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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Sobre a tortura no colonialismo

 

Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017

 TORTURA E CONFIGURAÇÃO COLONIALISTA: UMALEITURA“FANONIANA” DOLIVRO “TORTURA NACOLÔNIA DEMOÇAMBIQUE(1963-1974)”, E MAIS ALÉM

 Muryatan S. Barbosa66

 Resumo: este artigo traz uma análise “fanoniana” do livro “Tortura na colônia de Moçambique (1963-1974)”. Para isto, inicialmente, define o que seria tal análise e explica a importância do livro em pauta. Posteriormente, procede a investigação propriamente dita, seguindo a hipótese de que a dita interpretação do problema da tortura no colonialismo, além de captar o fenômeno histórico ali tratado, lança luz para uma visão mais sistêmica da temática da tortura por si mesma, tratando-a como um elemento específico de toda “configuração colonialista”. Para Fanon,um todo maior, estrutural, que marcaria as relações entre povos conquistados e conquistadores, para além do colonialismo. Palavras chave: Frantz Fanon – Tortura - PIDE – Moçambique – Descolonização.

 Abstract: This article presents a "fanonian" analysis of the book "Torture in the colony ofMozambique (1963-1974)". For this, initially, it defines what this analysis would be and explainsthe importance of the book in question. Subsequently, the investigation itself proceeds, followingthe hypothesis that the mentioned interpretation of the problem of torture in colonialism, in additionto capturing the historical phenomenon addressed there, provide a systemic view of the subject oftorture itself, treating it as a specific element of every "colonial configuration." For Fanon, astructural character of the relations between conquered and conquering peoples, beyondcolonialism.Keywords: Frantz Fanon – Torture – PIDE – Mozambique – Decolonization. 

 Sobre Fanon e o livro em análise 

Este artigo traz uma análise “fanoniana” do livro Tortura na colônia de Moçambique(1963-1974)”, publicado em 1977, pela editora Afrontamento (Portugal). Para isto,preliminarmente, faz-se necessário alguns esclarecimentos sobre dois pontos aí elencados: a) o que significa a análise proposta; b) o que é este livro e qual o contexto histórico em que ele está inserido. 66Professor Adjunto do BCH/BRI-CECS da Universidade Federal do ABC. 74   

 Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017

 Nos últimos anos, têm proliferado pesquisas acadêmicas que se dizem inspiradas no pensamento de Frantz Fanon (1925-1961). Em relação ao ponto específico do papel da tortura, valedestacar os trabalhos recentes de Paul Giroy (2010), Nicole Waller (2008) e Manar Hassan (2008). Este fato faz com que se faça ainda mais necessário qualificar o que se entende aqui por uma análise“fanoniana”. Fanon tratou do problema específico da tortura em dois momentos. O primeiro foi no ensaioArgélia face a face com os torturadores franceses”, originalmente publicado no jornal El Moudjahid, em setembro de 1957. Este foi posteriormente republicado no livro póstumo, “Por uma revolução africana”, de 1964. O segundo momento foi no capítulo final dos “Condenados da terra(1961), sob título: “Guerra colonial e distúrbios mentais”. Trata-se, seguramente, da parte menos lida e conhecida deste livro célebre67.O primeiro ensaio é essencial para entender o ponto de vista do autor sobre o assunto. Em1957, data de sua publicação, Fanon já havia se integrado a luta de libertação argelina, dirigida pela FLN. Era um intelectual orgânico desta. E, como parte de tal integração, ajudava a editar o jornal El Moudjahid, na Tunísia. Entretanto, vale dizer, o que estava ali colocado sobre a questão da tortura na guerra colonial argelina não era mero reflexo de sua aproximação ideológica desta causa. Entre1953 e 1956, como médico psiquiatra que era, o autor trabalhou em diversas instituições e hospitais na Argélia. E lá tratou de pacientes que tinham passado especificamente pela tortura, tanto como torturadores, quanto como torturados. Ele tinha, portanto, experiência profissional e vivencial sobre o assunto. E é isto em que ele se baseia para escrever suas notas. Neste ensaio, Fanon defende que a tortura, longe de ser uma exceção, era a regra de uma configuração colonialista, estruturada pela dominação policial, pelo racismo sistemático e por um processo de desumanização racionalmente perseguido (Fanon, 1994 [1964]: 64). Em suas palavras: “A Revolução Argelina busca sem dúvida restaurar seus direitos à existência nacional. Isso, obviamente, testemunha à vontade do povo. Mas o interesse e o valor da nossa Revolução residem na mensagem de que ela é portadora. 

67Prevendo objeções a este parte do livro, o próprio autor escreveu: “Abordamos aqui o problema dos distúrbiosmentais originados na guerra de libertação nacional travadas pelo povo argelino. Talvez se julguem inoportunas esingularmente deslocadas neste livro estas notas de psiquiatria. Mas nada podemos fazer” (Fanon, 2005 [1961]:287).  75  

 Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017 

As práticas verdadeiramente monstruosas que apareceram desde 1 de Novembro de1954, são surpreendentes especialmente por causa da extensão em que elas setornaram generalizadas. Na realidade, a atitude das tropas francesas na Argélia seencaixa em um padrão de dominação policial, de racismo sistemático e dedesumanização racionalmente perseguida. A tortura é inerente a toda configuraçãocolonialista (Fanon, 1994, p. 64)68.Vale dizer, conforme a colocação acima, a tortura não é a regra do colonialismo, mas dealgo maior: a configuração colonialista. E isto fica evidente na forma como Fanon completa a fraseacima: A revolução argelina, ao propor a libertação do território nacional, évoltada tanto para a morte desta configuração quanto a criação de uma novasociedade. A independência da Argélia não é apenas o fim do colonialismo,mas o desaparecimento, nesta parte do mundo, de um germe de gangrena ede uma fonte de epidemia” (Fanon, 1994 [1964]: 64).Ou seja, a tarefa maior da Revolução Argelina, que ele defendia, não era “apenas” derrotar ocolonialismo. Mas destruir tal configuração colonialista, que, portanto, por lógica, deve serentendida como algo maior que o colonialismo69. As palavras do autor são bem colocadas70. Além de propor uma luta específica para talrevolução, ele se opõe a todos àqueles que, por ingenuidade ou cinismo, acreditavam que a torturada polícia e das tropas francesas na Argélia era algo pontual. Em suma, exceções, como diziam os

 68Traduções realizadas pelo autor deste artigo.69O termo utilizado por Fanon em francês é “ensemble colonialiste”. Mantivemos o termo “configuração colonialista”,utilizado pelo tradutor da versão inglesa de 1994 (Haakon Chevalier), por acharmos que ele traduz bem este sentidooriginal, em francês. Segue a citação original em francês: “Les pratiques authentiquement monstrueuses qui sont apparues depuis le 1ernovembre 1954 étonnent surtout par leur généralisation... En réalité, l’attitude des troupesfrançaises en Algérie se situe dans une structure de domination policière, de racismesystématique, de déshumanisation poursuivie de façon rationnelle. La torture est inhérente àl’ensemble colonialiste” (Fanon, 2001, pp. 74-75.). Em nossa opinião, a tradutora da edição portuguesa da obra (Em defesa da Revolução africana, 1980), IsabelPascoal, fez uma escolha ruim ao caracterizar o termo “ensemble colonialiste” por “todo colonialista” (Fanon, 1980,p. 71). Ao fazê-lo desta forma, inclusive, ela não captou a riqueza da frase seguinte, em que Fanon diz que oobjetivo da revolução argelina não seria apenas promover a independência. Para ele, não se trata, tão somente, dedestruir o “todo colonialista”. Trata-se de destruir à estrutura colonialista – a configuração colonialista - que seconsolida com o colonialismo, mas que continua a existir para além dele.70Na verdade tratava-se de um esforço coletivo da equipe do El Moudjahid, como mostrou a secretária de Fanon àépoca, Alice Cherki (2006), em sua biografia do autor. Este trabalho coletivo minimizava a probabilidade de erros eintepretações dúbias

 76Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017

 “democratas” e “liberais” franceses que Fanon critica em diversos artigos71. Enquanto fenômeno sistêmico, para o autor, a tortura tinha um papel fundamental nocolonialismo, porque este não podia existir sem a possibilidade de violência contra o colonizado,por danos físicos, violações e massacres (Fanon, 1994 [1964]: 66). Mas, vale repetir, o colonialismo(dominação político-administrativa de um país sobre outro)é apenas uma forma da configuraçãocolonialista.E, para deixar isto evidente, diz o autor: “Torture is an expression and a means of theoccupant-occupied relationship” (Fanon, 1994 [1964]: 66). Ou seja, a tortura é a expressão e ummeio das relações de conquistador-conquistado. Algo cuja origem foi o colonialismo, mas queexiste para além deste. Outro ponto destacado por Fanon neste ensaio merece atenção. Diz respeito à especificidadeda tortura durante a guerra colonial. E isto é importante porque o livro aqui analisado – “Tortura nacolônia de Moçambique, 1963-74” – se encaixa neste contexto. Trata-se de dois pontosprimordiais. O primeiro é que, para o autor, a tortura torna-se cada vez mais cruel conforme aguerra anticolonial progride. Afinal, segundo ele, os torturadores, além de trabalharem cada vezmais, veem seus esforços tornarem-se vãos, com o avanço da luta pela independência nacional(Fanon, 1994 [1964]: 67). Em segundo lugar, diz o autor, desde que o exército francês passou atorturar na Argélia de forma sistemática (a partir de 1955), tentando desmantelar a luta de libertaçãonacional daquele país, ocorreu uma mudança qualitativa desta violência institucional. A torturatornou-se profissional, ou, pelo menos, buscou tal profissionalização, tornando-se cada vez maisabjeta na busca de seu objetivo primordial: conseguir informações úteis da forma mais rápidapossível. A tortura teria ganhado métodos, técnicas, instrumentos e mesmo filosofias novas (Fanon,1994 [1964]: 68). O autor aponta dois autores intelectuais de tal empreendimento: os agentes Lofrédo(superintendente em Argel) e Podevin (policia judicial de Blida, cidade argelina). Para finsposteriores, é importante apresentar os métodos de tortura defendidos por tais indivíduos. O métodoLofrédo significa prender o indivíduo, mas não torturá-lo imediatamente. Tratar-se-ia de um“condicionamento por exemplo”. Neste, o preso é obrigado a presenciar a tortura e assassinato deoutros presos de menor importância para os torturadores. Depois de este presenciar cinco ou seismortes, se iniciam os verdadeiros interrogatórios. O método Podevin, segundo Fanon, seria o detorturar imediatamente o preso, de forma cruel. Neste momento não se faria qualquer pergunta. Só

 71Por exemplo: “French Intellectuals and Democrats and the Algerian Revolution” (1994 [1964]). 77

Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano X, NºXX, dezembro/2017 

após cinco ou seis sessões destas começariam os interrogatórios. Uma coincidência entre os métodos deve ser salientada. Nos dois métodos, o interrogador mais ouviria do que perguntaria. A tática seria não dar “pistas” para as respostas. Assim, a esperança da tortura terminar é sempre adiada, na medida em que o torturado nunca sabe o que seus torturadores querem que ele diga. Como passar dos anos, diz Fanon, o sistema vai se pervertendo, pois os torturadores acabando sem“acostumando” ao meio. Neste estágio, a tortura vai se tornando um fim em si mesmo (Fanon, 1994[1964]: 68-69). Uma explicação do porque isto aconteceria aparece nos Condenados da terra (1961), no capítulo já referido, pois alise têm uma análise psiquiátrica dos torturadores. Diz Fanon que conforme a tortura torna-se mais sistêmica e corrente, mais os indivíduos de personalidade sádica se destacam em seu trabalho, pois estes tem prazer em infligir dor ao Outro72. E, portanto, chegar ao objetivo de toda tortura: chegar o mais rapidamente possível ao limiar insuportável do sofrimento,em que todos os indivíduos tendem a falar aquilo que se pretende que ele diga. Esta é a lógica. E o melhor torturador é aquele que consegue fazer isto mais rapidamente, acobertado pela certeza daimpunidade, por ser agente do Estado (Fanon, 2005 [1961]: 323). A tortura institucional é, portanto, inerentemente desumana e cruel. Mas é tambémassassina. Não só pelos métodos em si. Mas também porque favorece o comportamento sádico, em que o torturador passa a matar as suas vítimas em vez de interroga-las. Neste sentido, nos Condenados... Fanon conta, por exemplo, a história de uma jovem francesa, sua paciente, que lh edisse que seus problemas psíquicos eram derivados dos gritos de tortura que ouvia em sua casa na Argélia. Isso porque, seu pai, tinha se tornado o maior torturador da região rural em que morava. E,sobre sua responsabilidade, naquela região, se matava mais de dez pessoas por dia! (Fanon, 2005[1961]: 318). É um meio que se torna um fim. Assim se resume a análise “fanoniana” da tortura. Trata-se de um fenômeno comum a toda configuração colonialista, derivado de uma relação de conquistador e conquistado, cujocolonialismo é o sistema paradigmático, mas não único. Trata-se, ademais, de uma prática intrinsicamente sádica e assassina, utilizada com forma de controle social pelos agentes do Estado.Este, enquanto presente na guerra colonial é quantitava e qualitativamente alterado pelo ódio à resistência local e por métodos profissionais, o que implica conhecimento e técnicas especializadas. 

72Daí que Fanon fale da importância do estupro nesta estrutura colonial. O estupro é, eminentemente, um ato sádico.Ele permite a realização de uma vontade contra a Outra. Quanto mais dor ele conseguir causar em sua vítima, maisprazer o estuprador terá no seu ato (Fanon, 1994 [1964]: 72).(...) »

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