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sábado, 26 de outubro de 2019

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

"Avança connosco"

A impotência geral dos cidadãos para mudar o que está mal, a abstenção geral, devia ter uma voz política de movimento social. E não há muitas forças políticas capazes de o organizar. 

Dias depois das eleições, o Partido Comunista Português (PCP) divulgou um vídeo. O João Rodrigues já escreveu sobre ele.

Mesmo sendo propaganda, é uma forma elegante de relativizar o seu resultado eleitoral, a descida lenta mas continuada desde 1980, e de valorizar a importância da generosidade quotidiana dos comunistas, que é por isso mesmo - como já se disse - imprescindível.

Imprescindível, a preserverança - seja ela um sonho acordado, uma utopia ou apenas vontade de mudar o que está mal - de tentar uma outra forma de organizar a sociedade, mais humana e solidária, menos egoísta e desigual, menos predadora e mais desenvolvida, menos escrava e mais emancipada. Foi com essas utopias que o mundo foi avançando. E na sua ausência, recuando.

Essa elegância não pode, contudo, fazer perder de vista as razões da descida de votos que pode reflectir uma redução da influência política do PCP junto da população.

Em 1979, o PCP - então já com 58 anos de vida - chegou a ter 1,1 milhões de votos, correspondente a 18,8% dos votos. É verdade que tinham passado apenas cinco anos desde o 25 de Abril. O PCP tinha saído do fascismo como a força respeitada que resistira teimosamente a todos os ataques da ditadura. A sensação de poder transformar a sociedade era ainda muito viva, mesmo depois do 25/11/1975, da primeira entrada do FMI (com o seu primeiro programa de austeridade) pela mão do PS de Mário Soares empurrado pela social-democracia alemã (ver da pag 159 a 207); e de se viver um forte antagonismo de forças conservadoras que tinham criado uma violenta e terrorista rede bombista de direita.

Revista da Legião Portuguesa, Fev 1948
O PCP era uma organização participada, influente, com um forte sector intelectual, plena de quadros em todos os sectores de actividade, criador de um pensamento enriquecido e com um forte peso sindical, agregando a si quadros e cidadãos não comunistas, realizando conferências nacionais alargadas sobre os temas nacionais e sectoriais, como foi o caso da Saúde em que teve forte presença na criação do Serviço Nacional de Saúde. Influenciou de 1976 a 1990 um jornal de circulação nacional - O Diário. Havia uma capacidade de mobilizar ao lado da organização, muito no seguimento da experiência política durante o fascismo.

A unidade era - umas vezes bem outras vezes mal - objecto de trabalho político organizado do PCP. E por isso havia a ousadia do lema importado de França: eu sou comunista, porque não tu? 





Fruto de muitas causas - que importa aos comunistas analisar e articular  com uma visão para o país (de modo a não caírem nas sucessivas cascas de banana que se lhes colocam) - o certo é que a redução da expressão eleitoral parece ter justificado há algum tempo uma centralização, própria das organizações que visam salvaguardar-se.

Já houve casos semelhantes na História do PCP que foram criticados internamente por ter conduzido a uma sectarização da organização e que foram resolvidos com a mudança de orientação no plano da unidade, invertendo-se a tendência para um fecho em si mesmo (que auto-alimenta essa preocupação de autodefesa e recuo). Pugnou-se então por um contacto estratégico, intenso e continuado a outros sectores sociais e políticos da sociedade, capaz de gerar uma dinâmica social incontornável no plano político. Foi o caso do MUNAF, não foi o caso do MUD no seu início, mas foi no seu final até à sua ilegalização, tendo transbordado para o forte apoio popular à candidatura de Humberto Delgado; foi o caso do MUD Juvenil que, mesmo extinto judicialmente em 1957 - sob o argumento de ser uma ramificação do PCP -, reflectiu-se na crise académica de 1961/62 que, por sua vez, se repercutiu noutras vagas de revolta ao fascismo e forneceu muitos quadros no pós-25 de Abril. 

A importância do trabalho de unidade é esse: formar as novas gerações na vontade de mudar, que acabam por prolongar no tempo a sua influência, à medida que essas gerações vão envelhecendo. Não criar gerações novas é condenar o futuro.

Revista da Legião Portuguesa, Fev 1947
Durante o fascismo, o inimigo era claro e - lendo por exemplos a revista da Legião Portuguesa - também era claro para o fascismo quem era o seu principal inimigo a abater. Mas nem por isso se tornou mais fácil o trabalho de unidade.

Hoje, quando se perpetuam condições económicas e sociais gravosas para os trabalhadores e para os jovens, quando se desarticula durante décadas um SNS de qualidade e se sente a falta de uma política coerente de habitação, sem que se consiga ver uma solução estratégica que inverta esta dinâmica neoliberal; parece haver condições para uma discussão profunda sobre a escolha de soluções que impeçam este marasmo político e económico no país.   

Ora, os documentos do PCP saídos das eleições - e o próprio video - enfatizam "uma intensa e prolongada operação de que foi alvo, sustentada na mentira, na difamação e na promoção de preconceitos". Isso apesar de Jerónimo de Sousa, no comício de 11/10/2019 acentuar que o PCP não pretende encontrar "bodes expiatórios para explicar a redução verificada, nem tão pouco esconder as nossas insuficiências e debilidades de natureza diversa que importa avaliar, corrigir e superar".

É verdade que o desgaste mediático é cada vez mais sofisticado, maciço e influente, porque harmonizado internacionalmente e televisivo. Mas esse foi e será sempre um dado do problema para os comunistas, já que, lutando por uma sociedade diferente da capitalista, é normal que haja reacção. Não vale a pena fazer disso um argumento político. Pior é o facto de a mediatização da sociedade e a concorrência na comunicação social obrigarem a um enorme desgaste no acompanhamento do seu ritmo, que - tal como acontece já na actividade jornalística - arrisca-se a que a vida militante se impregne da fúria de ratos que pedalam uma roda que não sai do mesmo sítio. Só que agitação não é movimento.

Revista da Legião Portuguesa, Dez 1948
Mais relevante que isso é a ausência de um trabalho organizado na criação da unidade - em torno de problemas concretos, transversais e a diversos níveis - cheio de paciência e calma, sem pressas, auscultando e debatendo, visando encontrar plataformas comuns, englobando-as nos objectivos do PCP, definidos de forma clara e estratégica, como se fossem governo no dia seguinte.

Porque é a força das propostas, articuladas numa visão para o país - e não dispersas - que torna
forte qualquer movimento ou partido. E ao mesmo tempo, tenderá a esvaziar outros movimentos - inclusive de extrema-direita - que já se encontran no terreno e poderão canalizar para si - e mal dirigir - o descontentamento das pessoas com a vida que levam. Vivem-se tempos perigosos.

Muitas pessoas preocupadas com a evolução eleitoral do PCP foram votar na CDU tentando contribuir de alguma forma. Mas não bastou. E não bastará, se tudo se mantiver igual.

O PCP - porque é um partido com fortes tradições de organização na luta - pode ainda ter um papel organizador, ampliar as suas possibilidades de influência, ganhar mais pessoas para causas comuns e colectivas, engrossar o que hoje parece um esvaimento de quadros, militantes ou apoios, uma impotência geral, uma incapacidade de mudar a realidade, para benefício de um rolo compressor de desigualdade, mesmo na ausência da troica ou de uma maioria de direita. 

Esse é um trabalho penoso, mas também imprescíndivel. Porque é desse trabalho que se faz o lema "avança connosco" com que o video fecha.

Ladrões de Bicicletas: "Avança connosco"

Ladrões de Bicicletas: "Avança connosco": A impotência geral dos cidadãos para mudar o que está mal, a abstenção geral, devia ter uma voz política de movimento social. E não há ...

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Abril de Novo Magazine


Vaticano/Francisco: o grande líder global da atualidade

Francisco constrói pontes: com gestos e palavras é um líder com acções prepositivas; aponta, com coragem, os actores que patrocinam as guerras, o comércio de armas e que lucram com a cultura da morte e do descarte; confronta os líderes xenofóbicos e racistas que querem erguer muros e promover políticas de criminalização

Viva Francisco!
Você não precisa ser católico e/ou religioso para concordar com o título deste artigo. Mas, certamente, só ratificará essa afirmativa se acompanhar o cenário das disputas reais e simbólicas no plano internacional e se o fizer extrapolando a cobertura da mídia empresarial (totalmente comprometida com o capitalismo rentista, concentrador de riqueza e usurpador das democracias contemporâneas). Afinal, esse despotismo financeiro que governa as economias capitalistas contemporâneas é classificado por Francisco como “uma economia que mata”.
Não obstante a guerra patrocinada contra Francisco em vários fronts, por poderosas corporações internacionais (bancos; agronegócio; indústrias das armas, farmacêutica e do petróleo; think tanks norteamericanos propulsores do ultraliberalismo na América Latina — liderados por megaempresários católicos e protestantes; políticos de extrema-direita e grupos religiosos obscurantistas…), o Papa continua a mobilizar um imenso contingente de líderes e grupos sociais de todas as Nações que se somam no enfrentamento, de variadas formas, da chamada “onda ultraconservadora”.
Remando corajosamente contra a maré, Francisco tem se empenhado em acções estratégicas que já redundam em poderosos focos de enfrentamento ao ultraliberalismo. Abaixo, listamos algumas das iniciativas de Francisco que tem repercutido globalmente e extrapolado o “mundo” católico.

1. Protagonismo dos Movimentos Populares: para contrapor a corrosão da política tradicional e os limites da democracia deliberativa (que sucumbiram à “economia que mata”), o Papa promoveu três encontros internacionais, elegendo como interlocutores privilegiados as lideranças dos movimentos populares.
Francisco percebeu que os chefes dos poderes públicos, de modo geral, estão altamente deslegitimados pelo fato de terem se capitulado à lógica do dinheiro e do mercado, afastando-se cada vez mais dos clamores dos pobres, servindo a um “sistema económico que põe os benefícios acima do homem […], que considera o ser humano como um bem de consumo, que se pode usar e depois jogar fora. Servem a um sistema centrado no ‘deus dinheiro’ a saquear a natureza para manter o ritmo frenético de consumo que lhe é próprio. Um sistema global destrutivo “que impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza”. Assim, Francisco preferiu se aliar aos líderes dos movimentos populares que “expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias tantas vezes desviadas por inúmeros factores.”
Nos três encontros com os movimentos populares, Francisco tocou no ponto central desse sistema político-económico que produz exclusão e múltiplas formas de violências. As últimas crises económicas mundiais serviram para aumentar a concentração de riqueza e renda em todo o planeta. Actualmente, vinte e oito grandes grupos financeiros manejam quase dois trilhões de dólares por ano. O balanço desses megaconglomerados financeiros que têm, entre outros, o Goldman Sachs, o JP Morgan Chase, o Bank of América, o Citigroup, o Santander, entre outros, mostra um património (não produtivo) de cinquenta trilhões de dólares, sendo que o PIB mundial está na casa dos 75 trilhões. Esses conglomerados detêm cerca de 68% do fluxo mundial do capital.
O sistema económico actual se sobrepõe à política e aos interesses dos povos e das nações e funciona graças à corrupção generalizada: nada menos que 25% do Produto Interno Bruto mundial são remetidos a paraísos fiscais por grandes empresas e instituições financeiras. Estima-se que a cada ano dezoito trilhões de dólares seguem o caminho da sonegação de impostos. No Brasil a estimativa de evasão fiscal entre 2003 e 2012 foi de 220 bilhões de dólares.
A corrupção passou a ser a mola propulsora do capitalismo rentista, especulador e concentrador de renda e riqueza que viceja nos últimos tempos. A concentração de poder em pouquíssimos conglomerados e a fusão ou compra de grandes bancos desencadeados pela crise de 2008 determina o modo de funcionamento de um sistema que precisa corromper governos (agentes públicos) para subsistir.
O elemento profético e simbólico da opção de Francisco pelos movimentos populares é a explicitação da mais dura e contundente crítica ao capitalismo em sua fase actual, marcada pelo rentismo especulativo que promove a mais avassaladora política de acumulação de riqueza e renda da história, a privilegiar pouquíssimos.
Em contraposição a esse sistema global idólatra “que exclui, degrada e mata”, o Papa Francisco propõe uma nova governança global protagonizada pelos movimentos populares: “atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas na busca diária dos ‘3 T’ (terra, tecto e trabalho) e, também, na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudanças nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem”.
2. A economia de Francisco: noutra grande articulação internacional, o Papa promoverá em Assis, na Itália, de 26 a 28 de Março do próximo ano, um encontro mundial para repensar a economia global.
Serão convidados jovens economistas de até 35 anos, empresários e militantes de movimentos comprometidos com mudanças sociais. Segundo Francisco, há que se buscar “uma economia diferente, que faz viver e não matar; inclusiva; que humaniza e não desumaniza; que cuida da Criação e não a depreda. Um evento que nos ajude a estar juntos e nos conhecer, e que nos leve a fazer um ‘pacto’ para mudar a actual economia e dar uma alma à economia do amanhã.”
Para o encontro em Assis, já confirmaram presença: Muhammad Yunus, conhecido como “o banqueiro dos pobres” e Amartya Sen, professor de filosofia e economia em Harvard (EUA) e Cambridge (Reino Unido), ambos agraciados com prémio Nobel. Outros renomados especialistas em desenvolvimento sustentável e economia solidária, como Bruno Frey, suíço; Carlo Petrini, italiano fundador do Slow Food; Kate Raworth, inglesa; Jeffrey Sachs, estadunidense interessado nas causas da pobreza; a indiana Vandana Shiva, diretora do Fórum Internacional sobre Globalização e Stefano Zamagni, italiano estarão presentes no evento.
O objectivo do encontro é promover intercâmbios entre teoria e prática, de modo a elaborar uma proposta alternativa à economia hegemónica que, como afirmado anteriormente, gera exclusão social e enriquecimento nababesco de uns poucos. O Papa confia que esse encontro apontará as linhas gerais de uma nova economia: justa, sustentável e inclusiva.
Em vários países, inclusive aqui no Brasil, grupos de trabalho estão promovendo eventos, fóruns, seminários para discutir uma nova economia, propor novos currículos para Universidades que abordem modelos inclusivos (de economia), mapear e promover experiências de economia solidária, criativa, inclusiva, justa.
Essa iniciativa de Francisco aponta, objectivamente, para a proposição de uma nova engenharia de governança global que contraponha o modelo actual, no qual apenas 1% mais rico é dono de metade da riqueza do mundo e as 100 pessoas mais ricas possuem, juntas, mais do que quatro bilhões dos mais pobres.
3. Um pacto educativo global: noutra frente sociopolítica, Francisco articula um pacto educativo entre as nações. Para tanto, promoverá um encontro no Vaticano, em 14 de maio de 2020.
Estão convidados profissionais que trabalham com a educação de várias partes do mundo. Como explica o Papa, numa mensagem divulgada para lançar esse evento, trata-se de um “encontro para reavivar o compromisso em prol e com as gerações jovens, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão. Nunca, como agora, houve necessidade de unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna”.
O Pacto Global pela Educação faz parte dos esforços de Francisco para promover uma ampla discussão sobre os efeitos da tecnologia, do consumismo e da cultura do imediatismo/individualismo na sociedade contemporânea: “O mundo contemporâneo está em transformação contínua, vendo-se agitado por variadas crises. Vivemos uma mudança epocal: uma metamorfose não só cultural, mas também antropológica, que gera novas linguagens e descarta, sem discernimento, os paradigmas recebidos da história. A educação é colocada à prova pela rápida aceleração que prende a existência no turbilhão da velocidade tecnológica e digital, mudando continuamente os pontos de referência. Neste contexto, perde consistência a própria identidade e desintegra-se a estrutura psicológica perante uma mudança incessante”, escreveu o Papa na mensagem.
Francisco propõe três desafios a serem enfrentados pela educação: primeiro, ter a coragem de colocar no centro a pessoa; segundo, a coragem de investir as melhores energias com criatividade e responsabilidade e, finalmente, a coragem de formar pessoas disponíveis para se colocarem ao serviço da comunidade, promovendo uma “cultura do encontro”.
4. Um novo humanismo: as iniciativas acima fazem parte de um conjunto de acções que Francisco tem liderado, globalmente, para enfrentar a xenofobia, a exclusão social, os nacionalismos, populismos e totalitarismos que ressurgem em várias partes do mundo na actualidade.
O Papa sempre enfatiza o tema do trabalho humano como um daqueles direitos sagrados que deve ser preservado em cada pessoa. Frente às concepções práticas de teses neoliberais, que sufocam e oprimem as pessoas em suas experiências profissionais, Francisco clama por um “novo humanismo, que coloque fim ao analfabetismo da compaixão e ao progressivo eclipse da cultura e da noção de bem”.
Num prefácio de uma recente publicação, Francisco reconhece que os movimentos sociais têm a capacidade de uma articulação transnacional e transcultural: aquele “modelo poliédrico” ao qual fez referência em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (nº 2), e que se constitui a partir de um paradigma social baseado na cultura do encontro. Para o Papa, esta pluralidade de movimentos, cujas experiências de luta pela justiça ficam plasmadas no livro, “representam uma grande alternativa social, um grito profundo, um marco, uma esperança de que tudo pode mudar”.
Reafirmando sua convicção de que a humanidade enfrenta actualmente uma transformação de época caracterizada pelo medo, pela xenofobia e pelo racismo, Francisco afirma que os “movimentos populares podem representar uma fonte de energia moral para revitalizar nossas democracias”, numa perspectiva humanista.
De fato, em meio a uma sociedade global ferida por uma economia cada vez mais distante da ética, os movimentos sociais podem exercer a função de um antídoto contra os populismos e a política do espectáculo, já que privilegiam a participação da cidadania, com uma consciência mais positiva sobre o outro. Essa é a consequência da promoção de uma “força do nós”, que se opõe à “cultura do eu”.
Numa carta intitulada “A comunidade humana” (Humana communitas) publicada em 15 de Janeiro deste ano, Francisco pede para “restaurar a importância desta paixão de Deus pela criatura humana e o seu mundo”. No nosso tempo, escreve o Papa “a Igreja é chamada a relançar com força o humanismo da vida que irrompe desta paixão de Deus pela criatura humana. O compromisso de entender, promover e defender a vida de todo ser humano é impulsionado por este amor incondicional de Deus”.
5. Sínodo da Amazónia: não obstante a guerra mediática, regada com muito dinheiro dos opositores de Francisco — encabeçada por Steve Bannon [7] e grupos religiosos ultraconservadores –, e a batalha política patrocinada pelo governo do Brasil e por grupos de ultradireita dentro e fora do catolicismo contra o encontro que acontece nesses dias em Roma, as notícias diárias do Sínodo dão conta da configuração de um grande pacto internacional em defesa da Amazónia: dos povos locais (os indígenas e sua cultura) e da biodiversidade.
É simbólico o fato de o Sínodo ter extrapolado o campo eclesial e se tornado, internacionalmente, um foco de discussão sobre o modelo predatório do modelo económico actual que destrói não somente a natureza, mas as culturas e os povos originários, beneficiando somente aquela ínfima parcela da população opulenta, sustentada pelo modelo da “economia que mata”.
Os resultados do Sínodo certamente transbordarão às ações da Igreja Católica na região panamazónica e já sinalizam outro pacto global em defesa da “Casa Comum”, como vem pregando Francisco desde sua assumpção ao trono papal.
6. Reformas na Igreja: como se não bastassem essas iniciativas que posicionam Francisco como o grande líder mundial contemporâneo, o Papa “que veio do fim do mundo” promove uma árdua empreitada de reforma da Igreja Católica.
Enfrentando com sobriedade e destemor todo o tipo de vicissitudes patrocinadas por sectores recalcitrantes do catolicismo (clero e laicado), Francisco denuncia o clericalismo, a opulência de sectores herméticos da igreja, as perversões sexuais de parte do clero e os escândalos financeiros que, volta e meia, envolvem parte da Cúria Romana.
Obviamente, o Papa percebe que é preciso uma guinada no modelo de “igreja triunfante” para uma igreja em saída “para as periferias geográficas existenciais”: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).
“Francisco pensa a Igreja “sal da terra”, “luz do mundo” e “fermento na massa”, muito distinta da Igreja societas perfecta, em conluio com os poderosos, contaminada pelo vírus antievangélico do egoísmo, do autoritarismo e do liturgismo, com o narcisismo que o acompanha, levando-a a se voltar para si mesma, num fechamento que a torna indigna do nome cristão.
7. Relação com outras religiões: ao longo de seu pontificado, em vários eventos no Vaticano e em todas as suas viagens internacionais, Francisco tem se disposto a dialogar fraternalmente com todos os líderes religiosos.
“Desde sua eleição, Francisco já visitou (em 2014) a Turquia (maioria muçulmana), a Albânia (também de maioria muçulmana); a Coreia do Sul (maior religião é a budista, com ¼ da população); a Jordânia (maioria muçulmana); Israel (de maioria judaica) e a Palestina (de maioria muçulmana). Nessa viagem à Terra Santa, Francisco se encontrou com dois grã-rabinos judaicos e com o grã-mufti muçulmano na esplanada das mesquitas em Jerusalém. Em 2015 visitou a Bósnia e Herzegovina (maior parte muçulmana); o Sri Lanka (de maioria budista). No Sri Lanka se encontrou inclusive com representantes das quatro grandes tradições religiosas do país: Budismo, Hinduísmo, Islão e Cristianismo. No ano de 2016, além de ter participado do encontro em Assis, na jornada mundial pela paz, onde se encontrou com representantes de diversos grupos cristãos, mas também representantes do Judaísmo, Islão e Tendai, o Papa Francisco foi ao Azerbaijão, de maioria muçulmana, onde manteve um encontro com estes fiéis na mesquita da capital Baku. No ano de 2017, Francisco foi a Myanmar (maioria budista), Bangladesh (maioria muçulmana) e Egipto (também de maioria muçulmana). Nessa viagem ao Egito, o Papa Francisco realizou um pronunciamento que pode ser considerado o seu programa para o diálogo inter-religioso. E, finalmente, no ano de 2019, Francisco já viajou aos Emirados Árabes Unidos, de maioria muçulmana e ao Marrocos, país de quase totalidade muçulmana. No Marrocos foi emblemática a apresentação musical feita com a presença do Papa Francisco e representantes de diversas tradições religiosas, onde foi apresentada uma peça com uma cantora judia, uma cristã e um cantor muçulmano. Esta lista de viagens é apenas uma pequena amostra tanto da centralidade que o tema do diálogo inter-religioso tem em seu pontificado, como também a forma como tem feito Francisco: ir ao encontro, visitar e dialogar no espaço de tradições religiosas diversas da sua. Nestes encontros, o foco dos pronunciamentos e das preocupações do Papa não tem sido a diferença religiosa, mas a busca do engajamento e acção em conjunto em prol da humanidade e dos problemas que a assolam. Assim, disse o Papa no encontro com os muçulmanos no Egipto”.
Num dos encontros mais importantes do seu pontificado, em viagem apostólica aos Emirados Árabes Unidos, de 3 a 5 de Fevereiro deste ano, o Papa assinou o “Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, juntamente com o Grão Imã da Mesquita de Al-Azhar, no Egito, Sheik Ahmad al-Tayyeb. O acordo foi uma forma de celebrar o gesto de São Francisco de Assis de visitar a região, de maioria islâmica (muçulmana), 800 anos atrás. E a visita de Francisco foi a primeira de um Papa à Península Arábica, berço do islamismo.
O documento diz que Al-Azhar e o Vaticano, muçulmanos e católicos, vão, juntos, lutar contra o extremismo religioso e que nenhuma religião deveria, nunca, incitar violência, ódio ou guerra. A assinatura foi feita diante líderes religiosos de todo o mundo.
Esses breves apontamentos confirmam a liderança incontestada de Francisco no cenário internacional. O Papa, apesar de octogenário, é a maior liderança prepositiva (com palavras e gestos concretos) da actualidade. Enfrenta uma onda massificadora e obscurantista que, utilizando de pseudodiscursos religiosos clamam por uma “recristianização” do Ocidente a impor uma homogeneização violenta, excludente, geradora de morte.
Francisco constrói pontes: com gestos e palavras é um líder com acções prepositivas; aponta, com coragem, os actores que patrocinam as guerras, o comércio de armas e que lucram com a cultura da morte e do descarte; confronta os líderes xenofóbicos e racistas que querem erguer muros e promover políticas de criminalização dos migrantes, dos refugiados, dos pobres, dos movimentos sociais; aponta os males de uma governança global que, desprezando a democracia de fato, sucumbiu ao capitalismo concentrador de riqueza e renda e gerador da miséria, exclusão e múltiplas formas de violências.
Viva Francisco! 
Artigo de

Robson Sávio Reis Souza

in MERCOSUL & CPLP + BRICS

Via: CONVERSA AVINAGRADA http://bit.ly/2NnwAL9

terça-feira, 22 de outubro de 2019



Opinião

A insustentável leveza do municipalismo cultural

É a uma câmara que cabe a função de promover, por exemplo, um Festival Transcultural? Ou, pelo contrário, a sua função deve ser a de gerar políticas, ferramentas e condições de produção para que os actores sociais, designadamente minorias, construam um projecto participado e sustentado?



Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural.
A política, sempre que quer dirigir a cultura, engana-se.
Pois o dirigismo é uma forma de anticultura e toda a anticultura é reacionária.
(Sophia de Mello Breyner, Assembleia Constituinte de 1975-1976)

Em Portugal vive-se um momento paradoxal e perigoso, as políticas existentes no domínio da cultura são insuficientes para lidar com a complexidade e as ameaças do mundo contemporâneo. Políticas essencialmente focadas no acesso a objectos culturais legitimados, em vez de num entendimento da cultura(s) como processo contínuo de individuação. Vive-se numa época em que o poder se disfarça de incompetência, levando à degradação do Estado de direito democrático.

Por um lado, as práticas culturais urbanas encontram-se condicionadas pela mentalidade típica de uma governação disciplinar que perdura enquanto arquétipo do caciquismo municipalista português. Por outro, através da influência da globalização neoliberal, as cidades – ecossistemas culturais e criativos por excelência – vêm sendo subjugadas ao capitalismo financeiro. Consequentemente, a cidade transformou-se em mercadoria útil para o turismo e a gentrificação, espaço de especulação imobiliária, factor de competição territorial, imagem de marca estereotipada e facilitadora da homogeneização dos estilos de vida.
O protagonismo que hoje a instrumentalização do fenómeno cultural ocupa na engrenagem deste dispositivo municipal parece-nos evidente. Apesar de ainda pouco debatido entre nós, sabe-se que a verdadeira autoridade precisa da cultura como meio de interiorização de mecanismos de subserviência, pois nenhum poder político sobrevive satisfatoriamente através da pura coerção. É na própria subjectividade humana, com toda a sua aparente liberdade e privacidade, que o poder procurar deixar a sua marca consensual.

A sensação de se viver hoje num dos municípios portugueses – salvo excepções – é a de se estar imerso num imenso aquário cuja água se vem turvando à medida que os autarcas se apoderam impunemente, e à revelia da Constituição da República Portuguesa (CRP), de meios e recursos públicos que deveriam ser colocados estrategicamente ao dispor da produção cultural originada pela sociedade civil. Diríamos então, cinematograficamente, que esta Matrix Municipal faz parte de um sistema de homogeneização dos territórios e da manutenção de uma supremacia produtora de cidades anestesiadas.
Comecemos pela questão jurídica do direito fundamental à cultura. Um dos princípios basilares de um Estado democrático e de direito é o da garantia do pluralismo e da liberdade cultural, o que obriga à colaboração do Estado em duas vertentes: i) através do “direito negativo” que impõem um travão ao furor histórico fascista de criação de uma Cultura oficial, proibindo ao Estado (Artigo 43.º, CRP) programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas; ii) através do “direito positivo” que obriga o Estado, em colaboração com os agentes culturais, a incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural (Artigo 78.º CRP).
Se o poder local (municípios) goza plenamente dos princípios de subsidiariedade e de autonomia consagrados após a revolução de Abril, não se compreende como 45 anos de democracia – e 51 após o Maio de 68 – não foram ainda suficientes para as câmaras municipais agirem democrática e eficazmente no âmbito da CRP. O hábito está enraizado ao ponto de tornar diminuta a discussão pública dos efeitos nefastos do protagonismo municipal na vitalidade cultural dos territórios, na sustentabilidade, na autodeterminação e independência crítica dos agentes, na diversidade e no desenvolvimento do tecido cultural dos municípios. A insustentável leveza do municipalismo cultural é afinal essa falsa realidade social criada pela vontade de sobrepor um ideal estético kitsch (Milan Kundera) ao pluralismo das formas artísticas e socioculturais, renegando assim o pluralismo e a produção alternativa de um novo regime ético do viver em comum.

A atribuição de um “Prémio de Melhor Programação Cultural Autárquica” pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), e da sua divulgação acrítica em meios que proclamam defender os “valores de Abril”, representa o cúmulo da extensa e paradoxal naturalização de um padrão de governação em tudo contrário ao direito fundamental à cultura, que, como vimos, proíbe explicitamente ao Estado programar a cultura. Se proíbe, como pode uma instituição de defesa dos direitos culturais (SPA) premiar uma inconstitucionalidade? É a uma câmara que cabe a função de promover (organizar, programar e produzir), p.ex., um Festival Transcultural? Ou, pelo contrário, a sua função deve ser a de gerar políticas, ferramentas e condições de produção para que os actores sociais, designadamente minorias, construam um projecto participado e sustentado?
Na pior das hipóteses, o resultado do “Municipalismo Cultural” é o de um conformismo pluralista, no qual a lógica do poder (monolítica e coerciva) é reproduzida pelos agentes culturais, colaborando estes – por medo ou receio de perder a confiança dos eleitos – na sua difusão acrítica. Este municipalismo monstruoso pode então ser entendido como uma espécie de colonialismo cultural, pois ao mesmo tempo que satura as localidades com padrões culturais arbitrários e ilegítimos, destrói os ecossistemas de cultura na sua biodiversidade social. A diferença para com os colonialismos pré-modernos é que esses também liquidavam fisicamente as comunidades autóctones.
A proibição expressa pelo Artigo 43.º da CRP tem, devia ter, diversos efeitos pragmáticos, designadamente na implementação de uma política fundada no principio do arm's lenght, o qual impede que o poder político participe em processos de apreciação estética. Este princípio, usado em países democraticamente avançados, serve para proteger a independência dos criadores da possível influência dos governantes. Porém, na realidade municipal portuguesa isso infelizmente não acontece, sendo notório o padrão oposto de intromissão política e ideológica nas práticas e nos processos culturais. A presença de vereadores da Cultura em comissões de apreciação (júri) em concursos públicos de apoio à criação artística é de lamentar, mas acontece, por exemplo em Torres Vedras (Art.º 5.º).
A defesa intransigente, e constitucionalmente óbvia, da autonomia e da liberdade de programação dos equipamentos culturais, apesar das inúmeras reflexões sobre o assunto e da publicação de manuais de “Boas Práticas de Programação e Gestão de Teatros Municipais” (2010, REDE – Associação de Estruturas Para a Dança Contemporânea), é ainda hoje largamente desprezada com a constante ingerência do poder executivo na definição das programações de museus, teatros ou galerias. Observando, e escutando, o que se passa nos municípios, fica-se com a ideia de que os presidentes de câmara e vereadores são como príncipes da cultura e os cidadãos seus subalternos, restando-lhe participar com deferência naquilo que são as “palavras de ordem” e nos horizontes culturais diminuídos. Mais uma vez o desprezo da soberania do povo: o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade!

PÚBLICO -
Foto  
Lauren Bon and the Metabolic Studio (2008) DR
 Veja-se o caso recente (2018) da vereadora da Cultura de Santarém, que defende de forma pública e veemente uma programação menos “alternativa” para o Teatro Sá da Bandeira (TSB), sentindo-se chocada com uma peça de teatro em que surgia uma actriz nua em palco a dizer palavrões. Este episódio levou à demissão do programador Pedro Barreiro contratado para assumir a direcção artística do TSB. A formulação sintética com que Pedro Barreiro descreve os acontecimentos numa entrevista bem pode ser aplicada sintomaticamente a muitos outros municípios:
“Em Santarém é o caciquismo absoluto, as coisas funcionam em lógicas permanentemente eleitoralistas, altamente populistas, de fomentar a mediocridade em toda a linha, não existe nem visão, nem estratégia, nem pensamento decente. São coisas muito graves e que devem ser combatidas por todas as pessoas que tenham acesso a essas informações e que se queiram chatear.”
No município da Guarda algo similar aconteceu com a demissão de Américo Rodrigues das funções de director artístico do Teatro Municipal; neste caso também o presidente de câmara (Álvaro Amaro) achou que devia castigar a liberdade de expressão e as opções estéticas de um programador cultural que tem, como qualquer cidadão, o direito a publicitar livremente a sua opinião sem ser alvo de represálias. Em Sesimbra, Pedro Martins, num artigo do Jornal Raio de Luz (Agosto, 2017), dizia que “tudo o que se encontre à margem da esfera municipal e se não conforme com os seus ditames ou os seus desígnios corre o sério risco de esbarrar no silêncio, na inércia, na má vontade ou até na incompetência da câmara”.
A história do municipalismo português evidencia a governação absolutista protagonizada pelos “césares locais” a que temos sido sujeitos durante séculos. Em 1910, já o futuro Presidente da República, António José de Almeida, proclamava que “o caciquismo não é um acessório do regímen. É o próprio regímen. Ou, pelo menos, está para o regímen como o coração está para o organismo em que bate: é o aparelho distribuidor da energia e da acção” (Alma Nacional, n.° 28, de 18 de Agosto de 1910).
A obra de Henriques Félix Nogueira, O Município no Século XIX (Ulmeiro, 1953), descreve a passagem do absolutismo monárquico para a democracia municipalista. A burguesia, apesar de ser a classe herdeira do poder acumulado pela monarquia, “não quizeram prescindir d'esta arma terrível, e dar às povoações oprimidas e decadentes a vida própria que lhes faltava. Os resultados de semelhante política são, em toda a parte, funestos” (grafia original, p.11).
Boaventura de Sousa Santos, em 2002, questionava o pós 25 de Abril como época em que as autarquias locais foram investidas das mais ambiciosas expectativas democráticas:
“Esperava-se que, ao nível das autarquias, o exercício do poder político fosse mais próximo dos cidadãos e mais participado por estes, constituindo assim um cadinho de vivências democráticas fortes onde se geraria uma cultura política de cidadania activa capaz de neutralizar a cultura de submissão e de autoritarismo prevalecente até então no país (…). Ao centralismo da administração central acabou por corresponder o centralismo da administração local, o chamado “cesarismo local”. Daí o paradoxo do poder local no nosso país: presidentes de câmara fortes coexistem com um poder local fraco.”
Num artigo publicado em Fevereiro de 2019, António Pinto Ribeiro afirma, com inequívoco conhecimento, que “uma das constantes em muitos teatros e cineteatros do país, independentemente do tamanho das cidades e da cor política dos seus autarcas, é estes servirem fundamentalmente de equipamentos eleitoralistas”.
Nas nossas cidades, ainda hoje, como descreve Maria de Lourdes Lima dos Santos, “a pessoalização do poder acentua-se, agindo os eleitos em função de lógicas carismático-demagógicas, clientelares e partidárias, prevalecendo, por isso, uma visão paternalista” (As Políticas Culturais em Portugal, 1998: 178).
Poderíamos multiplicar a citação deste género de testemunhos, de experiências na primeira pessoa ou de conversas privadas mantidas com agentes culturais de muitos municípios, para verificarmos a plena sintonia existente entre a realidade concreta e a análise sociológica. O “caciquismo cultural” não é tampouco uma intuição subjectiva, é de facto um grave problema histórico, estrutural e estruturante, na vida dos municípios portugueses, e que supostamente deveria ter desaparecido há muito da nossa esfera pública democrática.
Quatro décadas após a instauração da democracia, estamos ainda no grau zero da cultura política autárquica no que à dimensão cultural diz respeito. A ausência de uma dimensão participativa sistemática e regular na gestão das cidades tem levado à persistência de um consenso operacional produzido e controlado pelas instâncias de governação.
Através de um prisma retórico poderíamos entender a razão de existência do fenómeno “municipalismo cultural” e aceitá-lo enquanto estratégia para lidar com as pressões da globalização, da sociedade em rede, e dos seus efeitos disruptivos nos estilos de vida das sociedades contemporâneas. Contudo, rapidamente concluiríamos que se tratava de uma estratégia ineficaz e prejudicial às dinâmicas e à resiliência dos sistemas sociais reticulares. Se optarmos por enquadrar o fenómeno sob outro prisma, poderíamos observar in loco a existência de um dispositivo artificial (não orgânico) de produção estratégica de hegemonias governativas no território.
Neste contexto, a instrumentalização da cultura para fins eleitoralistas equivale àquilo que Kundera designava como kitsch político. Esse “poder absorvente” enraizado nas cidades portuguesas contemporâneas aparece como uma espécie de novo totalitarismo kitsch (monocultura disfarçada de pluralismo), esvaziando a dimensão cultural de todos os conteúdos antagónicos e críticos da insustentável leveza do municipalismo cultural. Na realidade todos conhecemos municípios onde o executivo municipal se manifesta como instância de condicionamento e estagnação, abdicando do seu papel de facilitador de uma sociedade civil emancipada e plural.
Que estratégias e mobilizações adoptar para a construção de novas estruturas e instituições democráticas? Que iniciativas são necessárias para a revitalização das energias cívicas tendencialmente recalcadas por lógicas de dominação e reprodução presentes nas sociedades contemporâneas? Como promover e fortalecer as novas exigências de participação democrática?
Numa perspectiva centrada nas possibilidades participativas das pessoas, e da emancipação da sua condição de meros consumidores para produtores das suas próprias práticas culturais, é urgente propiciar instituições culturais mobilizadoras de sentido e entusiasmo colectivo, geradoras de energia cultural e de vidas com maior qualidade intrínseca. Não se trata pois de “satisfazer necessidades” de consumidores zombificados, mas de estimular as condições necessárias para que os cidadãos e as cidadãs possam criar e gerir as suas próprias necessidades, ou melhor, os seus desejos, na dimensão sociocultural, mas também económica e ambiental, das suas vidas.
As autarquias locais devem assumir um papel catalisador das forças sociais da comunidade, para que as mesmas tenham uma participação activa. E para tal será necessário, por um lado, criar espaços de debate, crítica e criatividade, onde os problemas locais sejam analisados com base no contributo e na experiência dos vários intervenientes.

Não podemos exigir hoje menos do que uma política cultural fundamentada no direito universal e como bem comum, que antes de mais parta do reconhecimento da sua dimensão política, isto é, da convicção de que a transformação cultural está intimamente ligada à transformação do político. Urge, por isso, favorecer a emergência de cidades inquietas, abertas às propostas da sociedade civil, nomeadamente dos mais jovens, dotadas de serviços públicos proactivos e dialogantes com as exigências, as propostas e as críticas da cidadania. Isto pressupõe, obviamente, um entendimento relacional da distribuição do poder, em vez de uma mera acumulação indefinida cujo paroxismo seria a encarnação do absolutismo.
Neste contexto, a arte e a cultura partilham com a política a capacidade de ampliar os horizonte de possibilidade, permitem-nos construir, enquanto comunidade, um presente concreto para imaginar um futuro que não nos poderá ser roubado. A cultura, enquanto matéria de política pública, deve então ser entendida como capacidade activa de cidadania, ou seja, como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais que os elementos de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa do mundo contemporâneo e para elaborar novas estratégias de vida colectiva. Ou, como diz Toni Puig, um conhecido livre pensador catalão: As cidades e um mundo melhor construiremos nós, os cidadãos. Acabou-se a submissão!

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Sobre o Partido fascista "Chega"

«Independentemente da análise dos problemas que levam a este voto (os reais e os de perceção), a grande derrota da esquerda tem sido a de permitir que a questão de classe perca a centralidade que secundarizava o preconceito, a xenofobia e a intolerância. Os ciganos não chegaram ontem a estes lugares do Alentejo, o sentimento de insegurança não chegou ontem às periferias de Lisboa. O que chegou ontem foi a relevância do jornalismo tabloide na construção da consciência coletiva e o desaparecimento de outras agendas e de outros inimigos. A crise do discurso de classe na esquerda, que a crise do PCP e a transfiguração do Livre num partido ultraidentitário reforçam, dará todo o espaço à extrema-direita.» Daniel Oliveira, Diário Expresso, 14/10

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O 70.º aniversário do pacto germano-soviético deu origem a uma nova campanha revisionista, reescrevendo a história para atacar o comunismo. Sem originalidade, esta campanha recicla hoje os mesmos argumentos tão esgotados quanto errados. Bruno Guigue, numa tribuna, retoma o principal eixo desta campanha anticomunista, o mito dos gémeos totalitários, que não visa senão desculpar o fascismo para melhor acusar o comunismo, amalgamando Stáline e Hitler, Alemanha nazi e União Soviética, com o pretexto do pacto germano-soviético. Um pacto que nada tem a ver com qualquer forma de proximidade, mas é o “fruto amargo dos acordos de Munique”.
  • Ler nas edições Delga, O mito dos gémeos totalitários – Michael Parenti

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O pacto germano-soviético, fruto amargo dos acordos de Munique
Bruno Guigue
25 de agosto de 2019
Graças à “guerra fria”, a narrativa consensual da “grande aliança antifascista” (1941-1945) entra em colapso como um castelo de cartas. Os aliados da véspera deixaram de o ser, e uma nova narrativa suplanta a antiga em ambos os campos. Para o mundo ocidental – agora alinhado por trás da bandeira estrelada – a coligação de democracias contra a hidra de Hitler deu lugar à coligação de democracias contra a hidra comunista. Apagando o esforço colossal da URSS para derrotar o Terceiro Reich, o discurso dominante no Ocidente pretende infligir a Stáline uma verdadeira reductio ad hitlerum. A luta titânica entre a Wehrmacht e o Exército Vermelho, em resumo, teria causado uma ilusão de ótica: tal como a árvore esconde a floresta, o confronto militar entre ambos teria mascarado a conivência entre as duas tiranias do século.
Hannah Arendt tem tido um papel fundamental nessa interpretação da história. Para a filósofa alemã, o totalitarismo é um fenómeno de dupla face: nazismo e estalinismo. Os partidos totalitários têm uma ideologia rígida e uma estrutura sectária. O poder do líder é absoluto, e a comunidade unida por uma fé sem reservas nas suas virtudes sobre-humanas. A supressão do espaço público e o reinado da arbitrariedade policial, finalmente, assinam a dissolução da sociedade no Estado e do Estado no partido. Mas para Hannah Arendt, o sistema totalitário é, acima de tudo, o instrumento pelo qual a ideologia totalitária afirma cumprir as leis da natureza (nazismo) ou cumprir as promessas da história (estalinismo). No totalitarismo moderno, a ideologia é a lógica de uma ideia: é forte o suficiente para dar sentido aos acontecimentos, fornece uma explicação infalível. Transformando classes em massas, o estado totalitário exerce um controlo ilimitado sobre a sociedade. Absorvendo todas as atividades humanas para lhes dar o significado inequívoco exigido pela ideologia, o totalitarismo, para Arendt, é um sistema que transcende as suas encarnações particulares.
Esta definição, no entanto, tem a desvantagem de ignorar as diferenças concretas entre o nazismo e o estalinismo. Sem mencionar a própria ideologia (a mística da raça ariana contra o socialismo num país), o recurso à violência não toma as mesmas justificações em Moscovo e em Berlim. O sistema totalitário descrito por Hannah Arendt assemelha-se ao leito de Procrustes, no qual se deseja colocar uma realidade que o ultrapassa. A impotência do modelo em explicar o real é flagrante quando Hannah Arendt atribui ao sistema totalitário uma política externa agressiva, abertamente dedicada à conquista do mundo. “Como conquistador estrangeiro, o ditador totalitário considera a riqueza natural e industrial de cada país, incluindo a sua, como uma fonte de pilhagem e um meio de preparar o próximo estágio de expansão agressiva” (Hannah Arendt, Le système totalitaire [O sistema totalitário], Seuil, 1972, p. 147).
A conquista e a pilhagem, no entanto, não são prerrogativas de “regimes totalitários”. Ao descrever como uma propriedade intrínseca do sistema totalitário o que corresponde à prática constante de regimes democráticos, Hannah Arendt está envolvida numa manobra de prestidigitação. Se conquista, expansão e pilhagem são práticas totalitárias, por que não deduz ela daí a natureza totalitária das democracias ocidentais?
Apesar dessa contradição flagrante, o mito dos "gémeos totalitários" forneceu um repertório inesgotável para a reescrita ocidental da história. Tornou possível traçar uma linha sobre a realidade de um conflito mundial no qual 90% das perdas alemãs são causadas na frente oriental e onde as vitórias de Jukov, duramente conquistadas, venceram a máquina de guerra de Hitler. Pouco importa o sacrifício do povo soviético, pouco importam os sucessos do Exército Vermelho, já que o seu líder – Estaline – é um carrasco sanguinário que não é muito melhor do que o seu homólogo nazi. Essa interpretação dos factos pela doxa [palavra grega que significa crença comum ou opinião popular – NT] ocidental é perfeitamente ilustrada por Hannah Arendt, novamente, quando escreve, em 1966, que “ao contrário de algumas lendas do pós-guerra, Hitler nunca teve a intenção de defender o Ocidente contra o bolchevismo, mas esteve sempre pronto para se aliar aos Vermelhos para a destruição do Ocidente, mesmo no auge da guerra contra a União Soviética”. (Hannah Arendt, Op. Cit, p. 243).
É em vão que se procura qualquer evidência para apoiar esta afirmação, mas isso não importa. A materialidade dos factos faz a fineza de se apagar diante desse teatro de sombras ideológicas. Nazismo e estalinismo, representando “duas variantes do mesmo modelo”, não poderiam realmente envolver-se numa luta de morte. Para mostrar que a verdadeira fratura não está entre o nazismo e o estalinismo, mas entre o totalitarismo (de dupla face) e a democracia liberal, dedica-se a subtrair à história qualquer coisa que possa desmentir a interpretação. Assim, Hitler deveria ser o aliado natural de Stáline, mas, na véspera da Operação Barbarossa (junho de 1941), o ministro nazi de propaganda, Joseph Goebbels, escreve no seu diário: “O bolchevismo venceu. Assim, assumimos perante a história o nosso dever autêntico. Contra um tal empreendimento, o próprio Churchill ou Roosevelt têm poucas objeções. Talvez consigamos convencer o episcopado alemão de ambas as confissões a abençoar esta guerra como uma guerra desejada por Deus”. E então, se Hitler pensasse em “aliar-se aos vermelhos”, como explicar a extrema brutalidade dos nazis contra a URSS, em contraste com a sua atitude muito mais respeitadora dos costumes de guerra, na frente oeste?
É que, na França, Hitler não pretende instalar o grande Reich milenar, que ficará em casa nos vastos espaços disponíveis a Oriente. A futura colonização alemã no que ele chama de “deserto russo” ocupa sua imaginação. Essa utopia colonialista e esclavagista radica num desprezo absoluto pelos eslavos, num racismo tão radical que legitima qualquer violência, massacre ou fome contra esses novos “peles vermelhas”, para usar a expressão usada pelo próprio Hitler. Passada despercebida pela historiografia dominante, essa referência aos ameríndios no discurso de Hitler é reveladora. Ela enfatiza a proximidade entre a ideologia racista das democracias liberais e a da ditadura nacional-socialista. “Não é por acaso que o termo-chave do programa eugénico e racial do Terceiro Reich, Untermensch, é apenas a tradução do inglês estadunidense Under man, o neologismo cunhado por Lothrop Stoddard, um autor celebrado, tanto nos EUA como na Alemanha, e consagrado por homenagens de dois presidentes dos EUA (Harding e Hoover) e do Führer do Terceiro Reich, por quem é recebido pessoalmente com todas as honras”, lembra Domenico Losurdo (Stáline, História e crítica de uma lenda negra, Aden, 2011, p. 442).
Se basearmos a tese da união de regimes totalitários no uso do terror, como Hannah Arendt, o que se deve deduzir do uso do terror sob o regime colonial imposto pelos europeus às populações de cor? Dos ameríndios liquidados, desde o século XVI, às populações africanas, asiáticas e oceânicas escravizadas ou exterminadas pelos brancos em nome da civilização, a tarefa nazi de liquidação das “raças inferiores” tinha sérios antecedente. “É muito cómodo colocar as infâmias do nazismo na conta exclusiva de Hitler, escondendo o facto de que ele assumiu, radicalizando-os, os dois elementos centrais da sua teoria num mundo pré-existente: a celebração da raça branca e do ocidente, agora chamada a estender o seu domínio até na Europa oriental; a leitura da revolução bolchevique como uma trama judaico-bolchevique que, estimulando a revolta dos povos coloniais e minando a hierarquia natural das raças e, mais geralmente, infetando, como agente patogénico, o organismo da sociedade, constitui uma ameaça assustadora à civilização, que é necessário combater por todos os meios, incluindo a solução final”. (Domenico Losurdo, Op., Cit., p. 469).
É por isso que a guerra dos nazis contra a URSS foi, de imediato, uma guerra total, uma guerra de extermínio (Vernichtungskrieg). Contra os novos peles-vermelhas, as diretrizes do Führer às suas tropas invasoras tiveram logo uma conotação política: os comissários políticos – por maioria de razão, se forem judeus - serão imediatamente executados, de acordo com o célebre Kommissarbefehl (ordem sobre os comissários), de 6 de junho de 1941. Não era apenas o Exército Vermelho, mas todo o regime soviético que deveria ser destruído. Uma determinação alimentada pela conceção nazi de um “Estado judaico-bolchevique”, cuja destruição exigia o extermínio dos quadros judeus que faziam funcionar o Estado soviético. A ideologia racista nazi também definiu os povos eslavos da União Soviética como uma raça inferior de Untermenschen, de sub-humanos. Em 30 de março de 1941, Hitler anuncia aos seus generais: “A guerra contra a Rússia é aquele tipo de guerra que não pode ser feita de forma cavalheiresca: é uma luta entre diferentes ideologias e raças, e não poderá ser conduzida senão com um nível de violência sem precedentes, sem pausas nem piedade”.
Mas, é claro, a tese da aliança entre Hitler e Stáline contra as democracias encontra o seu principal argumento na assinatura do pacto germano-soviético, de 23 de agosto de 1939. Porque esse acontecimento, inesperado, teve o efeito de um trovão. Manchou brutalmente a imagem da “pátria do socialismo”, que fizera do “antifascismo” o símbolo da união de todas as forças progressistas chamadas a conjurar a ameaça hitleriana. Se o pacto deixava espaço ao expansionismo alemão no Ocidente, como explicar que Stáline tenha mudado de rumo tão brutalmente, permitindo a acusação de ter traído a causa do antifascismo e provocando um rebuliço no seu próprio campo? Para a historiografia dominante, inspirada em Hannah Arendt, a similitude totalitária entre as duas tiranias teria favorecido esta monstruosa aliança. Em suma, a proximidade sistémica explicaria a conivência estratégica. Mas não é nada disso que os factos revelam.
Com efeito, durante os três anos anteriores ao pacto de 23 de agosto de 1939, Stáline tenta obstinadamente negociar uma aliança anti-hitleriana com os franceses e os britânicos. Para a URSS, uma tripla aliança com a França e a Grã-Bretanha significa, acima de tudo, uma coordenação militar para liderar o combate comum contra a Alemanha. O Kremlin também insiste com uma precisa reivindicação: os franco-britânicos devem garantir que a Polónia e a Roménia permitam a passagem do Exército Vermelho no seu território, logo que a guerra com a Alemanha seja desencadeada. Ora a Polónia e a Roménia – duas ditaduras de direita antissemitas e anticomunistas – temem tanto a intervenção soviética quanto a invasão alemã e não estão dispostas a conceder o direito de passagem ao Exército Vermelho. Favorecida pela “política de apaziguamento” preconizada por Londres em relação a Berlim, essa recusa tem o efeito de reduzir a tríplice aliança a uma frente política sem ala militar, condenando-a ao fracasso.
Certamente, Stáline não está mais confiante nas intenções dos alemães do que nas das franco-britânicos. Ele conhece o programa de expansão para Oriente preconizado pelo autor de Mein Kampf e ideologia impregnada de ódio racial, que justifica estes planos de conquista. O esforço de rearmamento da URSS realizado pelo regime stalinista, nos anos 30, em favor da industrialização acelerada, testemunha bem essa lucidez perante o agudizar dos perigos. Mas as negociações com Paris e Londres arrastam-se meses e meses, e a abordagem dilatória dos ocidentais acabou por convencer o dirigente do Kremlin de que não poderia contar com eles. Persuadido de que os alemães atacarão a Polónia a qualquer custo, e constatando que os ocidentais hipotecaram a hipótese da tríplice aliança, Stáline acabou por responder aos avanços de Berlim. Perante o Soviete Supremo, Molotov justifica então o pacto, insistindo no facto de que ele é a consequência e não a causa do fracasso das negociações para a tríplice aliança. Do ponto de vista soviético, o pacto é apenas uma alternativa, à falta de melhor, à coligação com Paris e Londres.
Do lado ocidental, a política de “apaziguamento” tornou caducas as propostas de uma aliança antifascista, formuladas pela URSS, preferindo uma atitude conciliatória face às pretensões do Reich. Passividade calculada, esta demissão perante o expansionismo revanchista da Alemanha, visa orientar a agressão nazi em direção à URSS, designada como o inimigo a abater pela ideologia nacional-socialista. Esta política atingiu seu auge durante os acordos assinados em Munique pela França, a Grã-Bretanha, a Alemanha e a Itália, em 30 de setembro de 1938.  A Checoslováquia é entregue de pés e mãos amarrados a Adolf Hitler, que compartilha os despojos deste infeliz país com a Polónia e a Hungria. A União Soviética, por sua vez, tenta impedir este desastre. Reclama, em vão, a coordenação das forças soviéticas, francesas e checoslovacas, assim como o recurso à Assembleia Geral da Sociedade das Nações (SDN). Entre 21 e 23 de setembro de 1938, o Exército Vermelho mobiliza as forças militares na Ucrânia e na Bielorrússia. Na ausência de uma fronteira comum entre a URSS e a Checoslováquia, Moscovo solicita o acordo de Varsóvia e de Bucareste para atravessar o seu território. A Roménia parece prestes a aceitar, mas a recusa polaca sela o destino da Checoslováquia. Indignada com os acordos de Munique, a diplomacia soviética denuncia uma “capitulação que terá consequências incalculáveis”.  
O Pacto de 23 de agosto de 1939 é o último episódio do jogo de xadrez que caracteriza as relações internacionais nos últimos anos do período pré-guerra. Seja com a tríplice aliança – abortada – ou com o pacto germano-soviético, Stáline tenta afastar o espetro da guerra, sabendo que é inevitável. “Na verdade, longe de travar uma guerra que levasse a uma revolução, Stáline estava apenas preocupado com um novo grande conflito militar. A guerra oferecia oportunidades, mas também expunha a grandes perigos. Embora a Primeira Guerra Mundial tenha levado à Revolução Russa de 1917, seguiu-se uma guerra civil na qual os inimigos dos comunistas estiveram prestes a matar o bolchevismo no ovo. Entre os oponentes dos bolcheviques, durante a guerra civil, estavam as grandes potências capitalistas – Grã-Bretanha, França e Estados Unidos – que ajudaram as forças anticomunistas na Rússia e impuseram um bloqueio económico e político para conter o contágio do bolchevismo”, destaca Geoffrey Roberts (As Guerras de Stáline, Delga, 2011, p. 25).
Se Stáline joga a cartada alemã, em agosto de 1939, é porque as tentativas de entendimento com os ocidentais falharam por culpa deles. Depois da traição à Checoslováquia pelas “democracias” ocidentais em Munique, em setembro de 1938, ele sabe o quanto a tentação de uma linha “Mais Hitler do que Stáline” é forte na Europa. As suas ofertas de aliança da primavera de 1939, tropeçando na recusa da Polónia – que fica com um pedaço da Checoslováquia, em 1938 –, resultam na convicção da impossibilidade de se entender com Paris e Londres, e vira temporariamente contra os franco-britânicos a ameaça alemã que pretendiam atirar contra a URSS. É impossível, portanto, compreender o trovão de 23 de agosto de 1939, sem o ligar ao caráter defensivo da política externa soviética. Se Stáline assinou o pacto foi para atrasar o desencadear da guerra em solo soviético. E fê-lo, sobretudo, porque os Acordos de Munique não lhe deixaram outra escolha.
Tradução do francês de TAM

domingo, 13 de outubro de 2019


Branqueamento dos colonizadores

Manlio Dinucci
Hace 70 años, el 1º de octubre de 1949, el líder Mao Zedong proclamaba, desde la puerta de ‎Tiananmén, el nacimiento de la República Popular China, que acaba de celebrar ese aniversario ‎con un gran desfile militar ante ese histórico lugar. En Europa, Japón y Estados Unidos, los ‎grandes medios de difusión presentan ese desfile como la ostentación de fuerza militar de una ‎potencia amenazante. Prácticamente nadie se interesa por recordar los dramáticos momentos de ‎la historia que condujeron al nacimiento de la Nueva China. ‎
Así que nadie menciona la China que se vio reducida al estado de colonia o de semicolonia, que ‎desde mediados del siglo XIX fue explotada y desmembrada por las potencias europeas (Reino ‎Unido, Alemania, Francia, Bélgica, Austria e Italia), por la Rusia de los zares, por el Japón imperial ‎y por Estados Unidos. ‎

Nadie menciona el sangriento golpe de Estado perpetrado en 1927 por Chiang Kai-shek –con el ‎respaldo de Estados Unidos–, quien casi exterminó a los miembros del Partido Comunista ‎‎(fundado en 1921) y masacró cientos de miles de obreros y campesinos. Tampoco se habla de ‎la Larga Marcha del Ejército Rojo, iniciada en 1934 como una desastrosa retirada y convertida ‎por Mao Zedong en una de las mayores hazañas político-militares de la historia de la humanidad. ‎
Igualmente se pasa por alto la guerra de agresión que Japón desató contra China en 1937. ‎Se oculta el hecho que las tropas japonesas ocuparon Pekín, Shanghai y Nankín, que en esta ‎última ciudad china masacraron a más de 300 000 civiles y que atacaron más de 10 ciudades ‎chinas con armas biológicas. ‎
Se silencia la historia del frente unido antijaponés que el Partido Comunista constituyó con el ‎Kuomintang. Las tropas del Kuomintang, armadas por Estados Unidos, lucharon contra los ‎invasores japoneses pero al mismo tiempo imponían un bloqueo a las zonas liberadas por el ‎Ejército Rojo y hacían que la ofensiva japonesa se concentrara precisamente sobre esas zonas.
Desde 1937 hasta 1945, el Partido Comunista –que pasó de 40 000 miembros a 1,2 millones– ‎dirigió las fuerzas populares chinas en una guerra de resistencia que acabó desgastando a las ‎tropas japonesas. Pero no se reconoce que con esa guerra de resistencia, durante la cual ‎‎35 millones de chinos dieron sus vidas, China tuvo una contribución determinante en la derrota ‎de Japón, que, ya derrotado en el Pacífico por Estados Unidos y en Manchuria por la URSS, acabó ‎rindiéndose a Estados Unidos, en 1945, después de los bombardeos atómicos estadounidenses ‎contra Hiroshima y Nagasaki. ‎
También se esconde al público lo ocurrido inmediatamente después de la derrota japonesa. ‎Siguiendo un plan trazado en Washington, Chiang Kai-shek trató de reeditar lo que ya había ‎hecho en 1927. Pero sus fuerzas, armadas y apoyadas por Estados Unidos se encontraron ‎frente al Ejército Popular de Liberación, que contaba alrededor de un millón de combatientes, y a ‎una milicia de 2,5 millones de personas, que además gozaban de un enorme apoyo popular. Unos ‎‎8 millones de soldados del Kuomintang resultaron muertos o hechos prisioneros y Chiang Kai-shek ‎huyó a Taiwan bajo la protección de Estados Unidos. ‎
Los párrafos anteriores son sólo una pequeña síntesis de los hechos que llevaron al nacimiento de ‎la República Popular China, hace 70 años. Pero de esa historia no se habla prácticamente nunca ‎en los manuales escolares de historia, caracterizados por una visión del mundo eurocéntrica y ‎extremadamente restringida, visión que se hace cada día más anacrónica. Es una historia que los ‎políticos y la prensa occidentales ignoran deliberadamente… porque revela los crímenes del ‎imperialismo, pone en el banquillo de los acusados, a las potencias europeas, a Japón y a ‎Estados Unidos, a las «grandes democracias» occidentales que se erigen en jueces supremos ‎con derecho a decidir qué países son democráticos y cuáles no. ‎
Pero ya no estamos en la época de las «concesiones», aquellas zonas urbanas bajo ‎administración extranjera en suelo chino, cuya creación había sido impuesta a China por las ‎potencias extranjeras, cuando el parque Huanpu de Shanghai estaba «prohibido a los perros y los ‎chinos». ‎
Via: FOICEBOOK http://bit.ly/355SN8h

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.