Rui
Rio, desesperadamente lutando pela sua sobrevivência política, e
Assunção Cristas, desesperadamente lutando pela sobrevivência do seu
partido, tentam que fique a pairar a ideia de que o primeiro-ministro
cometeu algum crime, única forma de ressuscitar sonoridades socráticas a
esta campanha. António Costa prefere atacar um dos partidos que lhe
permitiu governar durante quatro anos para tentar mudar de assunto. E,
enquanto todos se entretêm, a instituição militar consegue a proeza de
não ser beliscada pelo caso de Tancos. É como se não tivesse nada a ver
com o assunto.
Como a
acusação de Tancos apareceu durante uma campanha eleitoral, todo o
debate público se resume às responsabilidades de políticos. É um
clássico: falhe a banca ou as Forças Armadas, está lá o político para
que mais ninguém seja incomodado. Neste caso, a responsabilidade do
político é ter sido cúmplice. Percebe-se, aliás, que os envolvidos
fizeram tudo para que políticos ficassem ao corrente dos seus atos
criminosos, para que o foco, se a verdade fosse descoberta, saísse das
suas cabeças. Resultou. Aconteceu uma coisa inaudita nas Forças Armadas e
o debate concentra-se num ex-ministro idiota e irresponsável e em
tentativas desesperadas de envolver o primeiro-ministro e o Presidente
da República.
Não preciso de
recordar o que sabemos que aconteceu. Que o Exército se revelou uma
anedota na capacidade de guardar material de guerra. Que as câmaras
estavam estragadas, que os turnos eram uma balda, que os inventários
eram de mercearia. Que, sentindo-se humilhada, a Polícia Judiciária
Militar desobedeceu a ordens judiciais e em vez de entregar a
investigação aos civis tornou-se cúmplice dos assaltantes para ser ela a
recuperar o armamento, num esquema patético que só nos faz sentir
vergonha alheia. E que, no comportamento de todas as instituições
envolvidas, parece ter pesado bastante mais o poder de cada capelinha do
que o interesse geral. Nesta história, o poder político parece ter sido
o idiota útil e cúmplice, incapaz de pôr a tropa no lugar.
Este
comportamento da hierarquia das Forças Armadas revela uma confusão
comum entre orgulho e dignidade. Estes militares demonstraram ser
movidos pelo orgulho ferido e totalmente alheios às exigências mínimas
de dignidade institucional. E enquanto andamos a discutir o que sabia e
não sabia cada político, mesmo sendo evidente que os políticos não
controlam o que se passa dentro das Forças Armadas, poucos discutem até
onde vão as responsabilidades da hierarquia militar. Nem queremos fazer
um debate ainda mais profundo: a decadência ética, a indisciplina e o
descontrolo que parecem reinar nas nossas Forças Armadas e em algumas
forças militarizadas e de segurança.
Quando a
ordem do poder se inverte, temos um ministro que em vez de acautelar os
interesses do país e o respeito pela dignidade do Estado fica às ordens
dos interesses de uma corporação. Para esta inversão contribui o
discurso que apouca o poder simbólico dos políticos eleitos e agiganta a
“dignidade das Forças Armadas”
Tradicionalmente,
os militares cultivam uma postura altiva em relação ao mundo civil e,
em particular, ao poder político. Eles sabem o que é o patriotismo, a
ordem, a disciplina, o trabalho, e os políticos são uns badamecos sem
sentido de dever ou bravura. Com honrosas exceções, que nos devem
merecer apoio e respeito, isto não tem grande adesão à realidade. As
Forças Armadas são das estruturas menos eficazes do Estado português.
Entre outras razões, porque não são escrutinadas. A corporação trata de
si e sempre que é contrariada por aqueles a quem deve disciplinadamente
obedecer faz saber do seu desconforto de forma bastante clara,
boicotando os ministros e as suas escolhas.
Acredito
que temos umas Forças Armadas sobredimensionadas para as nossas
necessidades. O que precisamos é de guardar a costa, de uma proteção
civil mais eficaz e de militares para missões de paz. De resto, as
Forças Armadas já não têm, pelo menos para nós, uma tradução
significativa no peso diplomático do país. Os maiores riscos para a
nossa segurança não passam, em grande medida, pela nossa capacidade
militar. Compreendo o choque que podem causar estas palavras num país
que herdou umas Forças Armadas inchadas por uma guerra colonial e que
deveu a sua democracia a um conjunto de militares. Mas não me parece que
discursos anacrónicos, que continuam a associar a nossa soberania ao
nosso poderio militar enquanto desprezam a autonomia monetária,
financeira e económica, devam impedir que se faça um debate sério sobre o
papel das nossas Forças Armadas e a dimensão que desejavelmente deve
ter.
As cúpulas militares
têm aproveitado o seu poder simbólico para impedir que se normalizem as
relações hierárquicas entre o poder político civil e as Forças Armadas.
Quando um ministro da Defesa é nomeado discute-se se os militares o
apreciam. Da mesma forma que um soldado não escolhe o seu comandante, os
generais não escolhem o ministro. E quando a ordem do poder se inverte
temos episódios como o de Tancos. Temos um ministro que em vez de
acautelar os interesses do país e o respeito pela dignidade do Estado
fica às ordens dos interesses de uma corporação, mesmo que ilegítimos ou
até criminosos. Para esta inversão das coisas contribuiu o discurso
dominante que apouca o poder simbólico dos políticos eleitos e agiganta a
“dignidade das Forças Armadas”, como se ela estivesse acima do Estado
democrático. Tancos é um excelente símbolo disto mesmo: umas Forças
Armadas em autogestão e governantes que não se dão ao respeito.
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