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terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A esquerda ucraniana depois da queda da URSS : uma perspectiva

 

Maidan, Donbass e a esquerda (2): A esquerda ucraniana depois da queda da URSS

Volodymyr Ishchenko faz o retrato da esquerda ucraniana até ao início de Maidan. Entre a velha esquerda com liderança assimilada à elite burguesa e o PCU alinhado com posições pró-russas e a nova esquerda dividida e concentrada na capital.
 

Militante com uma bandeira vermelha em Donetks em 2007. Foto de S8/Flickr.
Militante com uma bandeira vermelha em Donetks em 2007. Foto de S8/Flickr.

No seu estudo “A esquerda ucraniana durante e depois dos protestos de Maidan”, o sociólogo Volodymyr Ishchenko distingue entre a “velha esquerda”, que englobaria os sucessores do Partido Comunista da União Soviética, e a “nova esquerda” que conta com as organizações políticas, sindicatos e iniciativas culturais que eram críticas dessa tradição e que geralmente não mantinham relações com ela.

A “velha esquerda” foi perdendo espaço

A “velha esquerda” materializava-se sobretudo no Partido Comunista da Ucrânia. Do golpe de Estado na URSS em 1991 tinha resultado a interdição do PCUS. Na Ucrânia, este foi restabelecido dois anos depois. O PCU foi, durante os anos 1990, o partido mais popular do país (em 1998, no seu auge, obteve 24,7% dos votos e o seu candidato presidencial e líder histórico, Petro Symonenko, no ano seguinte, obteve 37,8%). Isto, segundo o sociólogo, “levou o partido a dar uma prioridade cada vez maior à política parlamentar em detrimento das mobilizações extra-parlamentares”, a “concentrar uma influência esmagadora no grupo parlamentar” que se foi tornando cada vez mais “uma parte normal da elite burguesa quer através da corrupção de líderes partidários quer através da venda de lugares nas listas do partido a empresários em troca do seu apoio financeiro em campanhas eleitorais”.

O partido sofrerá um revés forte em 2002 quando obteve apenas 14% dos lugares no parlamento e esta tendência continuará no resto dos anos 2000, com resultados de 3,6% e 5,4% nas eleições legislativas de 2006 e 2007 e de 5% e 3,5% para Symonenko nas presidenciais de 2005 e 2010.

De acordo com a análise deste investigador, o conservadorismo do PCU jogou um papel importante nestas derrotas. Se, por um lado, um conservadorismo social significava uma reação no sentido de defender o que ainda existia da Segurança Social soviética contra o neoliberalismo, que tinha aliás como contrapeso uma “incapacidade de propor e liderar um luta pró-ativa pela transformação socialista”, por outro o conservadorismo cultural levava-o a defender políticas reacionárias em termos de relações de género e de sexualidade e o “patriotismo soviético” tornava-se “nostalgia do Estado forte e do nacionalismo russo”. Ainda assim, o PCU não foi tão longe quanto o seu contraparte russo neste caminho, ressalva-se.

Este posicionamento levou-o a “alinhar-se claramente” com o eleitorado do leste da Ucrânia e a envolver-se nas “guerras culturais” sobre a questão nacional, a língua, a história e até as disputas entre Igrejas “em detrimento de uma posição consistente sobre os temas sociais-económicos”. Daí ao alinhamento com o Partido das Regiões de Viktor Yushchenko foi mais um passo e, em 2006 e 2010, o PCU entrou mesmo no executivo com este, apesar das suas medidas neoliberais de governo.

Das eleições de 2012, as últimas antes de Maidan, em que obteve 13,18%, já não resultou a sua entrada no governo mas continuou a ser entendido como parceiro privilegiado do Partido das Regiões. Antes disso, partidos como o Partido Socialista da Ucrânia e o Partido Socialista Progressista de Ucrânia tinham marcado presença esporádica no Parlamento com muito menos peso. O primeiro tinha sido o herdeiro direto do PCU quando este fora ilegalizado em 1991, tendo perdido muitos dos seus militantes quando este foi restaurado. Orientou-se depois para a Segunda Internacional, fez parte dos movimentos de oposição e esteve do lado da “Revolução Laranja”, em 2004, que depôs pela primeira vez Yanukovych, que tinha então sido acusado de fraude eleitoral. Dois anos depois, vira a linha política e alia-se ao Partido das Regiões. O resultado é que nas eleições de 2007 deixa de ter representação parlamentar. Em 2012 ainda tenta fazer uma aliança de centro-esquerda com vários grupos, mas volta a falhar a eleição.

Uma sua cisão “ortodoxa” feita em meados do anos 1990, o PSPU, conseguiu também entrar no Parlamento em 1998 (com 4%) e, nas presidenciais do ano seguinte, Natalia Vitrenko, a sua líder, obteve 11%. De um anunciado leninismo, passou a uma social-democracia programática e acabou por chegar “a posições muito mais nacionalistas russas e conservadoras do que os comunistas”. A escolha da retórica do “conflito de civilizações” com “prioridade à defesa da “civilização ortodoxa eslava de leste” contra o imperialismo ocidental e uma escolha geo-política pró-russa acima do conflito de classes” não teve resultados eleitorais positivos e, em 2002, desapareceu do parlamento.

Volodymyr Ishchenko conclui que estes partidos chegaram à crise de Maidan num estado de estagnação que durava há muito, tinham adotado uma linha social-democrata e/ou o nacionalismo russo, desacreditando-se com alianças com os partidos oligárquicos e com uma “integração na elite política e económica”.

Na “velha esquerda” o autor inclui ainda vários “partidos ortodoxos estalinistas microscópicos” que vieram do PCU e que partilhavam o seu conservadorismo, o domínio da geração mais velha, realidades organizativas marcadas pelo “medo da auto-organização” e ausência de trabalho de massas.

Uma “nova esquerda” fraca e dividida

O panorama da esquerda pós-fim da URSS não se esgotava aqui. A outra componente era a “nova esquerda” que não estava ligada ao anterior regime e que partilhava entre si uma identidade “bastante superficial e negativa” com base na crítica à burocratização e aos “desvios das ideias e práticas socialistas”. Não se resumia a partidos políticos (ou agrupamentos semelhantes), incluindo sindicatos independentes, associações de estudantes, ONGs, iniciativas culturais e redes informais, num total estimado de cerca de mil pessoas.

No geral, este fraco número e dispersão de atividades resultaram na fragilidade de organismos que “não conseguiam sobreviver sequer por um punhado de anos, não deixando história significativa”. Porém, em alguns aspetos, campanhas, sindicatos e iniciativas a marca ficou.

A Associação Borotba será o grupo mais conhecido. É uma cisão de uma iniciativa de parte da “nova esquerda” no final dos anos 2000, a Organização dos Marxistas que pretendia unir revolucionários de várias tendências mas que nunca conseguiu a almejada unidade. Da divisão final desta, em 2011, resultaram o Borotba, organizando grupos que tinham saído do PCU, a Oposição de Esquerda, formada por pós-trotskistas e alguns intelectuais, e o Contra a Corrente, de um pequeno grupo comunista.

O Borotba reivindicou-se “marxista-leninista” mas distanciava-se do regime anterior. Organizou uma campanha de confronto político com o partido de extrema-direita Svoboda e várias outras iniciativas com algum impacto. Para além de membros seus terem criado a revista online Liva, uma das mais populares na esquerda ucraniana e que ainda hoje existe.

A organização sempre foi polémica no campo da “nova esquerda”. Os movimentos anarquistas criticavam-lhe o aproveitamento propagandístico que fazia das lutas sociais. Outros acusavam-no estalinismo e de sectarismo (Ishchenko prefere dizer que eram “muito tolerantes ao estalinismo”). A essas críticas se juntavam a de um conservadorismo herdado do PCU e de sexismo.

A estas ainda se somou o caso de, ainda na altura da Organização dos Marxistas, vários dirigentes do grupo terem pedido uma bolsa de 30.000 dólares ao Fórum Internacional da Esquerda, uma fundação do Partido da Esquerda sueco, sem consultarem o resto da organização. E as suspeitas de ligação ao partido de Putin, o Rússia Unida, muito antes da crise de Maidan.

No campo anarquista, sobressaiu a Ação Direta, um sindicato estudantil fundado em 2008 com uma coordenação horizontal. Crítica da comercialização do ensino, focava-se na luta contra o autoritarismo na educação, por uma pedagogia libertária e pelos direitos dos estudantes. Em alguns momentos “foi praticamente a única força no movimento estudantil ucraniano” mas também se mobilizava em defesa dos trabalhadores, da igualdade de género e dos direitos civis. Apesar de momentos de dinamismo, “no final de 2013, estava em crise óbvia, exausta devido à cooperação com os liberais nacionais nas campanhas do ensino superior, cansada de conflitos entre grupos sectários que exploravam a mobilização sindical e não conseguindo resolver o problema da transição de gerações” na sua liderança. O Sindicato Autónomo dos Trabalhadores pretendia ser a organização dos ex-ativistas estudantis mas vivia do sucesso daquela sem conseguir sequer criar qualquer célula sindical de empresa (para a qual seriam precisas três pessoas).

A Oposição de Esquerda também permaneceu pouco expressiva apesar de ter conseguido ligações com a principal confederação sindical independente, a Confederação dos Sindicatos Livres da Ucrânia.

No sindicalismo, sobressaía ainda o sindicato independente Defesa do Trabalho. Conseguia organizar,  entre outros, trabalhadores da construção civil e portuários, empregados de supermercado e distinguia-se por não estar praticamente limitado a Kiev, ao contrário de vários outros grupos.

Esta organização também se viu envolvida numa amarga polémica por, em 2013, ter colaborado com o movimento Resistência Autónoma. Este era um fenómeno de massas que tinha tido origens no movimento neo-nazi e “tinham-se deslocado muito para a esquerda, apesar de talvez manterem alguns resíduos das suas origens de extrema-direita, particularmente algumas atitudes nas questões de género”.

As esquerdas nos protestos

Uma boa medida da dimensão, influência e temáticas preferidas das esquerdas é-nos dada pela análise da sua participação em protestos na Ucrânia. O autor mediu-a no período imediatamente anterior a Maidan (de janeiro de 2011 a novembro de 2013) através de dados do Centro para a Investigação Social e do Trabalho.

A sua conclusão foi que a participação da esquerda não constituía uma grande fatia no conjunto dos protestos realizados no país. As esquerdas marcaram presença em apenas cerca de 9% dos protestos nacionais. Comparativamente, o número de protestos em que a extrema-direita participou foi muito maior: 20%. Na “velha esquerda”, o PCU era de longe o partido com presença mais ativa em protestos. Na “nova esquerda” não havia propriamente uma organização preponderante neste aspeto.

Para além dos desfiles tradicionais comemorativos do dia do trabalhador e da Revolução de Outubro, destacam-se as campanhas do PCU contra a reforma das pensões e a da Ação Direta contra a nova lei do ensino superior, ambas em 2011. Em 2013, o PCU opôs-se à política pró-europeia de Yanukovych e a possibilidade de um empréstimo do FMI e fez campanha por uma união aduaneira com a Rússia como alternativa. Ao mesmo tempo, a “nova esquerda” “estava mais ativa em lutas laborais locais contra salários não pagos e fraudes dos patrões”. Este lado protestava ainda contra violações de direitos de cidadania enquanto a “velha esquerda” “muito raramente” o fazia, “enfatizando conflitos ideológicos e “guerras culturais” à volta de questões históricas, linguísticas, geopolíticas e religiosas”.

Comparativamente, a “nova esquerda” protestava menos sobre conflitos ideológicos (e na sua esmagadora maioria estes eram protestos antifascistas), mais sobre temas sócio-económicos e muito menos em temas políticos gerais, dada a sua falta de representação política nacional.

A distância entre os dois campos pode ser aferida pelo facto de, neste período de tempo, apenas terem sido registados cinco casos em que a “nova esquerda” e a “velha esquerda” participaram no mesmo evento. Pelo contrário, a “velha esquerda” cooperou “de forma bastante substancial” com nacionalistas russos e até com a extrema-direita “num número muito pequeno de protestos sócio-económicos a maior parte deles locais”.

Sublinhe-se ainda que a “velha esquerda” “não estava na verdade muito ativa em protestos de trabalhadores, estudantes, pequenos negócios ou de bairro” mas muito nos dos pensionistas, dos trabalhadores da antiga central nuclear de Chernobyl e veteranos de guerra. Por seu lado, a “nova esquerda” não marcava praticamente presença nas mobilizações destas últimas camadas nem nas dos pequenos negócios, mas tentava participar nas dos trabalhadores e estudantes.

Regionalmente, a “velha esquerda” era mais forte no sul e leste e menos em Kiev e no ocidente. A “nova esquerda” centrava-se sobretudo em Kiev.

A esquerda chega assim ao fim de 2013, quando começa a onda que vai mudar o panorama político da Ucrânia, “muito mais fraca” do que a extrema-direita. Com a liderança da “velha esquerda” parlamentar “junto com elite burguesa” e o PCU a ser visto como “parte da coligação governante com o oligárquico Partido das Regiões” e alinhado com posições pró-russas. E com a “nova esquerda” sem representação política, concentrada na capital e dividida, apesar de ser jovem.

Termos relacionados Ucrânia, Internacional
  in Esquerda.net 

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Michael Roberts

 

Davos 23: em forma de pêra

Esta semana, o jamboree da rica elite global do Fórum Econômico Mundial (WEF) começou novamente após o interregno do COVID. Os principais líderes políticos e empresariais voaram em seus jatos particulares para discutir as mudanças climáticas e o aquecimento global, bem como a iminente crise econômica global, a crise do custo de vida e a guerra na Ucrânia.

Seu humor é aparentemente pessimista. Dois terços dos principais economistas entrevistados pelo WEF acreditam que é provável que haja uma recessão global em 2023, com quase um em cada cinco dizendo que é extremamente provável que ocorra. Os líderes corporativos também estão ansiosos, com 73% dos CEOs em todo o mundo avaliando que o crescimento econômico global diminuirá nos próximos 12 meses. Essa é a perspectiva mais pessimista desde que a pesquisa do WEF foi feita pela primeira vez há 12 anos.

Pouco antes do início do Fórum na neve da exclusiva estação de esqui de Davos, na Suíça, o WEF publicou seu Relatório de Risco Global.   Faz uma leitura chocante sobre o estado do capitalismo global na década de 2020.

O relatório diz que: “a próxima década será caracterizada por crises ambientais e sociais, impulsionadas por tendências geopolíticas e econômicas subjacentes”.  A crise do custo de vida é classificada como o risco global mais grave nos próximos dois anos, com pico no curto prazo. A perda de biodiversidade e o colapso do ecossistema são vistos como um dos riscos globais de deterioração mais rápida na próxima década e todos os seis riscos ambientais figuram entre os dez principais riscos nos próximos dez anos. 

O relatório continua: “A inflação contínua impulsionada pela oferta pode levar à estagflação, cujas consequências socioeconômicas podem ser graves, dada uma interação sem precedentes com níveis historicamente altos de dívida pública. A fragmentação econômica global, as tensões geopolíticas e a reestruturação mais difícil podem contribuir para o endividamento generalizado nos próximos 10 anos”.   Ele observa que “a tecnologia exacerbará as desigualdades ; enquanto os esforços de mitigação climática e adaptação climática são configurados para uma troca arriscada, à medida que a natureza entra em colapso. E “crises de alimentos, combustível e custos exacerbam a vulnerabilidade social, enquanto o declínio dos investimentos no desenvolvimento humano corroem a resiliência futura”.   Aparentemente, o risco de uma 'policrise' se acelerou.

O que os organizadores do FEM e seus participantes planejam fazer sobre essa 'policrise'? Bem, o WEF parte da suposição de que o capitalismo deve sobreviver, mas a melhor maneira de conseguir isso é "moldar" o capitalismo em algo "inclusivo para todos".   Klaus Schwab, o co-fundador do WEF gosta de chamá-lo de 'capitalismo das partes interessadas'.

Schwab explica: “De um modo geral, temos três modelos para escolher. A primeira é o “capitalismo de acionistas”, adotado pela maioria das corporações ocidentais, que afirma que o objetivo principal de uma corporação deve ser maximizar seus lucros. O segundo modelo é o “capitalismo de estado”, que confia ao governo a definição da direção da economia e ganhou destaque em muitos mercados emergentes, inclusive na China. Mas, comparada a essas duas opções, a terceira tem mais a recomendar. O “capitalismo das partes interessadas”, um modelo que propus pela primeira vez meio século atrás, posiciona as empresas privadas como administradoras da sociedade e é claramente a melhor resposta aos desafios sociais e ambientais de hoje.”

As grandes corporações devem ser os 'curadores da sociedade' e a principal força na solução dos “desafios sociais e ambientais de hoje”.   Mas precisamos substituir o 'capitalismo de acionistas' onde “ o foco único está nos lucros para que o capitalismo se torne cada vez mais desconectado da economia real”. Segundo Schwab, “essa forma de capitalismo não é mais sustentável”.   Em contraste, as grandes corporações, em conjunto com governos e organizações multilaterais, podem desenvolver um 'capitalismo de partes interessadas', que, segundo Schwab, pode “aproximar o mundo de alcançar objetivos compartilhados”.

Todos os anos, a Oxfam divulga seu relatório anual sobre desigualdade para coincidir com a reunião do WEF, a fim de expor a hipocrisia do 'capitalismo de partes interessadas'. O relatório deste ano contou a história do aumento da desigualdade de riqueza e renda desde a pandemia.  “Nos últimos dois anos, o 1% dos super-ricos do mundo ganhou quase o dobro da riqueza dos 99% restantes juntos”, disse a Oxfam.

Embora existam quase 8 bilhões de pessoas no mundo, pouco mais de 3.000 são bilionários em novembro de 2022. Esse pequeno grupo de pessoas vale quase US$ 11,8 trilhões – o equivalente a cerca de 11,8% do PIB global. Enquanto isso, pelo menos 1,7 bilhão de trabalhadores vivem em países onde a inflação está superando o crescimento salarial, mesmo com as fortunas bilionárias aumentando US$ 2,7 bilhões (€ 2,5 bilhões) por dia. 

O relatório anual de riqueza global do Credit Suisse é a análise mais abrangente da riqueza pessoal global e sua distribuição.  O relatório de 2022 revelou que, até o final de 2021, a riqueza global total atingiu US$ 463,6 trilhões, ou mais de 4,5 vezes a produção anual mundial. A riqueza global subiu 9,8% em 2021, muito acima da média anual de 6,6% registrada desde o início do século. Se você excluir o movimento das moedas, a riqueza global agregada cresceu 12,7%, tornando-se a taxa anual mais rápida já registrada. 

Esse aumento vertiginoso deveu-se a dois fatores: o aumento acentuado dos preços dos imóveis e um boom do mercado de ações alimentado pelo crédito. Assim, quase todo esse aumento de riqueza foi para os mais ricos do mundo. De fato, em 2020, 1% de todos os adultos (56 milhões) no mundo possuía 45,8% de toda a riqueza pessoal do mundo; enquanto 2,9 bilhões possuíam apenas 1,3%. Em 2021, essa desigualdade se agravou. Em 2021, o 1% mais rico agora possuía 47,8% de toda a riqueza pessoal, enquanto 2,8 bilhões possuíam apenas 1,1%!  E os 13% mais ricos possuem 86% de toda a riqueza.

O relatório da Oxfam aponta que para cada US$ 1 arrecadado em impostos, apenas quatro centavos vêm de impostos sobre a riqueza. A falha em tributar a riqueza é mais pronunciada em países de baixa e média renda, onde a desigualdade é maior. Dois terços dos países não têm nenhuma forma de imposto sobre herança sobre riqueza e bens passados ​​para descendentes diretos. Metade dos bilionários do mundo agora vive em países sem esse imposto, o que significa que US$ 5 trilhões serão repassados ​​sem impostos para a próxima geração, uma soma maior que o PIB da África.

As alíquotas máximas de imposto sobre a renda tornaram-se mais baixas e menos progressivas, com a alíquota média dos mais ricos caindo de 58% em 1980 para 42% mais recentemente nos países da OCDE. Em 100 países, a taxa média é ainda menor, de 31%. As taxas de imposto sobre ganhos de capital – na maioria dos países, a fonte de renda mais importante para o 1% mais rico – são de apenas 18%, em média, em mais de 100 países. Apenas três países tributam mais os rendimentos do capital do que os rendimentos do trabalho.  

Muitos dos homens mais ricos do planeta hoje conseguem pagar quase nenhum imposto. Por exemplo, um dos homens mais ricos da história, Elon Musk, pagou uma 'taxa de imposto real' de 3,2%, enquanto outro dos bilionários mais ricos, Jeff Bezos, paga menos de 1%.

A resposta política da Oxfam é tributar os ricos. A Oxfam pede um imposto de até 5% sobre os multimilionários e bilionários do mundo que poderia arrecadar US$ 1,7 trilhão por ano “o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome.  “O objetivo final deve ser ir além e abolir completamente os bilionários, como parte de uma distribuição mais justa e racional da riqueza mundial.”

A pergunta que será feita naturalmente é quão realista é esperar que os governos que apóiam o 'capitalismo das partes interessadas' provavelmente introduzam impostos mais altos sobre riqueza e renda, quanto mais abolir todos os bilionários por meio de impostos? Isso vai exigir uma luta de massas para levar governos de trabalhadores ao poder para trabalhar em coordenação globalmente. Nesse caso, por que parar de tributar os ricos, mas, em vez disso, visar acabar com o capitalismo completamente?

É a mesma história com as mudanças climáticas.  A COP 27 e a COP 15 foram 'desempenhos' completos na tentativa de cumprir até mesmo a meta da COP de Paris de limitar as temperaturas médias globais a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. O ano passado foi o quinto mais quente já registrado, com a temperatura média global quase 1,2°C acima dos níveis pré-industriais, de acordo com o programa de observação da Terra da UE.

O ano ficou marcado por 12 meses de extremos climáticos, com a Europa a registar o verão mais quente de sempre, apesar da presença pelo terceiro ano consecutivo do fenómeno La Niña com efeito de arrefecimento, apurou o Copernicus Climate Change Service na sua ronda anual do clima da Terra. Ao mesmo tempo, as emissões de gases de efeito estufa dos EUA aumentaram novamente em 2022, deixando o país ainda mais atrás de suas metas sob o acordo climático de Paris, apesar da aprovação de uma ampla legislação de energia limpa no ano passado.

As emissões globais de dióxido de carbono de combustíveis fósseis e cimento aumentaram 1,0% em 2022, atingindo um novo recorde de 36,6 bilhões de toneladas de CO2 (GtCO2). As emissões “estão aproximadamente constantes desde 2015 ” devido a um modesto declínio nas emissões do uso da terra, equilibrando aumentos modestos no CO2 fóssil. Mas lembre-se, níveis estáveis ​​de emissão não são suficientes para impedir que o mundo continue aquecendo além dos limites oficiais. É necessária, no mínimo, uma redução de 50% nas emissões até o final desta década e zero emissões até o final do século.

Em vez disso, as emissões dos EUA aumentaram 1,3% no ano passado, de acordo com estimativas preliminares da consultoria ambiental Rhodium Group , lideradas por aumentos acentuados de edifícios, indústria e transporte do país. Com o ligeiro aumento nas emissões em 2022, os EUA continuam a ficar para trás em seus esforços para cumprir sua meta estabelecida no Acordo de Paris de reduzir as emissões de GEE 50-52% abaixo dos níveis de 2005 até 2030”, disseram os autores. No ano passado, as emissões dos EUA ficaram apenas 15,5% abaixo dos níveis de 2005. 

Mas não se preocupe, o porta-voz do clima dos EUA, John Kerry, esteve em Davos esta semana para reclamar do lento progresso. E o ex-governador do Banco da Inglaterra, Mark Carney, agora o organizador entre os bancos internacionais de um fundo de financiamento climático, também estava lá para reclamar do progresso lento. Tenho certeza de que isso levará à ação.

E depois há o estado da própria economia mundial.   Pouco antes de Davos, a chefe do FMI, Kristalina Georgieva, alertou que um terço da economia global seria atingido pela recessão este ano. O FMI calcula que o crescimento real do PIB global será de apenas 2,7% em 2023. Isso oficialmente não é uma recessão em 2023 –  “mas parecerá uma”.    E o FMI deve reduzir suas previsões novamente no final deste mês.  “Os riscos para as perspectivas permanecem extraordinariamente grandes e negativos”. 

E a previsão do FMI é a mais otimista. A OCDE estima que o crescimento global desacelere para 2,2% no próximo ano.  “A economia global está enfrentando desafios significativos. O crescimento perdeu ímpeto, a alta inflação se espalhou por todos os países e produtos e está se mostrando persistente. Os riscos são distorcidos para o lado negativo.”   Então a UNCTAD, em seu  último relatório de Comércio e Desenvolvimento , também projeta que o crescimento econômico mundial cairá para 2,2% em 2023.  “A desaceleração global deixaria o PIB real ainda abaixo de sua tendência pré-pandêmica, custando ao mundo mais de US$ 17 trilhões – fechar a 20% da renda mundial”.

O último relatório Global Economic Prospects do Banco Mundial é ainda mais pessimista. O Banco Mundial avalia que o crescimento global cairá para o terceiro ritmo mais fraco em quase três décadas, ofuscado apenas pelas recessões globais de 2009 e 2020. Será uma desaceleração acentuada e duradoura, com o crescimento global caindo para 1,7% em 2023, com deterioração generalizada: em praticamente todas as regiões do mundo, o crescimento da renda per capita será mais lento do que na década antes do COVID-19. E essa foi a década do que chamo de Longa Depressão. Até o final de 2024, os níveis do PIB nas economias em desenvolvimento estarão cerca de 6% abaixo do nível esperado às vésperas da pandemia.

Depois, há as crescentes tensões geopolíticas. – não apenas o conflito Rússia-Ucrânia, mas a crescente 'fragmentação' da economia mundial.  A hegemonia dos EUA, construída em torno da 'globalização' e da Grande Moderação dos anos 1980 até os anos 2000, acabou. 

Georgieva está particularmente preocupada. Em sua mensagem pré-Davos, ela gemeu: “estamos enfrentando o espectro de uma nova Guerra Fria que pode ver o mundo se fragmentar em blocos econômicos rivais”.   Os ganhos da globalização poderiam ser “desperdiçados”.    Mas é outro mito que a 'globalização' beneficiou a maioria. Georgieva diz que “desde o fim da Guerra Fria, o tamanho da economia global praticamente triplicou e  quase 1,5 bilhão de pessoas saíram da pobreza extrema”.    Mas as melhorias alcançadas na produção global e nos padrões de vida limitaram-se principalmente à China e ao Leste Asiático.  O crescimento econômico mundial desacelerou desde a década de 1990 e a pobreza não foi reduzida em cerca de 4 bilhões no planeta, enquanto a desigualdade aumentou (conforme revelado acima). 

Georgieva quer reverter o aumento de novas restrições comerciais, que é “uma perigosa ladeira escorregadia rumo à fragmentação geoeconômica descontrolada” . Ela avalia que o custo de longo prazo da fragmentação do comércio sozinho pode variar de 0,2% da produção global em um cenário de 'fragmentação limitada' a quase 7% em um 'cenário severo' - aproximadamente equivalente à produção anual combinada da Alemanha e do Japão. Se o desacoplamento tecnológico for adicionado à mistura, alguns países podem ter perdas de até 12% do PIB. A globalização aumentou as desigualdades e não conseguiu reduzir a pobreza; é provável que a fragmentação intensifique esses resultados.

Qual é a resposta de Georgieva para tudo isso? Primeiro, fortalecer o sistema de comércio internacional. Em segundo lugar, ajudar os países vulneráveis ​​a lidar com a dívida. Terceiro, intensificar a ação climática. Ela resumiu: As discussões em Davos serão um sinal de esperança de que podemos seguir na direção certa e promover uma integração econômica que traga paz e prosperidade para todos”.  Alguma esperança. Davos quer 'moldar' o capitalismo, mas em vez disso está ficando em forma de pêra.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Michael Roberts

 


China: ziguezague

A China está em apuros. Sua política zero-COVID falhou; a economia desacelerou para parar; agora tem uma população em declínio e envelhecimento acelerado; está no meio de uma crise imobiliária e de dívidas; portanto, está caminhando para uma estagnação permanente e de baixo crescimento da produtividade, como o Japão. A liderança de Xi está em crise enquanto ele se debate em mudar de uma política para outra. E o risco é que o 'nacionalismo agressivo' do PCC leve a uma ação militar contra a 'democrática' Taiwan, assim como a Rússia fez com a Ucrânia. 

Essa é a linha dos especialistas econômicos ocidentais e da mídia diariamente. Todos esses argumentos foram levantados antes e para esse assunto nos últimos 20 anos ou mais: a saber, que a China está prestes a implodir e o controle do PC está prestes a entrar em colapso. Eu forneci respostas equilibradas para todas essas questões muitas vezes antes, em particular em uma série de três postagens apenas em outubro passado. Então, o que posso acrescentar à última rodada de especulação de 'especialistas' sobre o futuro do modelo econômico chinês?

Bem, a primeira adição óbvia é o fim da política de Covid zero da China. Os especialistas pintam isso como um fracasso da política anterior dos últimos três anos. E ainda nesses três anos, milhões de vidas foram salvas.  John Ross nos dá uma comparação : se a taxa mundial de mortalidade per capita por Covid tivesse sido mantida tão baixa quanto a da China, haveria apenas 29.000 mortes por Covid globalmente em vez de 6,7 milhões, enquanto nos EUA haveria apenas 1.200 mortes em vez dos 1,1 milhões que realmente ocorreram. Tão grande é o impacto desse fracasso dos EUA que, após a pandemia, a expectativa de vida da China, de 78,2 anos, agora é significativamente maior do que a dos EUA, de 76,4 anos.

Ao mesmo tempo, a China não caiu em uma crise em 2020, ao contrário de todas as outras grandes economias; e, de fato, aumentou o tamanho de sua economia em termos reais e elevou os padrões médios de vida, enquanto a maioria das principais economias capitalistas só agora está voltando ao nível pré-pandêmico de 2019, pois agora experimentam uma crise sombria de custo de vida.

A política de zero COVID foi claramente esgotada no final de 2022. Novas variantes do COVID foram se espalhando e o governo teve que ceder na política – mas pelo menos até agora a maioria da população havia sido vacinada e a capacidade dos serviços de saúde aumentada – se ainda insuficiente para lidar com o aumento de infecções. As mortes aumentaram, mas não perto do nível projetado por especialistas ocidentais.  Expliquei isso em um post recente.  Veremos se o aumento de casos se acelera durante o feriado do Ano Novo Chinês a partir de agora.

A mídia está dando muita importância ao fato de que, pela primeira vez desde a década de 1990, o crescimento real do PIB da China neste ano foi inferior ao crescimento médio na região do Leste Asiático. Em 2022, o PIB real aumentou apenas 3%, bem abaixo da meta de longo prazo de cerca de 5-6% ao ano.

Por que a desaceleração? Claramente, nos últimos três anos, a política zero COVID da China desempenhou um papel na supressão da atividade econômica. Mas a China optou por salvar vidas em detrimento da expansão econômica. A outra razão pela qual o crescimento econômico da China caiu é a desaceleração geral em direção a uma queda no resto do mundo. As principais economias capitalistas estão presas no congestionamento da cadeia de suprimentos, na fraca expansão do investimento e agora nas crescentes taxas de juros e inflação que ameaçam uma recessão global absoluta este ano. 

Mas a China não está entrando em uma crise como as economias do G7. De fato, tanto o Banco Mundial quanto o FMI esperam que o PIB real da China suba mais de 4% este ano, enquanto a maioria das economias do G7 estará se contraindo ou terá um crescimento próximo de zero. Se considerarmos os anos de 2019-23, a taxa de crescimento econômico da China terá sido pelo menos três vezes mais rápida que a dos EUA e mais de cinco vezes mais rápida que a da UE – e isso assumindo que não haverá queda nas últimas economias este ano.

Olhando a longo prazo, os analistas ocidentais avaliam que a China está caminhando para um crescimento muito mais lento e isso ameaçará o futuro de Xi. Até agora, o recorde de crescimento econômico sem precedentes da China tem sido baseado em altas taxas de investimento e exportações de produtos manufaturados para o resto do mundo. Mas daqui em diante, os analistas ocidentais afirmam que a China entrará em um período de baixo crescimento e não escapará da 'armadilha da renda média' em que tantas economias ditas emergentes estão presas. A China não alcançará nem o nível do PIB dos EUA, como se esperava anteriormente.

Esta afirmação é baseada em duas suposições. Primeiro, que o envelhecimento da população da China e o declínio do setor em idade ativa reduzirão as taxas de crescimento; e segundo que o modelo de crescimento chinês de alta poupança e alto investimento não funciona mais. O Bureau Nacional de Estatísticas da China anunciou que a população total caiu em 850.000 em 2022 para 1,41175 bilhões, o primeiro declínio em 60 anos. A taxa de natalidade em 2022 foi a mais baixa desde que os registros começaram há mais de sete décadas – 6,77 nascimentos para cada 1.000 pessoas, abaixo dos 10,41 em 2019.   

A ONU projetou que a população da China cairá para 1,31 bilhão em 2050 e 767 milhões até o final do século. A estimativa de 2050 ainda tornaria a China 3,5 vezes maior que os EUA, que devem ter 375 milhões de pessoas até então. Mas atualmente é 4,7 vezes maior que os EUA. As estimativas da ONU para 2022 também projetam que a Índia ultrapassará a China como a nação mais populosa do mundo este ano. A população da Índia atualmente é de 1,4066 bilhões. Mas o que está faltando nessa estatística é que a Índia continuará sendo uma população agrícola predominantemente rural muito atrás da China, agora principalmente um povo urbanizado e industrializado.

No entanto, os especialistas ocidentais continuam a dar muita importância à demografia da Chna.  “Este é um ponto de virada verdadeiramente histórico, o início de um declínio populacional irreversível e de longo prazo ”, afirmou um especialista ocidental em mudanças demográficas chinesas, Wang Feng, da Universidade da Califórnia, em Irvine.  “A China não pode confiar no dividendo demográfico como um impulsionador estrutural do crescimento econômico”, disse Zhiwei Zhang, presidente e economista-chefe da Pinpoint Asset Management. O argumento é que a China não conseguirá crescer tão rápido quanto antes, agora que a população trabalhadora está diminuindo e haverá um aumento insuficiente na produtividade do trabalho para compensar.  Discuti esses argumentos longamente em postagens anteriores .

Os argumentos são fracos e falhos.   De fato, mesmo nas medidas ajustadas (A) ocidentais (Conference Board) do crescimento da produtividade do trabalho durante o período COVID, a China se saiu muito melhor do que os EUA 'dinâmicos'.

A resposta ao declínio demográfico é um aumento na produtividade da força de trabalho existente. E a China está tomando medidas para garantir exatamente isso. A China é líder em robôs industriais com um aumento de 69.000 unidades em 2015 para 300.000 unidades no ano passado; embora, é claro, ainda esteja bem atrás de robôs por pessoa – ainda à frente da França, Reino Unido e Canadá antes da pandemia.

A longo prazo, o FMI prevê que a China crescerá a uma taxa moderada de 5% ao ano. Mas essa taxa ainda seria duas vezes mais rápida que a dos EUA e mais de quatro vezes mais rápida que o resto do G7 – e isso assumindo que não haverá queda nas economias do G7 nos próximos cinco anos.

O outro argumento dos analistas ocidentais é que a China não pode crescer a qualquer ritmo razoável daqui em diante, a menos que mude de uma economia de alta poupança, alto investimento e orientada para a exportação para uma economia capitalista tradicional liderada pelo consumidor existente na maioria dos principais países. economias capitalistas, particularmente os EUA e o Reino Unido.  

A base usual para essa visão é que as taxas de consumo pessoal são muito baixas na China e isso impedirá o crescimento impulsionado pela demanda. Por exemplo, veja esta visão de Chen Zhiwu, professor de finanças e economia chinesa na Universidade de Hong Kong. Chen argumenta que, sob Xi, grandes reformas em direção a um setor privado maior, economia liderada pelo consumidor, foram deixadas de lado.  “As reformas dos anos 60 teriam ampliado muito o papel do consumo e da iniciativa privada”  , diz. “No entanto, a agenda de reformas orientadas para o mercado foi largamente deixada de lado. . . resultando em um papel maior para o estado e um papel encolhido para o setor privado”.   De acordo com Chen, isso significará que a economia da China estagnará a partir de agora.

Outro analista ocidental proeminente e amplamente seguido, Michael Pettis, que mora em Xangai,  faz um argumento semelhante , ou seja, o que levará a China à estagnação ao estilo japonês é o fracasso em expandir o consumo pessoal e continuar a expandir o investimento por meio do aumento da dívida. E apenas esta semana o guru keynesiano Paul Krugman se juntou ao coro, falando sobre a economia “ desequilibrada ” da China, que Krugman afirma: “Por razões que não entendo completamente, os formuladores de políticas têm relutado em permitir que todos os benefícios do crescimento econômico passado passem. até as famílias, e isso levou a uma baixa demanda do consumidor”.

Infelizmente, setores da liderança chinesa, particularmente seus economistas do setor financeiro, aceitam esse argumento irritantemente estúpido dos especialistas ocidentais. Como alguém pode afirmar que as economias maduras 'conduzidas pelo consumidor' do G7 foram bem-sucedidas em alcançar um crescimento econômico estável e rápido, ou que os salários reais e o crescimento do consumo foram mais fortes lá? De fato, no G7, o consumo não conseguiu impulsionar o crescimento econômico; e os salários estagnaram em termos reais nos últimos dez anos (e agora estão caindo), enquanto os salários reais na China dispararam.

Este é o verdadeiro ponto. Na verdade, o consumo está crescendo muito mais rápido na China do que no G7 e isso porque o investimento é maior. Um segue o outro; não é um jogo de soma zero. A visão de Pettis é uma análise keynesiana grosseira que ignora até mesmo a visão de Keynes de que é o investimento que faz crescer uma economia com o consumo a seguir, e não vice-versa.

E nem todo consumo tem que ser 'pessoal'; mais importante é o 'consumo social', isto é, serviços públicos como saúde, educação, transporte, comunicação e moradia; não apenas automóveis e gadgets. O aumento do consumo de serviços sociais básicos não é contabilizado nos rácios de consumo pessoal. 

A China também tem um longo caminho a percorrer no consumo social, mas está muito à frente de seus pares de mercados emergentes em muitas áreas sociais e não muito atrás das principais economias do G7, que começaram há mais de 100 anos. Deixo a palavra dos economistas do Citibank em seu recente  estudo aprofundado sobre a economia chinesa  “ Em outras palavras, é bem possível que a economia chinesa ofereça maiores oportunidades de consumo sem que o consumo seja um alvo específico da política: a renda disponível das famílias vem crescendo mais rápido do que o PIB em termos reais nos últimos anos (exceto 2016), uma tendência que provavelmente se estenderá no futuro. Ao mesmo tempo, o desbloqueio dos efeitos da riqueza deve ajudar o consumidor”.

O verdadeiro desafio para o futuro econômico da China é como evitar que muitos de seus investimentos sejam direcionados para áreas improdutivas, como finanças e propriedades, que agora levaram a sérios problemas. E também, de que forma as crescentes contradições entre os setores estatais e capitalistas na China estão sendo tratadas no terceiro mandato de Xi.

E nesta questão, é o grande setor capitalista da China que ameaça a prosperidade futura da China. O verdadeiro problema é que nos últimos dez anos (e até antes) os líderes chineses permitiram uma expansão maciça de investimentos improdutivos e especulativos por parte do setor capitalista da economia. Na tentativa de construir casas e infraestrutura suficientes para a população urbana em rápido crescimento, os governos central e local deixaram o trabalho para os desenvolvedores privados. Em vez de construir casas para alugar, eles optaram pela solução de 'livre mercado' de incorporadores privados construindo para venda. É claro que as casas precisavam ser construídas, mas, como o presidente Xi disse tardiamente,  “casas são para morar, não para especulação”. 

De fato  , o apelo de Xi por 'prosperidade comum'  é um reconhecimento de que o setor capitalista fomentado pelos líderes chineses (e do qual eles obtêm muitos ganhos pessoais) ficou tão fora de controle que ameaça a estabilidade do controle do Partido Comunista.   O que Xi e os líderes chineses chamaram de  “expansão desordenada do capital”.  O setor capitalista tem aumentado seu tamanho e influência na China, juntamente com a desaceleração do crescimento real do PIB, investimento e emprego, mesmo sob Xi. Um estudo recente constatou que o setor privado da China cresceu não apenas em termos absolutos, mas também em proporção às maiores empresas do país, conforme medido pela receita ou (para as listadas) pelo valor de mercado, de um nível muito baixo quando o presidente Xi foi confirmado como o próximo líder em 2010 para uma parcela significativa hoje. As SOEs ainda dominam entre as maiores empresas por receita, mas sua preeminência está diminuindo. Isso está intensificando as contradições entre a lucratividade do setor capitalista e o investimento produtivo estável na China. A acumulação de ativos financeiros e imobiliários com base em enormes empréstimos está diminuindo o potencial de crescimento. 

O outro problema é a responsabilidade democrática do governo chinês. A liderança da China não presta contas aos seus trabalhadores; não há órgãos de democracia operária. Não há planejamento democrático. Apenas os 100 milhões de membros do PC  têm voz no futuro econômico da China, e isso é realmente apenas entre os principais. Como resultado, os líderes do PC passam de períodos de expansão do setor privado e do mercado para períodos de tentativa de restrição e controle. Os trabalhadores chineses são peões neste jogo. 

Branco Milanovic em um post recente reconheceu isso, no que chamou de tentativa dos líderes do PC de manter 'uma linha intermediária', favorecendo alternadamente políticas pró-esquerda e pró-direita. Xi tem seguido o primeiro até agora, mas agora há sinais de que o governo quer voltar a políticas pró-mercado para conciliar com os interesses ocidentais, à medida que o imperialismo dos EUA e seus aliados intensificam sua política de contenção sobre a China.

E um indicador do último zig zag é encontrado na presença do vice-primeiro-ministro Liu He no encontro dos ricos em Davos, na Suíça. Li disse à audiência de Davos que a iniciativa de “prosperidade comum” de Xi Jinping é “definitivamente não introduzir igualitarismo nem assistencialismo”. Liu disse que o ponto principal da estratégia é evitar a polarização, embora seja inevitável admitir um certo nível de disparidade de renda e riqueza. “O que queremos enfatizar é que se trata de igualdade de oportunidades e não igualdade de resultados”, disse o vice-primeiro-ministro, soando como um bom político ocidental pró-capitalista. 

Li se reuniu em particular com um grupo de altos executivos corporativos em Davos para dizer a eles que a segunda maior economia do mundo estava de volta, em um esforço para reavivar os laços econômicos danificados pela pandemia e pelas tensões com os EUA. Ele disse a eles que “Algumas pessoas dizem que a China está tentando se mover em direção a uma economia planejada, mas isso é absolutamente impossível”. A conclusão dos dirigentes empresariais foi que “Estão revertendo tudo o que foi feito nos últimos três anos; eles serão favoráveis ​​aos negócios e [saberão] que a economia não pode ser bem-sucedida sem o setor privado”.

Agora está claro que os EUA, habilitados por um consenso bipartidário em Washington, estão determinados a impedir que a China se atualize tecnologicamente. A China agora é tratada como “uma inimiga” dos EUA. Sem o envolvimento, apoio e controle das organizações de trabalhadores, o governo chinês do PC está se deixando aberto ao cerco imperialista. Portanto, os ziguezagues da política do PCC são perdulários, ineficientes e perigosos para o futuro da China.

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