II
Pois bem, voltemos à pergunta crucial: há lugar para a moral nessa crítica, nesse projeto de nova sociedade e nesse comportamento prático, político revolucionário? E, se há, que alcance tem: aleatório ou necessário, negativo ou positivo, irrelevante ou importante sem ser determinante ou decisivo? Tais são as questões em jogo. As respostas dos marxistas a elas oscilam –sem nos determos agora em seus matizes– entre duas posições diametralmente opostas: uma, a que nega que haja um lugar necessário e relevante para a moral em Marx e no marxismo nos três planos expostos: a crítica do capitalismo, o projeto de nova sociedade e a prática política revolucionaria; e outra, a posição que sustenta que sim, que há um lugar necessário e relevante para a moral em Marx e no marxismo, mas um alcance que não é determinante e decisivo –nos três planos mencionados– justamente o que atribui certo “moralismo”, rechaçado firmemente por Marx.
Como inclinar-se por uma ou outra posição que, na verdade, são contraditórias? O mais aconselhável seria acudir aos textos de Marx, desde os juvenis até aos tardios, passando pelos de sua maturidade. Porém, ao nos determos neles, encontramos passagens que vêm alimentar, em desigual proporção, uma e outra posição contraditória. Com relação à primeira, vemos que Marx (e Engels) disse em A Ideologia alemã: “os comunistas não predicam nenhuma moral” e não a predicam –sustenta– porque toda moral, por sua natureza ideológica, é falsa ou encobre os interesses da classe dominante a qual serve. Um rechaço tão categórico como este é encontrado no Manifesto Comunista. E, em O Capital achamos a idéia de que a transação entre força de trabalho e capital é justa por corresponder às relações de produção capitalistas, idéia que foi interpretada, às vezes, como se implicasse a improcedência da crítica moral do capitalismo. Passagens como estas são as que levaram a incluir Marx, junto com Nieztsche e Freud, no trio dos “filósofos da suspeita”, dada sua crítica da moral, ou a endossar o “imoralismo” que lhe atribuem inclusive alguns marxistas.
Desta forma, em contraste com as passagens de textos de Marx que abonam essa posição, encontramos em um de seus escritos mais antigos o imperativo de subverter o mundo social no qual o homem é humilhado. E muitas são as passagens de seus textos juvenis que condenam a imoralidade do capitalismo. Um claro conteúdo moral adverte-se, em sua teoria de alienação do trabalho nos Manuscritos de 1844 e já em sua maturidade, nos Grundrisse (escritos preparatórios de O Capital) ao criticar a usurpação pelo capitalista, do tempo livre que cria o trabalhador. O mesmo conteúdo impregna em um de seus últimos escritos, a Crítica do Programa de Gotha sua visão da sociedade desalienada, comunista, articulada no que tange à distribuição dos bens produzidos, entorno de dois princípios: conforme o trabalho aportado, na primeira fase dessa sociedade e às necessidades de cada indivíduo na fase superior, propriamente comunista.
No entanto, ainda que ao longo da obra de Marx predominem as passagens que permitam assegurar à moral um lugar, não se pode negar que existam outras que a negam pondo-se assim a contradição exposta. E, às vezes, esta se dá em um mesmo texto: por exemplo, no mesmo Manifesto Comunista que desqualifica a moral como preconceito burguês, critica-se moralmente a burguesia por ter convertido a “dignidade pessoal” –que obviamente é um valor moral– em um valor de troca. Assim, pois, é necessário reconhecer que existem posições contraditórias sobre a moral na obra de Marx. Porém, este reconhecimento não nos autoriza a dar por acabado, o problema de se há ou não lugar para a moral em Marx e no marxismo. Ao contrário, nos obriga a abordá-lo, além desta ou daquela passagem, no contexto geral da natureza e do sentido de toda a obra teórica e prática de Marx. (..)
Adolfo Sánchez Vázquez
Ética e marxismo
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