende candidatar-se a um segundo mandato como presidente "em tempo de guerra" que apoia a Ucrânia, à qual os EUA já se comprometeram com 113 mil milhões de dólares em assistência militar, económica e humanitária.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia "o mundo inteiro enfrentava um teste histórico", disse Biden após uma visita relâmpago a Kiev. "A Europa estava a ser testada. A América estava a ser testada. A NATO estava a ser posta à prova. Todas as democracias estavam a ser postas à prova".

Ouvi sentimentos semelhantes expressos para justificar outras guerras por procuração.

"Estes combatentes pela liberdade são nossos irmãos, e nós devemos-lhes a nossa ajuda", disse Ronald Reagan sobre os Contras, os quais pilharam, violaram e massacraram tudo à sua frente na Nicarágua. "Eles são o equivalente moral dos nossos Pais Fundadores e os homens e mulheres corajosos da Resistência francesa", acrescentou Reagan. "Não nos podemos afastar deles, pois a luta aqui não é direita contra esquerda, é o certo contra o errado".

"Quero ouvi-lo dizer que vamos armar o Exército Sírio Livre", disse John McCain sobre o Presidente Donald Trump. "Vamos dedicar-nos ao derrube de Bashar al-Assad. Vamos fazer com que os russos paguem um preço pelo seu envolvimento. Todos os intervenientes aqui vão ter de pagar uma multa e os Estados Unidos da América vão estar do lado das pessoas que lutam pela liberdade".

Aqueles que se fazem passar por heróis da resistência, como o Presidente Volodymyr Zelensky ou o Presidente Hamid Karzai no Afeganistão, são frequentemente problemáticos, especialmente porque os seus egos e contas bancárias inflacionam. A enxurrada de encómios efusivos dirigidos a procuradores pelos seus patrocinadores em público raramente corresponde ao que eles dizem deles em privado. Nas conversações de paz de Dayton, onde o presidente sérvio Slobodan Milosevic vendeu os líderes dos sérvios da Bósnia e dos croatas da Bósnia, disse dos seus proxies: "[eles] não são meus amigos. Eles não são meus colegas...são merda".

"Dinheiro sujo escorria por todo o lado", escreveu o Washington Post depois de obter um relatório interno produzido pelo Gabinete do Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão.

"O maior banco do Afeganistão liquefez-se numa fossa de fraude. Os viajantes transportavam malas carregadas com 1 milhão de dólares, ou mais, em voos que partiam de Cabul. Mansões conhecidas como 'palácios de papoilas' emergiram dos escombros para albergar cabecilhas do ópio. O Presidente Hamid Karzai foi reeleito depois de os seus amigos encherem milhares de urnas de votos. Mais tarde, admitiu que a CIA tinha, durante anos, entregado sacos de dinheiro no seu escritório, considerando isso 'nada de anormal'".

"Em público, quando o Presidente Barack Obama intensificou a guerra e o Congresso aprovou milhares de milhões de dólares adicionais de apoio, o comandante-em-chefe e os legisladores prometeram reprimir a corrupção e responsabilizar os afegãos corruptos", noticiou o jornal. "Na realidade, os funcionários norte-americanos recuaram, fizeram vista grossa e deixaram a roubalheira ficar mais enraizada do que nunca, segundo uma série de entrevistas confidenciais do governo obtidas por The Washington Post".

Aqueles que são celebrados como o baluarte contra a barbárie quando as armas lhes são enviadas, são esquecidos quando os conflitos terminam, como no Afeganistão e no Iraque. Os antigos combatentes por procuração têm que fugir do país ou sofrer as vinganças dos que combatiam, como aconteceu com as tribos Hmong abandonadas no Laos e os vietnamitas do Sul. Os antigos patrocinadores, outrora pródigos em ajuda militar, ignoram pedidos desesperados de assistência económica e humanitária, quando os deslocados pela guerra passam fome e morrem por falta de cuidados médicos. O Afeganistão, pela segunda vez, é o exemplo desta insensibilidade imperial.

O colapso da sociedade civil gera violência sectária e extremismo, em grande parte contrário aos interesses daqueles que fomentaram as guerras por procuração. As milícias por procuração de Israel no Líbano, juntamente com a sua intervenção militar em 1978 e 1982, foram concebidas para desalojar a Organização de Libertação da Palestina (OLP) do país. Este objetivo foi alcançado. Mas a retirada da OLP do Líbano deu origem ao Hezbollah, um adversário muito mais militante e eficaz, juntamente com o domínio sírio do Líbano. Em setembro de 1982, durante três dias, o Partido Kataeb libanês, mais conhecido como as Falanges – apoiado pelos militares israelenses – massacrou entre 2.000 e 3.500 refugiados palestinianos e civis libaneses nos campos de refugiados de Sabra e Shatila. Isso provocou a condenação internacional e agitação política dentro de Israel. Os críticos chamaram ao prolongado conflito "Lebanam", que aglutinava as palavras Vietname e Líbano. O filme israelense " Valsa com Bashir" documenta a depravação e a morte gratuita de milhares de civis por Israel e seus proxies durante a guerra no Líbano.

As guerras por procuração, como sublinhou Chalmers Johnson, provocam reações inesperadas. No Afeganistão, o apoio dos mujahedines a combater os soviéticos, que incluía armar grupos como os liderados por Osama bin Laden, deu origem aos Talibãs e à al-Qaeda. Também espalhou o jihadismo reacionário pelo mundo muçulmano, aumentou os ataques terroristas contra alvos ocidentais que culminaram nos ataques do 11 de setembro e alimentou duas décadas de fiascos militares liderados pelos EUA no Afeganistão, Iraque, Síria, Somália, Líbia e Iémen.

Se a Rússia vencer na Ucrânia, se Putin não for afastado do poder, os EUA não só terão cimentado uma potente aliança entre a Rússia e a China, como também terão assegurado um antagonismo com a Rússia que voltará a assombrar-nos. A avalanche de milhares de milhões de dólares de armas na Ucrânia, a utilização da secreta dos EUA para eliminar generais russos e afundar o navio de guerra Moskva, a explosão dos gasodutos Nord Stream e as mais de 2.500 sanções dos EUA contra a Rússia, não serão esquecidas por Moscovo.

"De certa forma, a reação inesperada é simplesmente outra forma de dizer que uma nação colhe aquilo que semeia", escreve Johnson, "Embora as pessoas normalmente saibam o que semearam, a nossa experiência nacional de reação inesperada é raramente imaginada em tais termos, porque muito do que os gestores do império americano semearam foi mantido em segredo".

Nas guerras por procuração, os que são apoiados, nomeadamente os ucranianos, têm muitas vezes poucas hipóteses de vitória. Armas refinadas como os tanques M1 Abrams são em grande parte inúteis se aqueles que as operam não tiverem passado meses e anos a serem treinados. Antes da invasão israelense do Líbano em junho de 1982, o bloco soviético forneceu aos combatentes palestinianos armas pesadas, incluindo tanques, mísseis antiaéreos e artilharia. A falta de formação tornou essas armas ineficazes contra o poder aéreo, a artilharia e as unidades mecanizadas israelenses.

Os Estados Unidos sabem que o tempo está a esgotar-se para a Ucrânia. Sabem que as armas de alta tecnologia não serão dominadas a tempo de neutralizar uma ofensiva russa sustentada. O secretário da Defesa Lloyd Austin advertiu em janeiro que a Ucrânia tem "uma janela de oportunidade aqui, entre agora e a Primavera". "Isso não é muito tempo", acrescentou.

Porém, a vitória não é o fundamental. O objetivo é a destruição máxima. Mesmo que a Ucrânia seja forçada, na derrota, a negociar com a Rússia e a conceder território pela paz, bem como a aceitar o estatuto de nação neutra, Washington terá atingido o seu objetivo primordial de enfraquecer a capacidade militar da Rússia e isolar Putin da Europa.

As ilusões cegam os que montam guerras por procuração. Houve pouco apoio para os Contras na Nicarágua ou para o MEK no Irão. O armamento dos chamados rebeldes "moderados" na Síria viu armas passarem para as mãos dos jihadistas reacionários.

As guerras por procuração acabam normalmente com a nação ou grupo que combate em nome do Estado patrocinador traído. Em 1972, a administração Nixon forneceu milhões de dólares em armas e munições aos rebeldes curdos no norte do Iraque para enfraquecer o governo iraquiano, que, na altura, era visto como demasiado próximo da União Soviética. Ninguém, muito menos os EUA e o Irão, que entregaram as armas aos combatentes curdos, queria que os curdos criassem um Estado próprio. O Iraque e o Irão assinaram o Acordo de Argel de 1975, tendo os dois países resolvido as disputas ao longo da sua fronteira comum. O acordo também pôs fim ao apoio militar aos curdos.

Os militares iraquianos lançaram logo uma campanha implacável de limpeza étnica no norte do Iraque. Milhares de curdos, incluindo mulheres e crianças, desapareceram ou foram mortos. Aldeias curdas foram arrasadas. A situação desesperada dos curdos foi ignorada, pois, como Henry Kissinger disse na altura, "a intervenção secreta não deve ser confundida com o trabalho missionário".

O governo islâmico de Teerão retomou a ajuda militar aos curdos durante a guerra entre o Irão e o Iraque, de 1980 a 1988. A 16 de março de 1988, o Presidente iraquiano Saddam Hussein lançou gás mostarda e os agentes nervosos sarin, tabun e VX na cidade curda de Halabja. Cerca de 5.000 pessoas morreram em minutos e cerca de 10.000 ficaram feridas. A administração Reagan, que apoiava o Iraque, minimizou os crimes de guerra cometidos contra os seus antigos aliados curdos.

A aproximação do Presidente Richard Nixon à China, noutro exemplo, incluiu o término da assistência secreta aos rebeldes tibetanos.

A traição é o ato final em quase todas as guerras por procuração.

O fornecimento de armas à Ucrânia não é uma obra missionária. Não tem nada a ver com liberdade. Tem a ver com o enfraquecimento da Rússia. Se tirarmos a Rússia da equação haverá pouco apoio tangível para a Ucrânia. Há outros povos ocupados, incluindo os palestinianos, que sofrem tão brutalmente e há muito mais tempo do que os ucranianos. Mas a NATO não está a armar os palestinianos para lutarem contra os seus ocupantes israelenses ou a mantê-los como combatentes heróicos da liberdade. O nosso amor pela liberdade não se estende aos palestinianos ou ao povo do Iémen atualmente bombardeado com armas britânicas e americanas, nem aos curdos, yazidis e árabes que resistem à Turquia, um membro de longa data da NATO, na sua ocupação e guerra de drones em todo o norte e leste da Síria. O nosso amor pela liberdade estende-se apenas a quem serve o nosso "interesse nacional".

Chegará uma altura em que os ucranianos, tal como os curdos, se tornarão descartáveis. Desaparecerão, como muitos outros antes deles, do nosso discurso nacional e da nossa consciência. Irão alimentar durante gerações a sua traição e sofrimento. O império americano passará a utilizar outros, talvez o povo "heróico" de Taiwan, para promover a sua busca fútil pela hegemonia global. A China é o grande prémio para os nossos Dr. Strangeloves. Irão amontoar ainda mais cadáveres e namoriscar com a guerra nuclear para reduzir o crescente poder económico e militar da China. Trata-se de um jogo antigo e previsível. Deixa na sua esteira nações em ruínas e milhões de pessoas mortas e deslocalizadas. Alimenta a arrogância e a auto-ilusão dos mandarins em Washington que se recusam a aceitar a emergência de um mundo multipolar. Se não for controlado, este "jogo de nações" pode matar-nos.»

15/Março/2023

[*] Jornalista vencedor do Prémio Pulitzer, foi correspondente estrangeiro durante quinze anos para The New York Times, onde foi Chefe do Gabinete do Médio Oriente e Chefe do Gabinete dos Balcãs. Trabalhou anteriormente no estrangeiro para The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR. É o apresentador de The Chris Hedges Report.

O original encontra-se em www.mintpressnews.com/chris-hedges-ukraines-death-proxy/284020/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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