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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Perry Anderson

 

Outro regime no Ocidente é possível? Crítica a Perry Anderson 

Perry Anderson no evento “Fronteiras do Pensamento”, em Porto Alegre (2013), via Wikimedia Commons

Por Ronaldo Tadeu de Souza

Em importante artigo publicado na London Review of Books (vol. 47, 03 de abril de 2025), intitulado “Regime Change in the West?” [Mudança de regime no Ocidente?], o historiador e ensaísta Perry Anderson, membro do comitê editorial da prestigiada revista inglesa de esquerda New Left Review, propõe uma análise sobre quais as condições do Ocidente erigir uma nova ordem econômica, política e social em alternativa ao neoliberalismo. Combinando abordagem de longa duração com história intelectual e averiguação da conjuntura, Anderson sugere que diante do quadro indisputável da atual predominância das forças da direita ultraliberal, o campo alargado de esquerda tem de não mais enfrentar o conjunto das ideias e práticas hayekianas na perspectiva de apresentar uma teorização coerente e desenvolvida, bem como ações políticas que suplantem definitivamente o regime internacional de livre mercado que vigora desde 1980. Em seu entendimento, a melhor atuação para a esquerda é não aguardar até que “ideias políticas e econômicas comparáveis aos paradigmas keynesiano ou hayekiano” se formem para propor opções a uma alteração considerável ao “modo de produção existente”. “Não necessariamente” isso ocorrerá — nem se pode aguardá-lo — no nosso momento imediato de enfrentamento ao regime neoliberal. O que então Perry Anderson prenuncia? E quais são seus argumentos? 

Partindo de uma narrativa com enquadramento histórico durável, Anderson elabora os momentos no século XX em que o Ocidente se viu diante de mais de uma solução para os problemas econômicos e políticos que surgiam. A circunstância histórica de maior relevo foi a crise de 1929. Durante a “grande depressão”, não só havia “governos conservadores […] nos Estados Unidos, França e Suécia” como “havia também, sociais-democratas na Alemanha e na Inglaterra”. Além disso, a sabedoria contida em A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda, de Keynes, “ainda que não tenha tido impacto até 1936”, já circulava em ambientes acadêmicos, intelectuais e governos. Após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, as ideias keynesianas auxiliaram na consolidação de instrumentos heterodoxos de combate a crise. “Padrão ouro, medidas monetárias anticíclicas, políticas de intervenção fiscal e sistemas oficiais do Estado do Bem-Estar Social”, responderam aos anseios do mundo Ocidental com a derrota do nazismo.  

Contudo, “após 25 anos de sucesso, houve uma degeneração do regime” defendido por Lord Keynes; “a estagflação” propiciou as condições para reformar o sistema econômico a partir dos anos 1980. A definição de Anderson do que ficou conhecido por neoliberalismo é sem dúvida a mais consistente que a esquerda possui. Apoiado nos neoclássicos austríacos (Hayek e Mises), o regime econômico e político vigente há quase 50 anos, que objetiva a recuperação das taxas de lucro dos 30 anos gloriosos, se caracteriza por: 1) “aumento da riqueza” das elites mundiais, o que quer dizer um sistemático empobrecimento (desemprego, diminuição de salários e perda de direitos sociais) dos trabalhadores a nível mundial; 2) oligarquização para que isso fosse realizado, ou seja, os componentes de soberania popular das democracias ocidentais foram consideravelmente restringidos; e 3) liberalização absoluta da economia, as transações no livre mercado tiveram que ser “tão desreguladas quanto possíveis”. A este “núcleo de princípios” e práticas, Margareth Thatcher anunciava não haver adversário; o acrônimo feminino TINA [There Is No Alternative] passava então a vigorar no Ocidente.  

No balanço que oferece, Anderson ainda sustenta que a ausência de “qualquer movimento político significativo” que reivindicasse a transformação radical do capitalismo financeirizado refletia o desaparecimento das duas variantes históricas do socialismo. A variante revolucionária, mesmo que somente na aparência, diz ele, colapsou com a “desintegração da União Soviética em si”; e a variante reformista “dos partidos social-democratas extinguiu qualquer traço de resistência aos imperativos do capital”. 

Em 2008 o reinado de mais de um quarto de século da TINA parecia ter chegado ao fim. Não foi o que ocorreu para Anderson. A ordem política e econômica internacional surgida em 1980 na esteira dos impasses do welfare-State foi recuperada sob a administração Obama e a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional): “bancos e companhias de seguro fraudulentas, corporações de automóveis falidas receberam infusões de fundos públicos nunca disponíveis para cuidados de saúde descentes, escolas, pensões e transporte”. A disciplina orçamentária, defendida com paixão por Hayek, era ignorada — “estímulos fiscais massivos” agora compunham a agenda neoliberal.  

Na sequência, sem estabelecer distinções de conteúdo relevantes, o que era de se esperar de um historiador de esquerda, marxista, Perry Anderson analisa as duas revoltas populistas contra as modalidades de resgate ao sistema financeiro que se seguiram a 2008 (já expostas acima). “Se nós olharmos para as revoltas populistas contra o neoliberalismo, elas rigorosamente se dividem, como todos sabem, em movimentos de direita e de esquerda”. Em consonância com o teor do artigo, ele identifica que nenhum dos populismos conseguiu até agora um programa consistente em escala que consiga enfrentar as ideias hayekianas. Tanto na dimensão teórica como na esfera prática, a direita e a esquerda populistas são balizadas “por aquilo que são contra, mais do que pelo que estão” apresentando enquanto propostas. O estilo do artigo é sóbrio analiticamente, com exposições equilibradas acerca do panorama político mundial. Contudo, isso custou a Anderson ler o populismo de direita (Trump, Bolsonaro, Boris Johson, Giorgia Meloni) em equivalência ao de esquerda (Syriza, Movimento 5 Estrelas, Podemos, França Insubmissa) diante dos desafios impostos pelo tempo atual. Não é algo de menor importância, e não porque se trata de defender ingenuamente a esquerda. Ocorre que ao proceder dessa maneira resta o entendimento de que o populismo de direita é uma opção política antineoliberal para os de baixo, o que definitivamente não é, sendo ainda pouco provável que se torne em qualquer momento do futuro. Anderson, aqui, sem perder a seriedade realista no trato da situação histórica, política e econômica de média duração, poderia marcar diferenças substantivas (teóricas, estratégicas, táticas, de composição e interação social) entre as objeções populistas à TINA — mas lamentavelmente não o fez. Preferiu comentar as respostas formais da direita e da esquerda aos três problemas originados pelas orientações thatcheristas de 1980, que são: a desigualdade, a oligarquia e a mobilidade de fronteira. Por outras palavras, os princípios (os dois primeiros, sobretudo) que constituem a essência do neoliberalismo.

Assim, “existem três objetivos centrais nas insurgências populistas. Tais insurgências são divididas sobre o peso que cada [populismo] atribui em seu ataque” à desigualdade, ao sistema político oligarquizado e as formas de mobilidade interconectadas, essa surgida na última década.  

Avaliando apenas os moldes da atuação da direita e da esquerda, sem dar a devida atenção aos conteúdos, Anderson afirma que uma e outra respondem com relativa similaridade à desigualdade estrutural e à restrição da soberania popular, mas não ao problema da mobilidade de fronteira — “populismos de direita e de esquerda podem, em diferentes maneiras, atacar mais ou menos os dois primeiros com vigor igualmente desinibido, mas somente a direita pode censurar o terceiro com maior veemência e xenofobia na direção dos imigrantes”. As forças conservadoras, portanto, têm vantagem sobre a esquerda ao manejar as reações racistas contra a imigração, em particular frente ao “setor mais vulnerável da população”.

No entanto, mesmo com a diferença diante do problema da imigração, teórica e politicamente, os adversários “do neoliberalismo estão ainda” em sua maior parte “dançando no escuro”. Categórico, Anderson constrói um conjunto de questões que não são respondidas nem pela direita populista, e menos ainda pela esquerda populista:

“Como a desigualdade deve ser enfrentada — não apenas consertada — de forma séria, sem imediatamente provocar uma greve de capital? Quais medidas podem ser previstas para enfrentar o inimigo, golpe por golpe, naquele terreno contestado e se sair vitorioso? Que tipo de reconstrução, agora inevitavelmente radical, da democracia liberal realmente existente seria necessária para pôr fim às oligarquias que ela mesmo gerou? Como o Estado profundo, organizado em todos os países ocidentais para a guerra imperial — clandestina ou aberta — deve ser desmantelado? Que reconversão da economia para combater as mudanças climáticas, sem empobrecer sociedades já pobres em outros continentes, é imaginada?”

A situação histórica de enfrentamento ao programa econômico forjado pelo autor de O caminho da servidão é decepcionante para Anderson. “Medicare para todos nos EUA, rendas garantidas para cidadãos na Itália, bancos públicos de investimento na Grã-Bretanha, impostos Tobin na França e coisas do tipo” — nenhuma dessas propostas mostra-se à altura de erigir uma alternativa abrangente de mudança da ordem imposta pelo capital nos últimos 40 anos. Para a esquerda, a análise de Anderson é mais cáustica e intransigente: a contração intelectual, o recuo político e a esterilidade de ideias fizeram com que o pensamento crítico original fosse lançado para “as margens das correntes [políticas] dominantes”. 

Nesse cenário, qual o regime econômico e político que poderia substituir o neoliberalismo? Ora, não sendo factível na conjuntura qualquer teoria e prática coerentes que busquem a mudança no modo de produção existente, Anderson sugere refletir sobre duas possibilidades além das áreas dominantes do capitalismo desenvolvido que se formaram ao longo da história no Ocidente, mas que se soergueram no interior do regime do capital. “Fora das zonas centrais do capitalismo, pelo menos duas alterações de grande importância ocorreram sem que nenhuma doutrina sistemática as imaginasse ou a propusesse antecipadamente”. Surpreendentemente, as transformações da era Vargas no Brasil — a substituição de importações que nasceu com o bloqueio, dada a recessão mundial nos anos 1930, das exportações de café — e as reformas presididas por Deng Xiaoping na China — um espetacular crescimento econômico sustentado — aparecem como exequíveis. Anderson admite que “são exóticos demais para ter qualquer relação com o coração do capitalismo avançado”, e acrescento, também para o capitalismo contemporâneo das zonas não-centrais, como o brasileiro e latino-americano.  

No prefácio de Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias (Boitempo, 2012), Anderson propunha que a esquerda assumisse sua derrota histórica, pois essa seria uma das formas de se reconstruir sem ilusões. E em “Renovações” (o editorial que escreveu no relançamento de sua revista, em 2000) aconselhava a esquerda a seguir Marx, observando e avaliando as contradições do sistema capitalista mundial; daí poderiam emergir crises que, eventualmente, abririam brechas para que os descontentes com o regime neoliberal se rebelassem. Foram dois de seus acertos de interpretação nas últimas décadas.  

Agora, Anderson parece indicar, de certa maneira, soluções provisórias “no terreno” da ordem econômica em vigência, mas que consigam impactar a confiança do regime internacional de acumulação presente, na medida em que não vê no horizonte a esperança de uma teoria e de uma prática de esquerda coesa, extensa e radical o suficiente para enfrentar a TINA e o programa elaborado pela mente mais brilhante do mainstream, Friedrich von Hayek: “Se a descrença de que alguma alternativa seja possível desaparecer no Ocidente, a probabilidade é que algo comparável [ao varguismo e à estratégia de Deng Xiaoping] seja a ocasião [e o motivador] disso”.

Quando escreveu sobre John Rawls, ao recusar seu pensamento normativo, Perry Anderson sustentava que na passagem de Uma teoria da justiça para o Liberalismo político houve uma amputação dos aspectos mais contundentes da crítica do filósofo político de Harvard às instituições sociais injustas; definitivamente, a esquerda contemporânea, que há anos busca sua reconstrução, não necessita que o principal herdeiro da tradição do marxismo e do socialismo clássicos, um dos lendários editores da New Left Review ao lado de Stuart Hall, ofereça por agora também uma amputação do conjunto de sua obra intelectual. Esperamos que seja apenas uma fratura em condições de se calcificar novamente, e que ele possa anunciar, como fez no ensaio “Ideias e ação política na mudança histórica”, que “ideias que não consigam chocar o mundo não serão capazes de o sacudir” e transformar. E modelos como o desenvolvimentismo de Vargas e a restauração sustentada chinesa de Deng Xiaoping não parecem serem essas ideias: a esquerda pode e deve mais do que isso.

***
Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Cedec, membro do Comite Editorial do Dicionário Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária


Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias, de Perry Anderson
O prestigiado historiador britânico explora as ideias políticas e sociais contemporâneas, apresentando uma análise abrangente que percorre da direita à esquerda no espectro ideológico. Examina grandes pensadores, destacando a diversidade de temas desde a Guerra Fria até os desafios atuais.

Contragolpes, organizado por Emir Sader e Frei Betto
Coletânea de artigos da renomada revista teórica de esquerda, New Left Review, abordando temas atuais como Iraque, China, favelas e crises africanas. Com análises de destacados pensadores marxistas, oferece uma visão penetrante e renovadora para entender os desafios do século XXI.


Considerações sobre o marxismo ocidental/ Nas trilhas do materialismo histórico, de Perry Anderson
Análise consagrada da evolução do marxismo no Ocidente, destacando como intelectuais moldaram sua relação com a política e a sociedade, trazendo à tona temas culturais e filosóficos. Exame minucioso de uma vertente complexa do pensamento marxista.

A política externa norte-americana e seus teóricos, de Perry Anderson
Reconstrução dos principais acontecimentos e inflexões da política externa dos EUA desde o fim da Segunda Guerra até os dias atuais, destacando a contínua hegemonia norte-americana no cenário mundial. O autor examina o debate contemporâneo e as estratégias futuras do poder norte-americano.

Brasil à parte: 1964 a 2019, de Perry Anderson
Um panorama da história política e econômica recente do Brasil, desde o Plano Real até o governo de Bolsonaro. Os ensaios revelam a percepção do autor sobre os desafios e mudanças no país, abordando os bastidores do poder e debates intelectuais.

       in Boitempo blogue 

Sobre a tortura no colonialismo

 

Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017

 TORTURA E CONFIGURAÇÃO COLONIALISTA: UMALEITURA“FANONIANA” DOLIVRO “TORTURA NACOLÔNIA DEMOÇAMBIQUE(1963-1974)”, E MAIS ALÉM

 Muryatan S. Barbosa66

 Resumo: este artigo traz uma análise “fanoniana” do livro “Tortura na colônia de Moçambique (1963-1974)”. Para isto, inicialmente, define o que seria tal análise e explica a importância do livro em pauta. Posteriormente, procede a investigação propriamente dita, seguindo a hipótese de que a dita interpretação do problema da tortura no colonialismo, além de captar o fenômeno histórico ali tratado, lança luz para uma visão mais sistêmica da temática da tortura por si mesma, tratando-a como um elemento específico de toda “configuração colonialista”. Para Fanon,um todo maior, estrutural, que marcaria as relações entre povos conquistados e conquistadores, para além do colonialismo. Palavras chave: Frantz Fanon – Tortura - PIDE – Moçambique – Descolonização.

 Abstract: This article presents a "fanonian" analysis of the book "Torture in the colony ofMozambique (1963-1974)". For this, initially, it defines what this analysis would be and explainsthe importance of the book in question. Subsequently, the investigation itself proceeds, followingthe hypothesis that the mentioned interpretation of the problem of torture in colonialism, in additionto capturing the historical phenomenon addressed there, provide a systemic view of the subject oftorture itself, treating it as a specific element of every "colonial configuration." For Fanon, astructural character of the relations between conquered and conquering peoples, beyondcolonialism.Keywords: Frantz Fanon – Torture – PIDE – Mozambique – Decolonization. 

 Sobre Fanon e o livro em análise 

Este artigo traz uma análise “fanoniana” do livro Tortura na colônia de Moçambique(1963-1974)”, publicado em 1977, pela editora Afrontamento (Portugal). Para isto,preliminarmente, faz-se necessário alguns esclarecimentos sobre dois pontos aí elencados: a) o que significa a análise proposta; b) o que é este livro e qual o contexto histórico em que ele está inserido. 66Professor Adjunto do BCH/BRI-CECS da Universidade Federal do ABC. 74   

 Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017

 Nos últimos anos, têm proliferado pesquisas acadêmicas que se dizem inspiradas no pensamento de Frantz Fanon (1925-1961). Em relação ao ponto específico do papel da tortura, valedestacar os trabalhos recentes de Paul Giroy (2010), Nicole Waller (2008) e Manar Hassan (2008). Este fato faz com que se faça ainda mais necessário qualificar o que se entende aqui por uma análise“fanoniana”. Fanon tratou do problema específico da tortura em dois momentos. O primeiro foi no ensaioArgélia face a face com os torturadores franceses”, originalmente publicado no jornal El Moudjahid, em setembro de 1957. Este foi posteriormente republicado no livro póstumo, “Por uma revolução africana”, de 1964. O segundo momento foi no capítulo final dos “Condenados da terra(1961), sob título: “Guerra colonial e distúrbios mentais”. Trata-se, seguramente, da parte menos lida e conhecida deste livro célebre67.O primeiro ensaio é essencial para entender o ponto de vista do autor sobre o assunto. Em1957, data de sua publicação, Fanon já havia se integrado a luta de libertação argelina, dirigida pela FLN. Era um intelectual orgânico desta. E, como parte de tal integração, ajudava a editar o jornal El Moudjahid, na Tunísia. Entretanto, vale dizer, o que estava ali colocado sobre a questão da tortura na guerra colonial argelina não era mero reflexo de sua aproximação ideológica desta causa. Entre1953 e 1956, como médico psiquiatra que era, o autor trabalhou em diversas instituições e hospitais na Argélia. E lá tratou de pacientes que tinham passado especificamente pela tortura, tanto como torturadores, quanto como torturados. Ele tinha, portanto, experiência profissional e vivencial sobre o assunto. E é isto em que ele se baseia para escrever suas notas. Neste ensaio, Fanon defende que a tortura, longe de ser uma exceção, era a regra de uma configuração colonialista, estruturada pela dominação policial, pelo racismo sistemático e por um processo de desumanização racionalmente perseguido (Fanon, 1994 [1964]: 64). Em suas palavras: “A Revolução Argelina busca sem dúvida restaurar seus direitos à existência nacional. Isso, obviamente, testemunha à vontade do povo. Mas o interesse e o valor da nossa Revolução residem na mensagem de que ela é portadora. 

67Prevendo objeções a este parte do livro, o próprio autor escreveu: “Abordamos aqui o problema dos distúrbiosmentais originados na guerra de libertação nacional travadas pelo povo argelino. Talvez se julguem inoportunas esingularmente deslocadas neste livro estas notas de psiquiatria. Mas nada podemos fazer” (Fanon, 2005 [1961]:287).  75  

 Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017 

As práticas verdadeiramente monstruosas que apareceram desde 1 de Novembro de1954, são surpreendentes especialmente por causa da extensão em que elas setornaram generalizadas. Na realidade, a atitude das tropas francesas na Argélia seencaixa em um padrão de dominação policial, de racismo sistemático e dedesumanização racionalmente perseguida. A tortura é inerente a toda configuraçãocolonialista (Fanon, 1994, p. 64)68.Vale dizer, conforme a colocação acima, a tortura não é a regra do colonialismo, mas dealgo maior: a configuração colonialista. E isto fica evidente na forma como Fanon completa a fraseacima: A revolução argelina, ao propor a libertação do território nacional, évoltada tanto para a morte desta configuração quanto a criação de uma novasociedade. A independência da Argélia não é apenas o fim do colonialismo,mas o desaparecimento, nesta parte do mundo, de um germe de gangrena ede uma fonte de epidemia” (Fanon, 1994 [1964]: 64).Ou seja, a tarefa maior da Revolução Argelina, que ele defendia, não era “apenas” derrotar ocolonialismo. Mas destruir tal configuração colonialista, que, portanto, por lógica, deve serentendida como algo maior que o colonialismo69. As palavras do autor são bem colocadas70. Além de propor uma luta específica para talrevolução, ele se opõe a todos àqueles que, por ingenuidade ou cinismo, acreditavam que a torturada polícia e das tropas francesas na Argélia era algo pontual. Em suma, exceções, como diziam os

 68Traduções realizadas pelo autor deste artigo.69O termo utilizado por Fanon em francês é “ensemble colonialiste”. Mantivemos o termo “configuração colonialista”,utilizado pelo tradutor da versão inglesa de 1994 (Haakon Chevalier), por acharmos que ele traduz bem este sentidooriginal, em francês. Segue a citação original em francês: “Les pratiques authentiquement monstrueuses qui sont apparues depuis le 1ernovembre 1954 étonnent surtout par leur généralisation... En réalité, l’attitude des troupesfrançaises en Algérie se situe dans une structure de domination policière, de racismesystématique, de déshumanisation poursuivie de façon rationnelle. La torture est inhérente àl’ensemble colonialiste” (Fanon, 2001, pp. 74-75.). Em nossa opinião, a tradutora da edição portuguesa da obra (Em defesa da Revolução africana, 1980), IsabelPascoal, fez uma escolha ruim ao caracterizar o termo “ensemble colonialiste” por “todo colonialista” (Fanon, 1980,p. 71). Ao fazê-lo desta forma, inclusive, ela não captou a riqueza da frase seguinte, em que Fanon diz que oobjetivo da revolução argelina não seria apenas promover a independência. Para ele, não se trata, tão somente, dedestruir o “todo colonialista”. Trata-se de destruir à estrutura colonialista – a configuração colonialista - que seconsolida com o colonialismo, mas que continua a existir para além dele.70Na verdade tratava-se de um esforço coletivo da equipe do El Moudjahid, como mostrou a secretária de Fanon àépoca, Alice Cherki (2006), em sua biografia do autor. Este trabalho coletivo minimizava a probabilidade de erros eintepretações dúbias

 76Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017

 “democratas” e “liberais” franceses que Fanon critica em diversos artigos71. Enquanto fenômeno sistêmico, para o autor, a tortura tinha um papel fundamental nocolonialismo, porque este não podia existir sem a possibilidade de violência contra o colonizado,por danos físicos, violações e massacres (Fanon, 1994 [1964]: 66). Mas, vale repetir, o colonialismo(dominação político-administrativa de um país sobre outro)é apenas uma forma da configuraçãocolonialista.E, para deixar isto evidente, diz o autor: “Torture is an expression and a means of theoccupant-occupied relationship” (Fanon, 1994 [1964]: 66). Ou seja, a tortura é a expressão e ummeio das relações de conquistador-conquistado. Algo cuja origem foi o colonialismo, mas queexiste para além deste. Outro ponto destacado por Fanon neste ensaio merece atenção. Diz respeito à especificidadeda tortura durante a guerra colonial. E isto é importante porque o livro aqui analisado – “Tortura nacolônia de Moçambique, 1963-74” – se encaixa neste contexto. Trata-se de dois pontosprimordiais. O primeiro é que, para o autor, a tortura torna-se cada vez mais cruel conforme aguerra anticolonial progride. Afinal, segundo ele, os torturadores, além de trabalharem cada vezmais, veem seus esforços tornarem-se vãos, com o avanço da luta pela independência nacional(Fanon, 1994 [1964]: 67). Em segundo lugar, diz o autor, desde que o exército francês passou atorturar na Argélia de forma sistemática (a partir de 1955), tentando desmantelar a luta de libertaçãonacional daquele país, ocorreu uma mudança qualitativa desta violência institucional. A torturatornou-se profissional, ou, pelo menos, buscou tal profissionalização, tornando-se cada vez maisabjeta na busca de seu objetivo primordial: conseguir informações úteis da forma mais rápidapossível. A tortura teria ganhado métodos, técnicas, instrumentos e mesmo filosofias novas (Fanon,1994 [1964]: 68). O autor aponta dois autores intelectuais de tal empreendimento: os agentes Lofrédo(superintendente em Argel) e Podevin (policia judicial de Blida, cidade argelina). Para finsposteriores, é importante apresentar os métodos de tortura defendidos por tais indivíduos. O métodoLofrédo significa prender o indivíduo, mas não torturá-lo imediatamente. Tratar-se-ia de um“condicionamento por exemplo”. Neste, o preso é obrigado a presenciar a tortura e assassinato deoutros presos de menor importância para os torturadores. Depois de este presenciar cinco ou seismortes, se iniciam os verdadeiros interrogatórios. O método Podevin, segundo Fanon, seria o detorturar imediatamente o preso, de forma cruel. Neste momento não se faria qualquer pergunta. Só

 71Por exemplo: “French Intellectuals and Democrats and the Algerian Revolution” (1994 [1964]). 77

Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017 

após cinco ou seis sessões destas começariam os interrogatórios. Uma coincidência entre os métodos deve ser salientada. Nos dois métodos, o interrogador mais ouviria do que perguntaria. A tática seria não dar “pistas” para as respostas. Assim, a esperança da tortura terminar é sempre adiada, na medida em que o torturado nunca sabe o que seus torturadores querem que ele diga. Como passar dos anos, diz Fanon, o sistema vai se pervertendo, pois os torturadores acabando sem“acostumando” ao meio. Neste estágio, a tortura vai se tornando um fim em si mesmo (Fanon, 1994[1964]: 68-69). Uma explicação do porque isto aconteceria aparece nos Condenados da terra (1961), no capítulo já referido, pois alise têm uma análise psiquiátrica dos torturadores. Diz Fanon que conforme a tortura torna-se mais sistêmica e corrente, mais os indivíduos de personalidade sádica se destacam em seu trabalho, pois estes tem prazer em infligir dor ao Outro72. E, portanto, chegar ao objetivo de toda tortura: chegar o mais rapidamente possível ao limiar insuportável do sofrimento,em que todos os indivíduos tendem a falar aquilo que se pretende que ele diga. Esta é a lógica. E o melhor torturador é aquele que consegue fazer isto mais rapidamente, acobertado pela certeza daimpunidade, por ser agente do Estado (Fanon, 2005 [1961]: 323). A tortura institucional é, portanto, inerentemente desumana e cruel. Mas é tambémassassina. Não só pelos métodos em si. Mas também porque favorece o comportamento sádico, em que o torturador passa a matar as suas vítimas em vez de interroga-las. Neste sentido, nos Condenados... Fanon conta, por exemplo, a história de uma jovem francesa, sua paciente, que lh edisse que seus problemas psíquicos eram derivados dos gritos de tortura que ouvia em sua casa na Argélia. Isso porque, seu pai, tinha se tornado o maior torturador da região rural em que morava. E,sobre sua responsabilidade, naquela região, se matava mais de dez pessoas por dia! (Fanon, 2005[1961]: 318). É um meio que se torna um fim. Assim se resume a análise “fanoniana” da tortura. Trata-se de um fenômeno comum a toda configuração colonialista, derivado de uma relação de conquistador e conquistado, cujocolonialismo é o sistema paradigmático, mas não único. Trata-se, ademais, de uma prática intrinsicamente sádica e assassina, utilizada com forma de controle social pelos agentes do Estado.Este, enquanto presente na guerra colonial é quantitava e qualitativamente alterado pelo ódio à resistência local e por métodos profissionais, o que implica conhecimento e técnicas especializadas. 

72Daí que Fanon fale da importância do estupro nesta estrutura colonial. O estupro é, eminentemente, um ato sádico.Ele permite a realização de uma vontade contra a Outra. Quanto mais dor ele conseguir causar em sua vítima, maisprazer o estuprador terá no seu ato (Fanon, 1994 [1964]: 72).(...) »

quinta-feira, 3 de julho de 2025

O pai do sionismo fascista

 

Evgenevich Jabotinsky, o verdadeiro pai do partido de extrema-direita de Israel
 
«Os sionistas revisionistas israelitas – isto é, os discípulos do fascista judeu ucraniano “Zeev” Jabotinky, que não devemos confundir com os “sionistas” propriamente ditos, que são os seguidores de Theodore Hertzl» Thierry Meyssan (Red Voltaire).
«Vladimir Evgenevich Jabotinsky (Odessa, 18 de outubro de 1880 — Nova Iorque, 3 de agosto de 1940), cognominado Ze'ev Jabotinsky, (em hebraico זאב ז'בוטינסקי e em russo Зеэв Жаботинский] foi um filósofo, líder sionista, escritor, tradutor, orador, poeta, jornalista e militar judeu de origem ucraniana. Fundador da Organização de Auto-defesa Judaica, em Odessa, foi também o principal ideólogo do movimento de direita denominado Sionismo revisionista. Ajudou a formar a Legião Judaica do exército britânico na Primeira Guerra Mundial e foi um dos fundadores e líderes da organização clandestina armada judaica Irgun.
Sionismo
Após o Pogrom de Kishinev, em 1903, Jabotinsky aderiu de toda a fé no Movimento Sionista, onde rapidamente adquiriu fama como orador. Graças a sua militância, foi escolhido como delegado do Sexto Congresso Sionista, o primeiro realizado após a morte de Theodor Herzl.
Durante o Congresso Sionista, Jabotinsky lutou para que fossem formados grupamentos armados de auto-defesa judaica, tanto no território da Palestina quanto nas regiões onde houvesse o risco de perseguições anti-judaicas.
Jabotinsky argumentava que a coexistência pacífica entre judeus e árabes só seria possível se os judeus tivessem uma posição de força. Ele propôs a criação de um “muro de ferro” (Iron Wall) de defesa, que simbolizava a necessidade de uma força militar forte para proteger os assentamentos judeus e garantir a segurança do futuro Estado.[1][1]
Em 1958, dez anos depois da Independência de Israel, a B'nai B'rith envia uma requisição ao Primeiro-Ministro David Ben Gurion, solicitando o traslado dos restos mortais de Jabotisnky para Israel. Em uma carta de 7 de maio do mesmo ano Ben Gurion responde: "Israel não foi criado para receber judeus mortos, mas para ser o lar de judeus vivos. Não desejo ver a multiplicação de túmulos no país."Thierry Meyssan (Red Voltaire)
O socialista Ben Gurion fora um inimigo implacável de Jabotinsky e dos sionistas-revisionistas. Mas em 1964 o Primeiro-Ministro Levi Eshkol permite a transferência dos despojos de Jabotinsky para Israel. » wikipédia Zeev Jabotinsky HaGever foi o fundador do Sionismo Revisionista. Os sionistas revisionistas viam-se como os verdadeiros herdeiros do sionismo de Herzl, que acreditavam estar a ser tomado por esquerdistas (sionistas trabalhistas).
«Zeev exemplificou o orgulho judaico. Ele foi uma figura controversa no movimento sionista, muitos sionistas trabalhistas, incluindo Ben Gurion, odiavam-no. Enquanto os sionistas trabalhistas geralmente acreditavam que os árabes podiam ser convencidos a trabalhar com o sionismo, Zeev acreditava que os árabes não aceitariam uma solução binacional onde árabes e judeus vivessem juntos sem força.» in redditFicheiro:Zeev Jabotinsky. jpg

terça-feira, 1 de julho de 2025

Como devemos olhar para o Irão ?

 Extraído do livro Por dentro do Irã: a verdadeira história política da República Islâmica, de Medea Benjamin (Autonomia Literária, 2025)

Uma das ativistas feministas mais conhecidas do movimento antiguerra nos Estados Unidos, Medea Benjamin faz seu début ao público brasileiro com uma sofisticada obra sobre o Irã e sua Revolução. A tradução inédita desta publicação feita pela Autonomia Literária aparece num cenário editorial em que as obras sobre o país e sua política contemporânea são escassas, razão pela qual chega ao público brasileiro com urgência indispensável.

Se em português o leitor se via sitiado, de um lado, por autores que condenam a proclamada brutalidade e atraso iranianos e, de outro lado, por outros poucos mais entusiastas da revolução enquanto revolta subalterna, no livro Por dentro do Irã: a verdadeira história política da República Islâmica, a autora nos oferece uma espécie de meio-termo entre o orientalismo eurocêntrico e inferiorizante e o ocidentalismo purista.

Em linguagem simples, mas oferecendo um conteúdo nuançado e complexo, com habilidade e lucidez, Medea escapa do simplismo pró ou contra a Revolução Iraniana, posição rara mesmo entre estudiosos. Ao longo da obra, o leitor poderá ver por que o povo iraniano é culto e orgulhoso de seu passado, suas ciências e suas artes. A não binariedade talvez seja reflexo do próprio caráter iraniano, que convive com a dualidade persa de ter sido islamizado mas não arabizado, que mantém a tradição zoroastra ao lado da xiita, da filosofia sufi que convive com elementos pré-islâmicos, de ser palco da efervescência cultural a despeito do autoritarismo, dos elementos republicanos e descentralizados paralelos ao governo islâmico – ou do forte antiamericanismo e antissionismo ao lado da admiração aos estadunidenses e judeus.

(Reprodução HispanTV)

Uma potência anti-imperialista histórica?

A riqueza histórica e cultural foi frequentemente rodeada por episódios de ingerência e manipulações estrangeiras, russas, britânicas, francesas e estadunidenses. Demonstrando resiliência única, o Irã foi capaz de manter a unidade territorial e a soberania mesmo tendo sido repetidamente invadido desde o Império Aquemênida. Ainda assim, foi justamente através das diferentes invasões mongóis, timúridas e árabes que puderam exportar ou fazer os diferentes povos incorporarem elementos da língua, literatura e arquitetura persas. Aliás, a Era de Ouro deve em boa medida aos persas que traduziram filósofos, cientistas e matemáticos gregos ao árabe. O leitor verá, ao longo da obra, como a autora se coloca em constante diálogo com essa dualidade constitutiva da identidade iraniana.

A era moderna, marcada por desconfiança e disputa por soberania autônoma, registrou sucessivas concessões econômicas de recursos naturais, industriais e de infraestrutura aos britânicos mesmo antes da dinastia Pahlavi. Uma das características marcantes do livro é dar notoriedade à habilidade política dos clérigos desde muito antes da Revolução Islâmica. Como demonstra Medea, o clero xiita era politicamente forte e ativo desde a estabilidade permitida pelo período safávida, quando o persa era a “língua da diplomacia e da literatura” – ou seja, desde o início da história persa moderna, período de forte florescimento cultural e comercial e que instalou o xiismo como religião oficial, com características marcadamente sufis.

“O Irã atualmente oferece um eixo moral e narrativo-ideológico vanguardista do chamado Eixo da Resistência, composto também pelo Hezbollah no Líbano, Ansar Allah (Houthis) no Iêmen, Hashd al-Shaabi no Iraque e pelo Hamas na Palestina.”

A exemplo da Fatwa do Tabaco em 1890, do seu papel na Revolução Constitucional de 1906 e durante a guerra civil de 1908-1910, do apoio à Frente Nacional contra as concessões à Anglo-Iranian Oil Company e da oposição à imunidade diplomática total dos militares estadunidenses concedida na década de 1960, os clérigos xiitas se opuseram firmemente à corrupção e posição dos monarcas em favor de interesses estrangeiros, limitando seu poder e demandando que os tribunais equilibrassem as leis parlamentares com as religiosas. Ao lado dos comerciantes dos bazares, o clero demandava reformas tributárias, combatia concessões econômicas e demandava mais descentralização administrativa e poder ao parlamento. 

As raízes da Revolução

Ainda que seu conservadorismo tenha, ao longo do século XX, sido alvo da oposição liberal e das classes mais abastadas pró-monarquia, o que a obra demonstra é que, apesar de ter ocorrido sem precedentes e tendo verdadeiramente alterado as estruturas sociopolíticas e econômicas do Irã, a Revolução de 1979 não se tratou de um fenômeno excepcional ex machina. Em outras palavras, foi possível porque as bases já estavam postas décadas antes, ou seja, não aparece num vácuo, sendo reflexo dos vários ensaios constitucionalistas e em oposição ao Ocidente realizados anteriormente. 

Assim, a obra nos convida a perceber que a Revolução Islâmica ocorre não porque o Irã seja uma sociedade ferrenhamente religiosa, ou pela suposta radicalidade intrínseca aos xiitas, mas pelo poder reunido ao longo de décadas pelo seu clero, por sua capacidade de mobilização popular, por sua narrativa político-ideológica e pelos setores da sociedade que foram capaz de reunir em torno de si. Foi, igualmente, resultado da própria repressão conduzida pela dinastia Pahlavi, que baniu organizações políticas e partidos seculares – restando somente ao clero xiita a autoridade moral e robustez institucional enquanto oposição ao status quo

“Fruto do engajamento das elites clericais de forma crescente nas arenas político-sociais, o revivalismo e o ressurgimento do ativismo político xiita no Irã e no Levante se deu desde antes da década de 1970.”


Ademais, a modernização cultural autoritária do xá forjou o caráter moderno iraniano, estabelecendo administração de infraestrutura, defesa e identidade nacional, mas afastou-a da persa e gerou forte clientelismo, esvaziando o poder do parlamento e promovendo severa repressão política – além de reprimir manifestações culturais e linguísticas tradicionais, inclusive religiosas. A liberalização dos costumes foi acompanhada de uma apropriação por parte do regime da direção religiosa e espiritual, de forma que o revivalismo xiita responde precisamente à esta insatisfação. Nesse cenário, além dos estudantes e da intelectualidade, da classe trabalhadora urbana e do jovem clero, o carismático Khomeini unificou em torno de si também as demandas dos comerciantes da classe média conservadora dos bazares, as insatisfações dos liberais seculares e dos grandes proprietários.

Medea demonstra como a Revolução Islâmica refletia a latente disputa social sobre as formas que o bom governo deveria assumir no Irã. Fruto do engajamento das elites clericais de forma crescente nas arenas político-sociais, o revivalismo e o ressurgimento do ativismo político xiita no Irã e no Levante se deu desde antes da década de 1970, cujo ethos concentra-se na luta contra a opressão e a injustiça das quais o segmento se percebe como sendo alvo. Dentro dessa cosmovisão, a resistência contra a opressão, marginalização e sub-representação, fez com que o chamado à ação contra a tirania e o despotismo (ingerência externa, doméstica e regional pró-Ocidente) se apresentasse como dever. Deste modo, dentro da doutrina do jurisconsulto ou do wilayat al-faqih (tutela bem guiada na ausência do Mahdi), autossuficiência e soberania autônoma, boa governança, equidade, moralidade e justiça estão mutuamente imbricadas. Ao longo da obra é possível identificar como os debates em torno desses elementos estão presentes e vão se modificando no decorrer do tempo depois da Revolução de 1979.

As contradições do regime

Com igual desembaraço aos inúmeros episódios de deslealdade e ingerência ocidental – da coordenação da CIA no golpe de 1953 ao prolongamento da guerra Irã-Iraque e do continuado apoio ao obscuro Mojahedin-e-Khalq (MEK) –, a autora não se furta de abordar as contradições internas geradas como consequências indesejadas do novo regime. Tratando a Revolução enquanto processo e dando destaque aos seus matizes, o leitor não deixará de entrar em contato com as novas formas de clientelismo e monopólio econômico, com a hierarquia clerical produzida, a repressão aos direitos políticos e civis e o aumento da pobreza rural e desigualdade econômica.

“O Irã permanece se apresentando como uma ideologia emancipadora e de resistência terceiro-mundista, que, ao se opor tanto à esquerda marxista quanto ao secularismo pan-arabista, quanto ao liberalismo quanto ao wahabismo, se propõe como um paradigma alternativo anti-ocidental.”

Um tamanho significativo da obra de Medea é apresentado como que em formato de manual para leigos, debruçando-se sobre todas as questões que seguramente o público brasileiro gostará de saber acerca do Irã: indo de como é o trabalho dos ativistas e o panorama geral dos direitos humanos no país até como o regime lida com o álcool, o sexo, o aborto e as drogas, além da liberdade de culto e representação legislativa de minorias religiosas como zoroastras e outras denominações. Medea tampouco se omite de analisar o já conhecido fetiche pela mulher iraniana e pelo uso do véu, reforçando a atuação das iranianas como agentes de mudança antes e depois da Revolução.

Passados 45 anos, o Irã permanece se apresentando como uma ideologia emancipadora e de resistência terceiro-mundista, que, ao se opor tanto à esquerda marxista quanto ao secularismo pan-arabista, quanto ao liberalismo quanto ao wahabismo, se propõe como um paradigma alternativo anti-ocidental. O caráter marcadamente transnacional dessa terceira via lhe permite não somente promover seus interesses políticos e securitários na região, cooperando financeira, logística e tecnicamente com seus aliados, como também oferece um eixo moral e narrativo-ideológico vanguardista do chamado Eixo da Resistência, composto também pelo Hezbollah no Líbano, Ansar Allah (Houthis) no Iêmen, Hashd al-Shaabi no Iraque e pelo Hamas na Palestina. Essa posição permite ao Irã desempenhar um papel fundamental na região e no universo islâmico como plataforma que se propõe unificadora por ser pró-Palestina e antissectária. Essa atuação, contraditoriamente, se dá em reação ao isolamento imposto sobre os iranianos e a recusa a sua participação nos arranjos securitários do pós-guerra na região.

A reconfiguração no Oriente Médio e a guerra sionista

Sendo o Oriente Médio um palco de mudanças constantes, a obra de Medea é anterior ao prolongamento da guerra israelense contra Gaza desde outubro de 2023 e à abertura de novos fronts regionais, como no Líbano e no próprio Irã. É também anterior tanto à queda do regime de Bashar al-Assad na Síria, em dezembro de 2024, meses após a morte do presidente iraniano Ebrahim Raisi e seu ministro das Relações Exteriores, Hossein Amir-Abdollahian, quanto ao assassinato de Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah. Esses acontecimentos, agora sob o segundo mandato do presidente estadunidense Donald Trump – que se retirara unilateralmente do acordo nuclear histórico com o Irã alcançado em 2018 – podem significar o desenho de uma nova arquitetura de segurança para o Oriente Médio. A nova conjuntura deve considerar, particularmente, a restauração dos laços diplomáticos entre Irã e Arábia Saudita, esforço mediado pela China em 2023, e os Acordos de Abrão normalizando as relações entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein em 2020.

Se por um lado a evolução dos acontecimentos conjunturais recentes apontam para cenários potencialmente distintos, por outro refletem a própria complexidade desta esfera e a ausência de linearidade da política externa iraniana. Oscilando de forma pendular entre o rompimento do isolacionismo internacional conduzido por presidentes mais pragmáticos e reformistas e as reações conservadoras retroagindo a abertura quando suas expectativas se provaram frustradas, a autora demonstra como nas últimas décadas o país vem sofrendo o forte impacto das sanções e demandas internas por reforma. Paradoxalmente, não somente as sanções geram efeitos-rebote no que diz respeito à legitimidade do regime, como elas os levam a desenvolver estratégias criativas de autossuficiência, como uso de engenharia reversa, diversificação da indústria nacional e desenvolvimento da cultura tradicional.

(Reprodução HispanTV)

Por dentro do Irã, além de se propor a um resgate honesto da história política recente iraniana, se apresenta como um grande convite para que o leitor, após tomar posse desse instrumental, possa refletir sobre sua legitimidade, seus avanços e retrocessos. A obra, ademais, nos convida a pensar como tradição e modernidade devem se inter-relacionar, como política e religião podem ser combinadas através de um sistema sofisticado de pesos e contrapesos e como agentes transnacionais disruptivos respondem à crise da democracia e do multilateralismo. 

O convite que nos faz a editora Autonomia Literária é principalmente para refletirmos de que modo a população iraniana pode ser a protagonista formuladora de uma modalidade de governo soberano e independente que esteja acompanhado do seu sistema jurídico equivalente. E que esse resultado ressignifique a tradição e reformule seu nacionalismo a partir desta e em concerto com os anseios e contradições domésticas – oriundas das demandas morais, (a)religiosas, econômicas e políticas da sociedade iraniana – mas sem que esse resultado de governança signifique, necessariamente, entrar no formato do sistema ocidental. Afastando-se ao mesmo tempo de um paroquialismo essencializante que tudo culturaliza e de um orientalismo estranhado que tudo exotiza, o leitor verá que a obra reforça a multiplicidade da identidade iraniana, abandonando uma visão estática e linear sobre seu presente mas também sobre seu futuro.

Sobre os autores

Natalia Calfat

é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), onde atua como pesquisadora do Grupo de Trabalho sobre Oriente Médio e Mundo Muçulmano, como editora-executiva da Revista Malala e como teaching fellow na Ipsa-usp Summer School in Concepts, Methods and Techniques in Political Science, Public Policy, and International Relations. Recebeu menção honrosa no Prêmio tese destaque USP 2023. Foi visiting scholar na Universidade Harvard (2019) e research assistant do Project on Shi’ism and Global Affairs no Weatherhead Center for International Affairs, Harvard Divinity School. Atualmente, preside o Instituto da Cultura Árabe.


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