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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Friedrich Engels Publicista Resultado de imagem para Friedrich Engels Descrição Friedrich Engels foi um empresário industrial e teórico revolucionário prussiano, nascido na atual Alemanha, que junto com Karl Marx fundou o chamado socialismo científico ou marxismo. Seu pai era dono de uma grande indústria têxtil em Salford, Inglaterra. Wikipédia Nascimento: 28 de novembro de 1820, Barmen, Alemanha Falecimento: 5 de agosto de 1895, Londres, Reino Unido Cônjuge: Lizzie Burns (de 1878 a 1878) Influenciado por: Karl Marx, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, MAIS Filmes: Cedo Demais/Tarde Demais Livros Ver mais de 45 Manifesto Comunista (1848) Manifesto Comunista 1848 A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884) A Origem da Família... 1884 A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845) A Situação da Class... 1845 Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1880) Do Socialismo Utópico... 1880 Pesquisas relacionadas Ver mais de 15 Karl Marx Karl Marx Lenin Lenin Georg Wilhelm Friedrich Hegel Georg Wilhelm Friedrich... Leon Trótski Leon Trótski Comentários Queria dizer: Karl Marx (Filósofo) Nascimento: 5 de maio de 1818, Tréveris, Alemanha Falecimento: 14 de março de 1883, Londres, Reino Unido

legado de Engels na prática das ciências da
natureza no século XX

Olival Freire Jr.*

É bem conhecido o interesse de Friedrich Engels nas ciências da
natureza, tema ao qual dedicou algumas de suas reflexões filosóficas.
Face à influência do marxismo na configuração do século XX, o exame da
incidência do pensamento de Engels na prática dessas ciências é tema
de interesse atual. Esse tema permite discutir relações entre ciência e
ideologia, ciência e filosofia, desenvolvimento da ciência em contextos
de fortes restrições à livre circulação de informações, como a URSS
stalinista, e incidência do marxismo na intelectualidade ocidental. O foco
desse texto, portanto, não será uma análise teórico-filosófica do
pensamento de Engels sobre as ciências da natureza. Ele visa, antes,
uma recensão da historiografia disponível relacionada à influência do
materialismo dialético nas ciências da natureza, especialmente na antiga
União Soviética, ao longo do século XX. Serão analisadas, em especial,
as obras de Loren Graham e Alexei Kojevnikov.
O recuo histórico, uma historiografia mais profissionalizada e, em
especial, as novas possibilidades de investigação, ensejadas pelo
contexto do período posterior à guerra fria, têm permitido uma avaliação
mais multilateral da fortuna do pensamento de Engels nas ciências da
natureza no século XX. Desse modo, ficaram para trás tanto um tipo de
literatura caracterizada pela busca de “aplicações” do materialismo
dialético ou “ilustrações” da dialética nessas ciências, tão comum entre
marxistas, quanto o foco unilateral em episódios desastrosos da história
soviética, como o caso Lysenko, usual entre observadores ocidentais. A
imagem que se pode formar em decorrência da recensão desses estudos
históricos é que o pensamento de Engels, e o marxismo em geral, foi, em
um número de casos, um quadro de pensamento que se revelou
inspirador para o desenvolvimento das ciências. Contudo, esse
pensamento não se prestou a interpretações uniformes, tendo mesmo
servido de base para conclusões opostas em certos episódios da história
da ciência, em especial no caso da interpretação da física quântica. O
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O legado de Engels na prática das ciências...
pensamento de Engels desempenhou, nesse sentido, um papel análogo
ao das boas heranças intelectuais presentes na história da filosofia e da
ciência, as quais têm sido objeto de desenvolvimentos divergentes pelos
seus êmulos.
Ciência e filosofia na União Soviética
Loren Graham, professor de História da Ciência no MIT, é
considerado hoje o decano da história da ciência russa e soviética. Ele
iniciou suas pesquisas ainda na década de 1950, em 1967 publicou The
Soviet Academy of Sciences and The Communist Party, 1927-1932,
seguida de Science and Philosophy in the Soviet Union, em 1972. Esta
obra foi ampliada e atualizada como Science, Philosophy, and Human
Behavior in the Soviet Union, em 1987 e, após a queda do regime
soviético, ele sintetizou suas investigações em uma obra, destinada a
um público de não especialistas, denominada Science in Russia and the
Soviet Union – A Short History1. Embora Graham tenha um largo interesse
na história da ciência e da tecnologia na URSS, o tema isolado ao qual
ele prestou mais atenção foi o da relação entre ciência e filosofia na
antiga república soviética2. Ele examinou as relações entre ciência, filosofia
e ideologia, na experiência soviética, no caso das seguintes disciplinas e
temas: origem da vida, genética, fisiologia, psicologia, debate natureza/
educação, biologia, cibernética, química, mecânica quântica, relatividade
e cosmologia. Interessa aqui comparar algumas das conclusões a que
Graham chegou para os casos da genética e da mecânica quântica.
Graham sustenta que a controvérsia melhor conhecida fora da
União Soviética, aquela associada ao lyssenkismo, é a menos relevante
para se discutir o materialismo dialético em um sentido filosófico3. Como
se sabe, essa controvérsia levou, em 1948, à entronização da teoria do
agrônomo T. D. Lysenko, uma espécie de teoria da herança de caracteres
adquiridos, como doutrina oficial do partido e do estado soviético, em
detrimento da genética mendeliana. Apoiando-se em historiadores como
David Joravsky e Zhores Medvedev, além de seus próprios estudos,
Graham conclui que a ascensão do lyssenkismo foi mais o resultado de
uma série de eventos econômicos, sociais e políticos que uma decorrência
de alguma forma de interpretação do materialismo dialético. Dentre os
fatores arrolados por Graham, nós encontramos a suspeita difusa em
relação aos cientistas e à ciência burgueses, algo que tem suas origens
antes da segunda guerra, a extrema centralização do poder soviético, e
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Olival Freire Jr.
o papel e poder pessoal de Stalin; fatores esses amplificados pela
exacerbação da tensão entre URSS e Estados Unidos que caracterizou o
início da guerra fria. Para Graham, as histerias desencadeadas em cada
um desses países lembram as disputas no passado sobre questões
religiosas. Ele considera que a condenação da genética na URSS foi um
episódio análogo à condenação do heliocentrismo pela Igreja Católica,
no início do século XVII, em meio às tensões exacerbadas pela Reforma
e pela Contra-reforma.
Em contraste com o caso da condenação da genética, as
discussões soviéticas sobre a mecânica quântica teriam sido mais
relevantes para o materialismo dialético enquanto uma filosofia da ciência.
A controvérsia sobre a interpretação da mecânica quântica, entretanto,
levou a resultados muito diversos daqueles do caso da genética, devido
a fatores políticos e contextos diversos. Conforme apontado por Graham,
a ênfase dos fundadores da mecânica quântica, como Niels Bohr e Werner
Heisenberg, sobre o papel das condições de observação como um
elemento definidor dos fenômenos quânticos, representou um desafio
para a premissa do materialismo dialético de uma existência do mundo
material – matéria-energia – independente dos sentidos e sensações.
Graham focaliza três soviéticos que desempenharam uma liderança
intelectual nos debates sobre a mecânica quântica: os físicos V. A. Fock e
D. I. Blokhintsev e o filósofo M. E. Omel’ianovskii. Contudo, esses três
pensadores não adotaram as mesmas posições nesses debates, ao
contrário, eles estiveram em campos opostos. A essa altura, Graham se
apóia em seu conhecimento sobre o persistente debate no ocidente
acerca de tais questões para concluir que as clivagens soviéticas na
controvérsia sobre a mecânica quântica são essencialmente similares
àquelas existentes em todos os outros lugares onde esse debate tem
ocorrido. Se Blokhintsev adotou posições próximas às críticas de Albert
Einstein, Fock esteve mais próximo das posições de Niels Bohr. Essa
similaridade poderia levar à conclusão da ausência de relevância do
materialismo dialético para esse debate, mas Graham sustenta que uma
opinião distinta parece mais plausível e lembra que o conflito entre
materialismo e idealismo não nasceu na URSS, sendo antes parte
integrante da história da filosofia. Muito do que no debate no ocidente
recebeu o nome de realismo poderia ser associado ao materialismo
enquanto posição filosófica.
Poderia se pensar que o interesse de cientistas soviéticos em
questões filosóficas teria sido condicionado pela conjuntura política e
ideológica da URSS. Graham admite esse condicionamento, mas sustenta
que ele por si só não pode explicar a história da ciência soviética. Ainda
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O legado de Engels na prática das ciências...
sobre o debate sobre a mecânica quântica, o historiador norte-americano
observa que o interesse nas questões filosóficas teve continuidade mesmo
depois do período de maior tensão ideológica entre finais da década de
1940 e a primeira metade da década de 1950. Independentemente do
caso da mecânica quântica, Graham aponta em várias disciplinas um
número expressivo de criativos e reconhecidos cientistas soviéticos para
os quais o materialismo soviético teria influenciado positivamente a
articulação de suas próprias idéias, a exemplo dos casos de A. I Oparin,
L. S. Vygotsky, A. R. Luria, O. Iu. Schmidt, e S. L. Rubinshtein. Em seu
Science in Russia, Graham distinguiu o que denominou de fase autêntica
do materialismo dialético do que intitulou ideologia stalinista, e
exemplificou a primeira com os casos de Vygotsky, Oparin e Fock.
Ciência, ideologia e política na União Soviética
Alexei Kojevnikov é russo, historiador da ciência, com filiações à
Universidade da Geórgia, nos EUA, e ao Instituto da História da Ciência e
da Tecnologia, em Moscou. Ele é um historiador de uma geração bem
mais jovem que a de Loren Graham, mas é um pesquisador já bem
conhecido e respeitado pela qualidade de suas publicações em revistas
especializadas. Mais recentemente, Kojevnikov publicou o livro Stalin’s
Great Science – The Times and Adventures of Soviet Physicists, que
destaca-se pela forte inclusão da política entre as dimensões a serem
consideradas no trato das relações entre ciência e ideologia na URSS4. O
livro de Kojevnikov é dedicado ao que pode ser considerado um paradoxo:
o desenvolvimento científico e tecnológico de primeira linha em condições
de violência política, escassos contatos internacionais e severas
restrições à liberdade de informação. Os que conhecem a física ou a
história da física no século XX sabem que tal paradoxo relaciona-se antes
de tudo a uma situação de fato, a da excelência da física soviética no
século passado.
Kojevnikov contrasta seu livro com a tese, formulada por Karl
Popper, que ciência e democracia política são indissociáveis e que uma
não pode se desenvolver sem a outra. Embora Popper tenha escrito A
sociedade aberta e seus inimigos [publicado em 1950, edição brasileira
em 1974] no contexto de seu exílio na Nova Zelândia, decorrência da
anexação da Áustria pela Alemanha nazista, nem Popper nem seus
leitores limitaram o alcance dessa tese. A União Soviética era o contra
exemplo natural a essa tese. Afinal, “as piores décadas do domínio
ditatorial de Stalin foram também o tempo dos maiores progressos
atingidos pela ciência e tecnologia em solo russo, desde os tempos de
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Olival Freire Jr.
Pedro o Grande”. Kojevnikov argumenta que o contexto da Guerra Fria
impediu o reconhecimento desse paradoxo porque as administrações
das duas grandes potências, por razões diferentes, preferiram considerá-
lo inexistente. Para os administradores comunistas soviéticos, as políticas
adotadas eram tão científicas e democráticas quanto a própria ciência, e
o êxito da ciência soviética parecia confirmar a superioridade da
“democracia soviética”. Aos olhos dos ideólogos anticomunistas, a
denúncia do sistema político soviético como antidemocrático requeria
evidenciar as falhas e derrotas da ciência soviética. Não por acaso, o
caso Lysenko e o banimento da pesquisa em genética entre 1948 e 1964
foi o episódio da ciência soviética que recebeu maior atenção no Ocidente,
tanto entre historiadores quanto entre publicistas. Kojevnikov deixa tais
estereótipos de lado e nos fornece uma visão menos enviesada da história
da ciência soviética em seus contextos social, político e ideológico. Stalin’s
Great Science é, então, um produto historiográfico permitido pela
conjuntura pós Guerra Fria, ao tempo em que se insere na melhor tradição
de rigor acadêmico da história da ciência soviética.
Ao analisar como as revoluções conceituais associadas à
relatividade e à teoria quântica interagiram com o contexto da Rússsia
revolucionária da década de 1920, Kojevnikov argumenta que a linguagem
política revolucionária influenciou o modo pelo qual os jovens físicos
teóricos abordaram os problemas postos e as soluções que eles
obtiveram, especialmente via a metáfora da liberdade e do coletivismo
no trato de problemas em física do estado sólido. Muito interessante é o
estudo biográfico de Lev Landau, no qual a reconhecida genialidade do
físico soviético é posta no contexto de uma sociedade em processo de
bruscas transformações, o que teria permitido e favorecido a sua rápida
projeção como físico teórico. Para estudar a relação entre ciência,
patrocínio estatal e modernização tecnológica no contexto da sociedade
estalinista madura, o autor toma como estudos de caso a biografia do
físico Piotr Kapitza e a construção da bomba atômica soviética, mostrando
como nos dois casos os físicos atuaram politicamente mesmo em um
contexto adverso à atividade política fora dos marcos do partido soviético.
Os capítulos mais audaciosos, entretanto, são dedicados às relações
entre ciência e ideologia sob a era Stalin. O autor recusa visões simplistas
herdadas da época da Guerra Fria, segundo as quais ciência e ideologia
estariam sempre em conflito e oposição. Através de uma minuciosa análise
da complexidade dessas relações, Kojevnikov argumenta que os físicos
exploraram aquela conjuntura para fazer avançar suas agendas. Isso
fica evidenciado na análise da trajetória de Sergei Vavilov, que presidiu a
Academia de Ciências no período da expansão pós Segunda Guerra, e
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O legado de Engels na prática das ciências...
da sua contribuição à formatação do papel da ciência na sociedade
soviética. Adicionalmente, uma minuciosa reconstrução da entronização
do Lyssenkismo, além de uma comparação com as situações de outras
discussões ideológicas, leva o autor a propor uma explicação de porque
tais discussões ideológicas no ambiente dos físicos e dos lingüistas tiveram
conseqüências totalmente distintas do caso da genética; explicação que
apela tanto para o papel do poder pessoal de Stalin quanto para as
especificidades de cada uma dessas disciplinas científicas.
Materialismo dialético e ciências da natureza no
Ocidente
O materialismo dialético também incidiu na produção das ciências
da natureza nos países capitalistas ocidentais. Sem a expectativa de
uma recensão exaustiva dos estudos históricos existentes, apontarei
apenas alguns aspectos dessa faceta da interação entre ciência, filosofia
e ideologia. A atenção dispensada ao lyssenkismo na URSS teve a sua
contrapartida em um certo número de estudos que analisaram a adesão
dogmática de um número de partidos comunistas às posições soviéticas
contrárias à genética mendeliana. Esta adesão trouxe graves prejuízos
intelectuais e sociais, especialmente na França, na Bélgica e na Inglaterra,
como discutido por Joel e Dan Kotek, e por Stéphane Tirard5. Estudos
históricos mais recentes têm, entretanto, chamado atenção para um outro
aspecto, que havia sido subestimado no contexto intelectual da guerra
fria. De modo similar ao que Graham identificou como fase autêntica do
materialismo dialético na URSS, também entre cientistas ocidentais
influenciados pelo marxismo podem ser encontrados significativos
exemplos de uma influência fecunda dessa filosofia na produção da ciência.
Em Stalin’s Great Science, Kojevnikov argüiu que certos casos
mostravam uma influência favorável do pensamento marxista na produção
da física teórica soviética. Ele mostrou, convincentemente, que a idéia
da relação entre liberdade e coletivismo foi uma metáfora inspiradora
para uma série de trabalhos de físicos soviéticos, como Frenkel e Landau,
nos quais a idéia de excitações coletivas se revelou frutífera em física da
matéria condensada. Em trabalho anterior Kojevnikov havia argüido
também que inspiração similar pode ser encontrada nos trabalhos do
físico marxista norte americano David Bohm sobre física do plasma6.
Finalmente, Kojevnikov sustenta que a idéia de excitação coletiva veio
junto com a idéia de quase-partículas e que só a segunda sobreviveu na
literatura da física no ocidente, incorporada à teoria de bandas, mas
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tratando elétrons em metais como elétrons livres, e não incorporando os
vínculos de um elétron a todos os outros em um metal. De modo que o
físico que hoje trabalha com teoria de bandas em física da matéria
condensada não percebe que as raízes inspiradoras dessa idéias devem
ser buscadas no solo do pensamento social socialista do século XX.
Estudos sobre o caso de cientistas marxistas ocidentais,
bioquímicos, biofísicos e físicos, que se dedicaram ao problema da origem
da vida, a exemplo da tese de doutorado de Stéphane Tirard, têm chegado
a conclusões similares às de Graham e Kojevnikov7. Outro caso
extremamente interessante, embora menos estudado no âmbito da
história da ciência, é o caso do grupo de físicos japoneses, liderado por
Mituo Taketani e Shoichi Sakata, que usou conscientemente o
materialismo dialético como recurso metodológico e heurístico em suas
pesquisas originais sobre a física das partículas elementares8. Por fim,
existiu também uma ressonância entre materialismo dialético e o debate
sobre a interpretação da mecânica quântica nos países ocidentais. Essa
influência foi de tal ordem, especialmente na década de 1950, que Max
Jammer, historiador da física, sugeriu como problema a ser investigado
saber até que ponto a crescente influência do marxismo no período
posterior à segunda guerra teria sido responsável pela crescente
oposição à interpretação usual da mecânica quântica, dita da
complementaridade, nos países ocidentais. A questão sugerida por
Jammer permanece aberta9. Os estudos disponíveis sobre esse caso já
nos permitem, entretanto, discutir uma outra faceta da relação entre
materialismo dialético e ciências da natureza, a pluralidade das
interpretações marxistas.
A pluralidade marxista e as ciências da natureza
A controvérsia sobre a interpretação da mecânica quântica foi um
dos aspectos cruciais da história da ciência no século XX, infelizmente
pouco conhecido fora de círculos especializados. Ela contrapôs dois
gigantes da física, Albert Einstein e Niels Bohr. Impressionado pela
profundidade, significado e alcance da controvérsia, Karl Popper
denominou-a O cisma da física, enquanto o historiador Max Jammer
denominou-a uma “história sem fim” para descrever a persistência da
controvérsia10. Essa controvérsia também cindiu os marxistas. Se
tomarmos como referência as posições de Bohr e Einstein, nós
encontraremos ao lado de Bohr, físicos marxistas como Leon Rosenfeld e
Vladmir Fock, e ao lado de Einstein, físicos marxistas como Blokhintsev,
Jean-Pierre Vigier, David Bohm e Franco Selleri. Na tensão presente na
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O legado de Engels na prática das ciências...
idéia de dialética materialista, Rosenfeld acentuou o pólo da dialética.
Ele viu a complementaridade como a primeira grande demonstração da
dialética operando nas ciências da natureza. Blokhintsev optou pelo pólo
materialista e viu a ênfase que a complementaridade coloca nos processos
de observação para a definição dos fenômenos quânticos uma concessão
ao idealismo. Einstein diria algo análogo na defesa do realismo. O caso
de Bohm e Vigier tem um interesse adicional porque esses físicos
ocidentais, altamente criativos, diga-se de passagem, viram o
determinismo como um valor epistemológico inerente ao materialismo
dialético e construíram a interpretação causal da mecânica quântica na
tentativa de resgatar o determinismo no âmbito dos fenômenos quânticos.
Se a cisão entre Einstein e Bohr é a imagem mais emblemática
das implicações filosóficas da física contemporânea, os debates mais
acirrados e ásperos ocorreram, entretanto, entre dois dos físicos
marxistas já mencionados, Rosenfeld e Bohm11. O físico belga, conhecido
como o principal assistente de Niels Bohr, aderiu ao marxismo nos fins da
década de 1920, professou um marxismo sofisticado e foi bastante crítico
em relação ao que os soviéticos, desde Lênin do Materialismo e
empiriocriticismo a Stalin do Materialismo Dialético e Materialismo
Histórico, apresentavam como expressões do materialismo dialético.
Rosenfeld poderia ser considerado mais próximo do marxismo ocidental,
seguindo terminologia de Perry Anderson, que do marxismo soviético.
Como a complementaridade de Niels Bohr se converteu na ortodoxia entre
os físicos, ortodoxia descrita por Max Jammer com a expressão
“monocracia da escola de Copenhague”, nós podemos considerar que
Rosenfeld combinou a ortodoxia na mecânica quântica com a heterodoxia
no marxismo. O físico norte-americano David Bohm pode ser considerado
o inverso, ortodoxo no marxismo e heterodoxo na interpretação da
mecânica quântica. Ele se filiou ao Partido Comunista americano durante
a segunda guerra mundial, quando realizava seu doutorado em Berkeley
sobre a orientação de Robert Oppenheimer, e manteve essas convicções
ideológicas até 1957, quando rompeu com o marxismo. Bohm conheceu
o materialismo dialético possivelmente através da leitura de manuais
soviéticos e de textos de Engels.
Curioso, para a história do Brasil, é que parte desse debate
ocorreu no solo brasileiro. Bohm foi vítima da histeria macartista e desse
modo perdeu a posição que tinha na universidade de Princeton e a
possibilidade de continuar trabalhando nos Estados Unidos. Encontrou
refúgio no Brasil, como professor da Universidade de São Paulo, e aqui
permaneceu entre fins de 1951 e início de 1955. Tendo seu passaporte
confiscado pelos oficiais americanos, quando já estava em São Paulo,
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Olival Freire Jr.
Bohm buscou a cidadania brasileira para viajar ao exterior. Os EUA
retiraram então sua cidadania americana. Por essa razão, Bohm viveu
em Israel e depois na Inglaterra, como cidadão brasileiro por mais de
trinta anos, pois só conseguiu recuperar a cidadania americana em
processo judicial em 1986. Rosenfeld visitou o Brasil, em 1953, interessado
no debate com Bohm. Dentre os interlocutores brasileiros de Bohm
encontrava-se o físico brasileiro, também comunista, Mario Schenberg. A
identidade comum de judeus e comunistas, entre Bohm e Schenberg,
não era estendida aos problemas de interpretação da mecânica quântica,
tema sobre o qual Schenberg tinha opiniões próprias que o levavam a
considerar a ênfase de Bohm na recuperação do determinismo uma
posição pouco dialética. Schenberg sugeriu que Bohm seguisse o conselho
de Lênin de que todos os bons comunistas deveriam estudar Hegel. A
influência de Schenberg pode ser identificada em desenvolvimentos
ulteriores do pensamento de Bohm, especialmente em seu Causality and
Chance in Modern Physics. Observo, incidentalmente, que Mário
Schenberg foi um pensador marxista bastante sofisticado; uma avaliação
mais profunda e multilateral de seu pensamento seria de interesse para
a história do marxismo no Brasil12.
Conclusão
Existe um número significativo de casos nos quais o materialismo
dialético, tanto como imagem de mundo quanto como imagem de ciência,
contribuiu positivamente para o desenvolvimento das ciências da natureza
no século XX. Graham sugeriu a distinção entre a fase dogmática e a
fase criativa, mas o que importa são os exemplos biográficos que ele
analisou: Fock, Oparin e Vygotsky. O caso dos estudos sobre a origem
da vida e o caso dos físicos japoneses marxistas em física de partículas
sugerem conclusões similares. A segunda conclusão contrasta um pouco
com a primeira, porque retira o apelo especial que o materialismo dialético
possa ter na produção das ciências da natureza. Face a um teste crucial
na história das ciências no século XX, o da interpretação da teoria
quântica, o materialismo dialético cindiu-se. Nisso ele não foi diferente
de tantos outros sistemas filosóficos quando enfrentaram novos desafios
em circunstâncias diferentes daquelas de sua elaboração inicial. Do
mesmo modo que você pode encontrar seguidores do positivismo
comteano criticando e defendendo a teoria da relatividade, você
encontrará a referência a Engels e ao materialismo dialético entre os
partidários e os críticos do princípio da complementaridade. Finalizo,
ligando as minhas duas conclusões. O pensamento de Engels foi aplicado
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O legado de Engels na prática das ciências...
diversamente na história das ciências da natureza no século XX. Ele é
um pensamento vivo. Tomando emprestadas expressões de Paulo
Abrantes,13 pode ser dito que o pensamento de Engels fornece tanto
imagens de natureza quanto imagens de ciência fecundas para o
desenvolvimento da ciência, mas ele não se presta a interpretações
uniformes, de modo análogo aos demais pensamentos filosóficos
instigantes que têm influenciado a produção das ciências da natureza.
Notas
* Doutor em História pela USP, Professor do Instituto de Física, UFBa. Email:
freirejr@ufba.br
1 Loren Graham, The Soviet Academy of Sciences and The Communist
Party, 1927-1932. Princeton, Princeton University Press, 1967; idem,
Science and Philosophy in the Soviet Union. New York, Knopf, 1972;
idem, Science, Philosophy, and Human Behavior in the Soviet Union.
New York, Columbia University Press, 1987; e, idem, Science in Russia
and the Soviet Union – A Short History. Cambridge, Cambridge University
Press, 1993.
2 Para estudos de Graham, não focalizados na relação ciência e filosofia,
ver, por exemplo, Loren Graham, The Ghost of the Executed Engineer –
Technology and Fall of the Soviet Union. Cambridge, Harvard University
Press, 1993; idem, What Have We Learned About Science and Technology
from the Russian Experience? Stanford, Stanford University Press, 1998;
e Loren Graham and Jean-Michel Kantor, “A comparison of two cultural
approaches to mathematics - France and Russia, 1890-1930”. ISIS,
Chicago: University of Chicago Press, 97, 2006, p. 56-74.
3 As referências a Graham são todas de Science, Philosophy, and Human
Behavior in the Soviet Union, salvo indicação em contrário.
4 Alexei Kojevnikov, Stalin’s Great Science – The Times and Adventures of
Soviet Physicists. London, Imperial College Press, 2004.
5 Joel et Dan Kotek, L’affaire Lyssenko. Bruxelles, editions complexe, 1986;
Stéphane Tirard, Les biologistes français et l’affaire Lyssenko, à l’automne
1948". Historiens & Géographes, n. 358, 95-106, 1997.
6 Alexei Kojevnikov, “David Bohm and Collective Movement”. Historical
Studies in the Physical and Biological Sciences, 33(1), 161-192, 2002.
7 Stéphane Tirard, Les travaux sur l’origine de la vie de la fin du XIX°
siècle jusqu’aux années 1970. Lille, Presses Universitaires du Septentrion,
1997.
8 Kent W. Staley, “Lost Origins of the Third Generation of Quarks: Theory,
Philosophy, and Experiment”. Physics in Perspective, 3, 210-229, 2001;
95
Olival Freire Jr.
Olival Freire, “Quantum Controversy and Marxism”. Historia Scientiarum,
7, 137-152, 1997.
9 Max Jammer, The Philosophy of Quantum Mechanics – The Interpretations
of Quantum Mechanics in Historical Perspective. New York, John Wiley,
1974, p. 251; Olival Freire, “Marxism and Quantum Controversy:
Responding to Max Jammer’s Question.” Paper presented at the
conference Intelligentsia: Russian and Soviet Science on the World Stage,
1860-1960, University of Georgia, Athens GA, on 29-31 October 2004.
10 Karl Popper, A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física – Pós-escrito à
Lógica da Descoberta
Científica, Volume III. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989; Max Jammer,
op. cit., p. 521.
11 Olival Freire, “Science and exile: David Bohm, the cold war, and a new
interpretation of quantum mechanics”. Historical Studies in the Physical
and Biological Sciences, Berkeley, University of California Press, 36(1),
1-34, 2005; idem, David Bohm e a controvérsia dos quanta. Campinas,
CLE, 1999. As obras de Rosenfeld estão publicadas em Léon Rosenfeld,
Selected Papers of Léon Rosenfeld, (ed. by R.S. Cohen and J.J. Stachel).
Dordrecht, D. Reidel, 1979. Ver também Anja Jacobsen, “Léon Rosenfeld,
Marxism, and complementarity,” Roskilde University, Denmark, a
aparecer.
12 Olival Freire, idem. Olival Freire, Michel Paty e Alberto Luis da Rocha
Barros, “David bohm, sua estada no Brasil e a teoria quântica”. Estudos
Avançados, São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da USP, 8(20),
53-82, 1994. A influência de Schenberg sobre Bohm está registrada em
F. David Peat, Infinite Potential – The Life and Times of David Bohm.
Addison Wesley, 1996, p. 155-7. Sobre Schenberg, embora se trate de
texto que não preenche a lacuna aqui apontada, ver José Luiz Goldfarb,
Voar também é com os homens – O pensamento de Mário Schenberg.
São Paulo, EDUSP, 1994.
13 Paulo Abrantes, Imagens de natureza, imagens de ciência. Campinas,
Papirus, 1998.

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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