Entender cada novo passo do governo Trump é, sem qualquer exagero, como percorrer o labirinto na cabeça de um louco. A aplicação do tarifaço contra o Brasil, com quem os Estados Unidos têm superávit comercial, inaugura uma nova etapa dos tarifaços trumpistas, desta vez com o objetivo de dobrar o judiciário de um país – e, por tabela, interferir nas eleições do ano seguinte e, na realidade, mudar o regime.

Sanções não são uma novidade como uma arma de guerra dos Estados Unidos. Elas, na verdade, têm sido usadas por diferentes presidentes americanos, democratas ou republicanos, o que consiste no quadro mais geral do hiperimperialismo – com o caso brasileiro já aparecendo como uma versão 2.0. Isso não estaria contrariando a doutrina dominante do livre comércio neoliberal? Na verdade, sim e não.

A princípio, a questão de Trump não é nem de método, nem de loucura, mas de uma junção de ambos por meio do aparato ideológico e cultural do Iluminismo das Trevas [Dark Enlightenment] – um  ecletismo intelectual, mas de extrema direita e neofascista, idealizado no começo do século e que une uma curiosa justaposição de defesa do absolutismo, Estado mínimo, combate à democracia e às minorias entre outras coisas.

Esse Iluminismo das Trevas cai como uma luva entre os ascendentes oligarcas do Vale do Silício como Peter Thiel, e bebe na fonte de teóricos como Curtis Yarvin, Patri Friedman entre outros. Mas ele ganha esse nome por conta do ensaio homônimo do célebre aceleracionista Nick Land na esteira de um debate entre Thiel e Friedman – Land é um velho conhecido de Mark Fisher que tomou os rumos do neorreacionarismo (NRx).

É claro, movimentos políticos não são produtos mágicos das ideias, ao contrário, são elas que nascem no contexto da luta na sociedade para representar as aspirações de classe – o que não quer dizer que elas não gerem efeitos materiais quando são postas em prática, sobretudo por lideranças como Trump. E é preciso entender isso daqui, inclusive no que diz respeito ao conflito existencial com a China.

O Iluminismo e a China

É possível ver elogios de figuras como Yarvin ao que ele supõe ser a China, ou mesmo se dizer que Land vive lá, fazendo parecer contraditório que em um governo atravessado por essas ideias tenha a luta contra a China como existencial – a explicação prosaica seria de que é só competição, mas isso vai além, naturalmente. A China ainda governada por um Partido Comunista com suas regras e racionalidade é o inverso da “América” de Trump.

O Iluminismo original, longe de ser um movimento homogêneo, ilustrava belas clivagens. Uma delas era o debate intelectual acerca da China. Nela, Voltaire, Montesquieu e Jaucourt já antecipavam um orientalismo que mais tarde justificaria a violência colonial que caracterizou o Século de Humilhação. Do outro lado, havia figuras como Leibniz ou Quesnay que apontavam como os chineses eram um modelo e uma utopia concreta.

Muitos dos incrementos do Iluminismo são de origem chinesa ou de intelectuais sinófilos como Leibniz, e sua matemática computacional, ou Quesnay e sua ciência da economia política – da qual ele e seus fisiocratas, e não Adam Smith, são os verdadeiros precursores. Esse legado chinês, por sinal, foi convenientemente apagado ou ignorado como tratei recentemente no A China e o Iluminismo para a Princípios.

Ironias do destino, ainda que Marx pontue a superioridade e originalidade dos fisiocratas sobre Smith, dedicando um capítulo inteiro do Livro II de O capital  e também do Teorias da mais-valia, lhe escapa que parte disso se deve às incorporações do pensamento chinês nas formulações teóricas dos fisiocratas. Os comunistas chineses, longe de desvalorizar o legado do seu pensamento, muitas vezes ignoram essa raiz cripto-chinesa do marxismo.

Em outras palavras, além de um conflito episódico pela hegemonia global, os iluministas das trevas estão fadados a confrontar a China, a qual, por sua natureza, é o seu simétrico oposto – e herdeira de uma tradição que não é tão ocidental como parece, coisa que sempre foi percebido pelas coincidências dialéticas do pensamento chinês com Hegel e Marx, mas não muito pelas fundações chinesas da própria economia política que Marx criticou.

O rei absoluto bufão contra o livre comércio

A história do termo laissez-faire [deixai fazer], muitas vezes evocadas como um dogma liberal tem origens anedóticas. É o velho laissez nous faire [deixo-nos fazer] que o comerciante Legendre ousou como objeção contra o inefável Colbert, o controlador-geral da França sob o reinado absoluto de Luís XIV. Legendre interpelou Colbert sobre o que o governo deveria fazer. Anos mais tarde, o marquês D’Argenson relembrou o chiste.

Fato é que o laissez faire dos fisiocratas nunca esteve dentro de uma ideia de livre mercadismo radical, como acabou por ser interpretado mais tarde, mas sim era da ordem de uma lógica econômica certamente superior àquela que havia sob o absolutismo. Parte do livre comércio, é óbvio, se sustentou à base da violência com o domínio colonial europeu no mundo e a “abertura” de mercado por meio das canhoneiras.

Ainda assim, na esteira disso, a produção humana se tornou mais complexa, intercâmbios fatalmente aconteceram, inclusive entre ideias – e o mundo nunca mais foi o mesmo. De um lado, ergueu-se uma colossal civilização tecnológica, globalmente integrada embora terrivelmente desigual. A globalização fez dos Estados Unidos relativamente mais ricos que europeus ocidentais e japoneses, mas seus trabalhadores não viram sua parte nesse ganho.


Do outro lado, países emergentes souberam jogar o jogo global, cresceram e se organizaram e se tornaram um desafio para o G7. Trump trabalha o ódio ao outro para justificar seu domínio, mas também trabalha com ressentimentos bastante reais que os trabalhadores têm do neoliberalismo, suas metrópoles caras e excludentes e a falta de esperança. Sua jornada antiglobalização opera pela direita, mas confunde mesmo a esquerda.

Afinal de contas, a globalização, o livre comércio e a liberdade dos mercados não é contra tudo o que lutamos nesses últimos trinta anos? De certa forma sim, mas não pelos motivos que Trump os ataca, que é superar o neoliberalismo na forma de um neo-absolutismo antidemocrático que servirá a mais concentração de renda, opressão aos trabalhadores, destruição da natureza. Isso é um perigoso paradoxo.

Trump II é um neoliberal extremado ou um antineoliberal?

É irônico que diante do primeiro tarifaço de Trump, meios ligados ao governo da China tenham usado a imagem de Ronald Reagan discursando a favor do livre comércio – talvez pelo efeito cômico ou pela aparente contradição performática do gesto do atual mandatário americano. Lula não ficou atrás e protestou citando que depois de décadas tornando o livre comércio um dogma, tudo mudou agora, citando Reagan e Margaret Thatcher.

Trump, embora evocasse a memória e o legado de Reagan, está bastante distante dele e o tarifaço está longe de lhe ser uma incoerência. Ou melhor, Trump é uma superação do neoliberalismo que, desde seu nascedouro, tem menos a ver com a tradição iluminista do que gostaria, principalmente do ponto de vista da economia política, uma vez que ele mais parece um mercantilismo às avessas, com o mercado no papel de monarca absolutista.

O Trump II que performa o monarca absoluto 2.0, fazendo tudo o que pode fazer – e mandando às favas os limites legais, como aponta Yarvin ao Politico – significa, do ponto de vista econômico, um déspota irracional de uma recriação do mercantilismo. Em outras palavras, Trump vai além à retomada do protecionismo da presidência de McKinley, que ele citou no seu discurso de posse, e retrocede a um modelo ainda mais longínquo.

Podemos até falar na falta de precisão teórica do termo “tecnofeudalismo”, mas o capitalismo em crise está flertando com uma transição para alguma outra forma de modo de produção. Isso vai além da hipérbole protecionista de alguns momentos, mas também não é um simulacro invertido do mercantilismo na forma neoliberal, com seu mercado deus ex-machina que tomava o lugar do monarca ungido por Deus.

A partir daí, a prática de sanções e restrições econômicas contra rivais, usada em caráter de excepcionalidade no neoliberalismo, se torna a regra do sistema, desafiando mesmo os postulados da produção global em cadeias complexas – de criação de projetos, aquisição de insumos, manufatura, comércio e consumo. Os vencedores e ocupantes do topo da economia neoliberal se impõem negando muitos dos princípios que lhes alçaram ao Olimpo.

O Iluminismo das Trevas no reino da política concreta

Isso não quer dizer que Trump vá seguir esse script plenamente, apenas que os dogmas do Iluminismo das Trevas servem também como uma luva para ele, pois lhes permite realizar suas fantasias de poder absoluto. Mas isso não quer dizer que os ideólogos que lhe deram uma narrativa desejem que ele seja um monarca eterno – JD Vance, o vice de Trump, é uma figura mais orgânica ao movimento.

Peter Thiel apoiou o tarifaço trumpista inicial, ainda que lançando ressalvas sobre o uso de tributos para dobrar a China – a quem ele deseja, expressamente, ver derrotada. Nem houve maiores comoções com Trump defenestrando Elon Musk, que executava o projeto de diminuição do Estado. Já, Steve Bannon, que não voltou à Casa Branca, mas voltou a influir lateralmente, não soa bem aos novos ideólogos de Trump – embora eles busquem negar isso.

Há, igualmente, divergências incontornáveis no futuro próximo, as quais envolvem a sucessão de Trump, que já sinalizou que buscará a reeleição – embora o entendimento nos Estados Unidos seja de que só é possível se ter dois mandatos, seguidos ou não. Isso talvez não agrade a Vance, mas também pode não agradar aos velhos neoconservadores do Partido Republicano, que estão aos montes no governo Trump.

Embora a oligarquia americana esteja rachada, o que mantém ela unida é o consenso de manter uma economia maníaca de pé, com sua concentração de renda cada vez mais brutal e bolsas de valores perigosamente inflacionadas. Derrotar a China e o Brics, portanto, aparece como tarefa necessária para impedir um novo circuito que quebra o monopólio Ocidental –do ponto de vista econômico, mas também do modelo.

Países como o Brasil, ao final, se tornam alvos inevitáveis que não têm nada a ganhar com uma capitulação, embora corram riscos enormes nessa luta assimétrica contra um adversário que, por sua vez, repete os nazifascistas originais: Trump abre muitas frentes de batalha ao mesmo tempo, pois igualmente não tem escolha em razão de sua própria natureza, em parte suicidária, em parte genocida.

é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.