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terça-feira, 1 de outubro de 2019

Na mouche!




Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Quando os militares mandam nos políticos

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Rui Rio, desesperadamente lutando pela sua sobrevivência política, e Assunção Cristas, desesperadamente lutando pela sobrevivência do seu partido, tentam que fique a pairar a ideia de que o primeiro-ministro cometeu algum crime, única forma de ressuscitar sonoridades socráticas a esta campanha. António Costa prefere atacar um dos partidos que lhe permitiu governar durante quatro anos para tentar mudar de assunto. E, enquanto todos se entretêm, a instituição militar consegue a proeza de não ser beliscada pelo caso de Tancos. É como se não tivesse nada a ver com o assunto.
Como a acusação de Tancos apareceu durante uma campanha eleitoral, todo o debate público se resume às responsabilidades de políticos. É um clássico: falhe a banca ou as Forças Armadas, está lá o político para que mais ninguém seja incomodado. Neste caso, a responsabilidade do político é ter sido cúmplice. Percebe-se, aliás, que os envolvidos fizeram tudo para que políticos ficassem ao corrente dos seus atos criminosos, para que o foco, se a verdade fosse descoberta, saísse das suas cabeças. Resultou. Aconteceu uma coisa inaudita nas Forças Armadas e o debate concentra-se num ex-ministro idiota e irresponsável e em tentativas desesperadas de envolver o primeiro-ministro e o Presidente da República.
Não preciso de recordar o que sabemos que aconteceu. Que o Exército se revelou uma anedota na capacidade de guardar material de guerra. Que as câmaras estavam estragadas, que os turnos eram uma balda, que os inventários eram de mercearia. Que, sentindo-se humilhada, a Polícia Judiciária Militar desobedeceu a ordens judiciais e em vez de entregar a investigação aos civis tornou-se cúmplice dos assaltantes para ser ela a recuperar o armamento, num esquema patético que só nos faz sentir vergonha alheia. E que, no comportamento de todas as instituições envolvidas, parece ter pesado bastante mais o poder de cada capelinha do que o interesse geral. Nesta história, o poder político parece ter sido o idiota útil e cúmplice, incapaz de pôr a tropa no lugar.
Este comportamento da hierarquia das Forças Armadas revela uma confusão comum entre orgulho e dignidade. Estes militares demonstraram ser movidos pelo orgulho ferido e totalmente alheios às exigências mínimas de dignidade institucional. E enquanto andamos a discutir o que sabia e não sabia cada político, mesmo sendo evidente que os políticos não controlam o que se passa dentro das Forças Armadas, poucos discutem até onde vão as responsabilidades da hierarquia militar. Nem queremos fazer um debate ainda mais profundo: a decadência ética, a indisciplina e o descontrolo que parecem reinar nas nossas Forças Armadas e em algumas forças militarizadas e de segurança.
Quando a ordem do poder se inverte, temos um ministro que em vez de acautelar os interesses do país e o respeito pela dignidade do Estado fica às ordens dos interesses de uma corporação. Para esta inversão contribui o discurso que apouca o poder simbólico dos políticos eleitos e agiganta a “dignidade das Forças Armadas”
Tradicionalmente, os militares cultivam uma postura altiva em relação ao mundo civil e, em particular, ao poder político. Eles sabem o que é o patriotismo, a ordem, a disciplina, o trabalho, e os políticos são uns badamecos sem sentido de dever ou bravura. Com honrosas exceções, que nos devem merecer apoio e respeito, isto não tem grande adesão à realidade. As Forças Armadas são das estruturas menos eficazes do Estado português. Entre outras razões, porque não são escrutinadas. A corporação trata de si e sempre que é contrariada por aqueles a quem deve disciplinadamente obedecer faz saber do seu desconforto de forma bastante clara, boicotando os ministros e as suas escolhas.
Acredito que temos umas Forças Armadas sobredimensionadas para as nossas necessidades. O que precisamos é de guardar a costa, de uma proteção civil mais eficaz e de militares para missões de paz. De resto, as Forças Armadas já não têm, pelo menos para nós, uma tradução significativa no peso diplomático do país. Os maiores riscos para a nossa segurança não passam, em grande medida, pela nossa capacidade militar. Compreendo o choque que podem causar estas palavras num país que herdou umas Forças Armadas inchadas por uma guerra colonial e que deveu a sua democracia a um conjunto de militares. Mas não me parece que discursos anacrónicos, que continuam a associar a nossa soberania ao nosso poderio militar enquanto desprezam a autonomia monetária, financeira e económica, devam impedir que se faça um debate sério sobre o papel das nossas Forças Armadas e a dimensão que desejavelmente deve ter.

As cúpulas militares têm aproveitado o seu poder simbólico para impedir que se normalizem as relações hierárquicas entre o poder político civil e as Forças Armadas. Quando um ministro da Defesa é nomeado discute-se se os militares o apreciam. Da mesma forma que um soldado não escolhe o seu comandante, os generais não escolhem o ministro. E quando a ordem do poder se inverte temos episódios como o de Tancos. Temos um ministro que em vez de acautelar os interesses do país e o respeito pela dignidade do Estado fica às ordens dos interesses de uma corporação, mesmo que ilegítimos ou até criminosos. Para esta inversão das coisas contribuiu o discurso dominante que apouca o poder simbólico dos políticos eleitos e agiganta a “dignidade das Forças Armadas”, como se ela estivesse acima do Estado democrático. Tancos é um excelente símbolo disto mesmo: umas Forças Armadas em autogestão e governantes que não se dão ao respeito. 


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