
Dizem
que foram os norte-americanos que venceram Adolf Hitler. Dizem, também,
que Winston Churchill salvou o mundo. Dizem que o Dia D foi o ponto de
viragem. Dizem tantas coisas — e repetem tanto —, que acabamos quase por
acreditar. Mas a Segunda Guerra Mundial não foi decidida na praia da
Normandia, como contam a historiografia, o cinema e o jornalismo do
Ocidente. Essa guerra foi decidida nos campos da Batalha de
Estalinegrado, com muito sangue derramado, de cidadãos e cidadãs da
então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Assim foi o
Dia da Vitória.
O
final dessa guerra, que começou em 1939, quando Hitler invadiu a
Polónia, tem sido mostrada, anos após anos, década após décadas, como
sendo mais um dos atos heroicos dos Estados Unidos da América (EUA), os
“salvadores do mundo”. Ocorre, no entanto, que os norte-americanos só
entraram no conflito depois do ataque a Pearl Harbor, em dezembro de
1941 — e mesmo assim, a sua ação na Europa foi “cautelosa”. O então
primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Winston Churchill, assim como o
ocupante da Casa Branca daquele momento, Franklin Roosevelt, adiaram,
durante anos, o tão prometido “Segundo Front”
na Europa. Enquanto isso, Josef Estaline clamava por ajuda, e os seus
soldados caíam aos milhares tentando conter o exército nazi.
A
URSS resistiu, sozinha, durante quase três anos antes que os “Aliados
ocidentais” decidissem entrar no conflito. Portanto, foi nas trincheiras
congeladas do Front Oriental
que o Exército Vermelho — composto por operários, camponeses e mães com
fuzis nos ombros — aniquilou cerca de 80% das forças alemãs. O nazismo
morreu ali, entre destroços, e também cadáveres soviéticos. O resto foi
conto, foi filme, foi fotografia, foi reportagem, com “recorte”
ocidental.
A
historiografia hegemónica — capitalista, ocidental e, sobretudo, de
memória seletiva — insiste na narrativa que diz, com todas as letras,
que a tal “libertação da Europa” pelas tropas anglo-norte-americanas
começou apenas em 1944, com o desembarque na Normandia. Ou seja, depois
de o Exército Vermelho já ter retomado várias cidades importantes — tais
como Kiev (capital ucraniana) e Minsk (capital bielorrussa), esmagando a
resistência alemã na Batalha de Kursk — e já marchava rumo ao centro do
poder nazi — a cidade de Berlim. Naquele momento, a Alemanha já estava
em colapso. E os Aliados (capitaneados pelos Estados Unidos e pela
Grã-Bretanha) entraram tardiamente, quando o inimigo já estava
derrotado, quando a vitória já tinha sido escrita com sangue soviético.
Mas, ainda assim, os ocidentais saíram das trincheiras direitos para o
protagonismo, querendo tomar para si a glória, num verdadeiro roubo da
memória.
Devidos créditos os heróis soviéticos
A
narrativa ocidental — seja nos livros escolares, seja nas produções
cinematográficas ou através da sua media hegemónicas — transformou o Front oriental
e Estalinegrado em nota de rodapé. Churchill tormou-se herói da
liberdade, mesmo defendendo colónias, mesmo sendo abertamente racista.
Roosevelt foi transformado em símbolo da paz, ainda que aprovando campos
de concentração para nipo-norte-americanos (japoneses que
nasceram/viviam nos Estados Unidos foram presos, torturados, apontados
como traidores) e demorando deliberadamente a abrir o segundo Front.
Enquanto isso, os heróis soviéticos sumiram da memória coletiva: Jukov,
Rokossovsky e Chuikov, por exemplo — sobrenomes que soam estrangeiros
demais para os livros do Ocidente.
Foi
Georgy Jukov o responsável por coordenar a defesa de Moscovo em 1941, a
contraofensiva que empurrou os alemães para longe da capital soviética
e, mais tarde, desempenhou papel central nas batalhas de Estalinegrado,
Kursk e Berlim. Konstantin Rokossovsky elaborou e executou o plano de
cerco em Kursk e liderou parte fundamental da Operação Bagration (nome
atribuído à ofensiva do Exército Vermelho que destruiu os alemães em
junho de 1944), inclusive convencendo Stalin de que a sua ideia era a
melhor. Por último — e não menos importante —, Vasily Chuikov, general
das tropas soviéticas que defenderam Estalinegrado, transformou a luta
urbana numa guerra de atrito mortal para os nazis. Foi sob o comando
dele que os soviéticos desenvolveram táticas de combate corpo a corpo,
sobrepondo a vantagem tecnológica da Wehrmacht (as Forças Armadas
nazis).
Foi
em Estalinegrado, entre 1942 e 1943, que o Terceiro Reich começou a
morrer. Os alemães enviaram 300 mil homens. Saíram pouco mais de 90 mil —
rendidos, famintos, humilhados. A maior derrota da Wehrmacht. E então
veio o avanço soviético com a libertação da Polónia, a libertação de
Auschwitz e, por fim, a chegada a Berlim. O Exército Vermelho venceu 600
divisões alemãs — enquanto os Aliados ocidentais enfrentaram 176. Os
números falam.
Mas,
por que essa história não é normalmente contada dando os créditos ao
povo soviético? Muito simples: porque reconhecer o protagonismo
soviético é um incómodo para a narrativa liberal do Ocidente. Porque, se
assim o fizessem, admitiriam que os socialistas soviéticos — com todos
os seus erros, horrores e contradições — salvou o mundo do fascismo. E
porque o Ocidente nunca perdoou a URSS por ter sido vitoriosa. Por estes
motivos, o revisionismo histórico precisava (e ainda precisa)
prevalecer. E, por estas mesmas questões, também veio a Guerra Fria e
todas as demais investidas hostis dos Estados Unidos contra a União
Soviética — e mais recentemente, contra a Federação Russa. Enfim, por
estes motivos, o Ocidente construiu uma historiografia na qual a
bandeira dos EUA sempre tremula solitária sobre o mundo “livre”.
Do real ao guião
O
cinema ajudou (e continua a ajudar) muito nessa construção heroica da
imagem ocidental na Segunda Guerra Mundial, especialmente a
norte-americana. Filmes como “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), de
Steven Spielberg, colocam os EUA como os grandes protagonistas morais e
militares daquele conflito, sem sequer mencionar o papel soviético.
“Bastardos Inglórios” (2009), de Quentin Tarantino, reconstrói a guerra
como farsa cómica, mas sem sinal da URSS. No mesmo estilo, “Dunkirk”
(2017), de Christopher Nolan, usa uma retirada britânica como se fosse o
centro do conflito. Somente para citar três exemplos. O cinema
ocidental reescreveu a guerra para caber num de três atos: heroísmo
norte-americano, sacrifício britânico, vilania nazi. Nada de
Estalinegrado. Nada de Kursk. Nada de Berlim tomada pelo leste.
No
primeiro filme mencionado, a guerra parece ser vencida nas praias da
França por “meia dúzia” de homens virtuosos — norte-americanos, claro. A
complexidade do conflito é reduzida a um drama moral protagonizado por
norte-americanos. Spielberg capricha na questão visual, sobretudo na
famosa cena do desembarque na Normandia. Mas, a perspicácia exemplar do
cineasta fica mesmo por conta da construção de um mito heroico centrado
no soldado norte-americano comum: corajoso, ético, sacrificado, o que dá
forma ao enredo, que gira em torno da missão de resgate de um único
homem — enquanto, na vida real, milhões morriam nos campos de batalha,
muitos dos quais jovens soviéticos. A Batalha de Estalinegrado, o Cerco
de Leninegrado, a Libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho — tudo
isso é ausente ou irrelevante. Assim, através de “O Resgate do Soldado
Rayan”, Spielberg omite, exclui, invisibiliza a participação soviética, e
constrói “outra história”, na qual o heroi norte-americano assume o
protagonismo.
Na
visão de Tarantino, não foi o Exército Vermelho que chegou a Berlim e
hasteou a bandeira sobre o Reichstag (Parlamento Alemão), mas um grupo
de guerrilheiros norte-americanos guiados por Brad Pitt. Trata-se de um
jogo cénico — mas cínico — que substitui a história por uma fantasia
violenta. Em “Bastardos Inglórios”, Tarantino e a sua proposta
revisionista — e deliberadamente absurda — não deixam nada a desejar.
Quem mata Hitler? Não são os soviéticos, como na realidade. É Brad Pitt,
que encarna a figura do tenente Aldo Haine, o herói grotesco,
desumanizado — típico modelo do cinema de Tarantino — e profundamente
enraizado na mitologia do soldado norte-americano libertador e
justiceiro.
Para
completar o trio dos exemplos de discursos cinematográficos exaltadores
do “heroísmo ocidental”, Christopher Nolan realiza uma obra-prima. Em
“Dunkirk”, o resto do mundo não existe. Não há menção à resistência
soviética, à invasão da URSS, nem ao papel decisivo do Front Oriental.
Quando assistimos ao filme, ficamos com a impressão de que a guerra foi
um episódio isolado entre Alemanha e Inglaterra, com a participação
ocasional de aviadores heroicos. Através dessa produção cinematográfica,
Nolan transforma um recuo militar desesperado em glória nacionalista —
quase mitológica —, marcada pela resiliência dos soldados britânicos e
solidariedade do povo comum que vai resgatá-los com barcos civis. É
incrível a capacidade desse cineasta de fazer da Segunda Guerra Mundial
uma experiência exclusivamente anglo-norte-americana. O filme opera como
uma sofisticada peça de propaganda patriótica britânica — e, por
extensão, ocidental. O resultado é uma história emocionalmente eficaz.
Mas historicamente distorcida.
Memória seletiva e ideologicamente alinhada
O
jornalismo também se insere nessa tarefa de distorcer a história da
Segunda Guerra Mundial, através de veículos como CNN, ABC, BBC e, no
Brasil, a Rede Globo, por exemplo. Essas empresas hegemónicas de
comunicação consolidaram uma narrativa que retira ao povo soviético o
direito à sua própria vitória. Em lugar disso, construíram uma epopeia
anglo-norte-americana, onde os aliados ocidentais são os “heróis
libertadores” da humanidade, e os soviéticos são, no máximo, também uma
nota de rodapé desconfortável.
Nas
reportagens especiais de aniversário do Dia D (dia do desembarque
Aliado na Normandia), por exemplo, as cenas são quase sempre as mesmas:
bandeiras dos EUA, veteranos na Normandia, discursos de presidentes
ocidentais sobre liberdade… Nenhum rosto russo nos documentários que
inundam os canais de televisão. É o que se poderia chamar de um
apagamento editorial deliberado. A CNN e a BBC, por exemplo, jamais
colocam em destaque o papel do Exército Vermelho como libertador de
Auschwitz, como se isso colocasse em risco a ordem moral da narrativa
ocidental.
A
media brasileira também não escapa. A Rede Globo, quando trata a
Segunda Guerra Mundial, faz eco à visão norte-americana, reproduzindo s
importados com legendas de conveniência. O resultado dessa operação
mediática é profundo, porque de certa forma educa — e também molda —
afetos. Mas, sobretudo, essas abordagens decidem quem é herói e quem
deve ser esquecido. E, ao fazer isso, servem a interesses que continuam
no presente. A história que a media conta não é apenas sobre o que
aconteceu, mas sobre quem merece estar no poder.
Na
narrativa da Rede Globo, o Dia D é frequentemente apresentado como o
ponto de viragem decisivo do conflito — o momento em que os Aliados
“finalmente começaram a derrotar Hitler”. Ressalta a coragem dos
soldados norte-americanos e britânicos que desembarcaram nas praias da
Normandia, a complexidade da operação militar e a imagem já cristalizada
dos “mocinhos” vencendo o mal. No entanto, sob o brilho do jornalismo
televisivo, o que se revela é uma simplificação ideológica e,
principalmente, um apagamento histórico. Essa abordagem reforça uma
memória seletiva — e ideologicamente alinhada com os interesses
ocidentais. Em vez de complexificar o conflito, mostrando as suas
contradições, as alianças tensas e os múltiplos protagonistas, a Globo o
redu-lo a um duelo entre democracias ocidentais e o mal absoluto do
nazismo — ignorando, convenientemente, que a URSS, apesar de todos os
seus paradoxos políticos, foi essencial para a vitória.
No entanto, há outras narrativas. Felizmente, existem alguns historiadores que mostram a verdadeira cara dessa história, como Howard Zinn.
Mesmo sendo norte-americano, foi uma das vozes mais lúcidas e incómodas
contra a narrativa triunfalista e patriótica ocidental. No livro “A
História do Povo dos Estados Unidos” (A People’s History of the United States),
Zinn denuncia, com muita veemência, como a história contada nos EUA foi
moldada para glorificar o poder, silenciar os oprimidos e justificar as
guerras.
Base moral para as guerras posteriores
No
que se refere à Segunda Guerra Mundial, Zinn questiona o mito da “boa
guerra”, ressaltando que o conflito foi utilizado não apenas para derrotar o fascismo europeu,
mas também como uma forma de expandir os interesses económicos e
militares dos EUA. O historiador destaca que, mesmo enquanto os
norte-americanos combatiam o nazismo no exterior, continuavam praticando
racismo, segregação e repressão dentro das suas próprias fronteiras. “O
espírito da militância negra, que teve os seus lampejos na década de
1930, teve a sua intensidade reduzida durante a Segunda Guerra Mundial,
quando a nação denunciou o racismo por um lado, manteve a segregação
racial nas forças armadas e continuou a pagar mal aos negros por outro”,
afirma (Zinn, 2011, p. 337 da versão em espanhol).
Zinn
também enfatizava que a entrada dos EUA na guerra não foi motivada por
altruísmo ou solidariedade internacional, mas por interesses
estratégicos. O historiador lembra que grandes corporações
norte-americanas lucraram com o esforço de guerra, e que a economia
daquele país foi alavancada à custa de destruição e mortes em massa em
solo estrangeiro. De acordo com Zinn: “Com o poder imperial britânico
desmoronando-se durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos
estavam prontos para entrar em cena. Antes do fim da guerra, o governo
já estava a planear o esboço da nova ordem económica internacional,
baseada numa parceria entre o governo e grandes corporações.” (Zinn,
2011, p. 311 da versão em espanhol).
Outra
questão importantíssima ressaltada por Zinn é o facto de que, ao negar a
vitória e a força soviéticas, os Estados Unidos estariam a combater a
esquerda, o socialismo e as críticas ao capitalismo. De acordo com o
historiador, era preciso convencer o mundo de que o modelo capitalista
se configurava como o único sistema eficiente, e que, portanto, qualquer
outro modelo, sobretudo o socialista, não poderia ter sucesso. Conforme
Zinn: “A esquerda tornou-se muito influente nos tempos difíceis da
década de 1930 e durante a guerra contra o fascismo. O Partido Comunista
não tinha muitos membros […], mas era uma força poderosa entre os
sindicatos, que tinham milhões de membros, entre os artistas e entre
inúmeros americanos. O fracasso do sistema capitalista pode ter levado a
ver o comunismo e o socialismo de forma favorável” (Zinn, 2011, p. 323
da versão em espanhol).
Nessa
mesma obra, Zinn alerta, entre outras questões, que a memória
construída da Segunda Guerra Mundial serve como uma ferramenta
ideológica poderosa, pois, ao colocar os Estados Unidos como
“libertadores”, apagava-se não apenas o papel fundamental da União
Soviética na derrota do nazismo, mas também se construía uma base moral
para as guerras posteriores, como Vietname, Iraque, Afeganistão. Afinal,
se os EUA foram os heróis contra Hitler, teriam o dever de repetir o
gesto sempre que julgassem necessário.
Para
Zinn, a verdadeira história da guerra deve ser contada a partir de
baixo: dos soldados comuns, dos civis bombardeados, das mulheres russas
que defenderam os seus territórios, dos que morreram sem medalhas,
rompendo, portanto, com o monopólio imperial da memória. O historiador
faz-nos um alerta poderoso, salientando que é preciso desconfiar da
narrativa única. Diz-nos ainda, nas entrelinhas, que devemos olhar para
os silêncios da história oficial e perguntar-nos: quem contou isso? Quem
beneficiou dessa versão? E quem foi apagado para que ela se
sustentasse? No caso da Segunda Guerra Mundial, está evidente.
Fonte: 80 anos do Dia da Vitória: a tarefa de defender a memória soviética frente à fantasia ocidental, publicado e acedido em 09.05.2025
NE: O texto foi ligeiramente adaptado à variante do português de Portugal / Brasil