O mito dos gémeos totalitários
14.10.19
O 70.º aniversário do pacto germano-soviético deu origem a uma nova campanha revisionista, reescrevendo a história para atacar o comunismo. Sem originalidade, esta campanha recicla hoje os mesmos argumentos tão esgotados quanto errados. Bruno Guigue, numa tribuna, retoma o principal eixo desta campanha anticomunista, o mito dos gémeos totalitários, que não visa senão desculpar o fascismo para melhor acusar o comunismo, amalgamando Stáline e Hitler, Alemanha nazi e União Soviética, com o pretexto do pacto germano-soviético. Um pacto que nada tem a ver com qualquer forma de proximidade, mas é o “fruto amargo dos acordos de Munique”.
- Ler nas edições Delga, O mito dos gémeos totalitários – Michael Parenti
O pacto germano-soviético, fruto amargo dos acordos de Munique
Bruno Guigue
25 de agosto de 2019
Graças à “guerra fria”, a narrativa
consensual da “grande aliança antifascista” (1941-1945) entra em colapso
como um castelo de cartas. Os aliados da véspera deixaram de o ser, e
uma nova narrativa suplanta a antiga em ambos os campos. Para o mundo
ocidental – agora alinhado por trás da bandeira estrelada – a coligação
de democracias contra a hidra de Hitler deu lugar à coligação de
democracias contra a hidra comunista. Apagando o esforço colossal da
URSS para derrotar o Terceiro Reich, o discurso dominante no Ocidente
pretende infligir a Stáline uma verdadeira reductio ad hitlerum.
A luta titânica entre a Wehrmacht e o Exército Vermelho, em resumo,
teria causado uma ilusão de ótica: tal como a árvore esconde a floresta,
o confronto militar entre ambos teria mascarado a conivência entre as
duas tiranias do século.
Hannah Arendt tem tido um papel
fundamental nessa interpretação da história. Para a filósofa alemã, o
totalitarismo é um fenómeno de dupla face: nazismo e estalinismo. Os
partidos totalitários têm uma ideologia rígida e uma estrutura sectária.
O poder do líder é absoluto, e a comunidade unida por uma fé sem
reservas nas suas virtudes sobre-humanas. A supressão do espaço público e
o reinado da arbitrariedade policial, finalmente, assinam a dissolução
da sociedade no Estado e do Estado no partido. Mas para Hannah Arendt, o
sistema totalitário é, acima de tudo, o instrumento pelo qual a
ideologia totalitária afirma cumprir as leis da natureza (nazismo) ou
cumprir as promessas da história (estalinismo). No totalitarismo
moderno, a ideologia é a lógica de uma ideia: é forte o suficiente para
dar sentido aos acontecimentos, fornece uma explicação infalível.
Transformando classes em massas, o estado totalitário exerce um controlo
ilimitado sobre a sociedade. Absorvendo todas as atividades humanas
para lhes dar o significado inequívoco exigido pela ideologia, o
totalitarismo, para Arendt, é um sistema que transcende as suas encarnações particulares.
Esta definição, no entanto, tem a
desvantagem de ignorar as diferenças concretas entre o nazismo e o
estalinismo. Sem mencionar a própria ideologia (a mística da raça ariana
contra o socialismo num país), o recurso à violência não toma as mesmas
justificações em Moscovo e em Berlim. O sistema totalitário descrito
por Hannah Arendt assemelha-se ao leito de Procrustes, no qual se deseja
colocar uma realidade que o ultrapassa. A impotência do modelo em
explicar o real é flagrante quando Hannah Arendt atribui ao sistema
totalitário uma política externa agressiva, abertamente dedicada à
conquista do mundo. “Como conquistador estrangeiro, o ditador
totalitário considera a riqueza natural e industrial de cada país,
incluindo a sua, como uma fonte de pilhagem e um meio de preparar o
próximo estágio de expansão agressiva” (Hannah Arendt, Le système totalitaire [O sistema totalitário], Seuil, 1972, p. 147).
A conquista e a pilhagem, no entanto,
não são prerrogativas de “regimes totalitários”. Ao descrever como uma
propriedade intrínseca do sistema totalitário o que corresponde à
prática constante de regimes democráticos, Hannah Arendt está envolvida
numa manobra de prestidigitação. Se conquista, expansão e pilhagem são
práticas totalitárias, por que não deduz ela daí a natureza totalitária
das democracias ocidentais?
Apesar dessa contradição flagrante, o
mito dos "gémeos totalitários" forneceu um repertório inesgotável para a
reescrita ocidental da história. Tornou possível traçar uma linha sobre
a realidade de um conflito mundial no qual 90% das perdas alemãs são
causadas na frente oriental e onde as vitórias de Jukov, duramente
conquistadas, venceram a máquina de guerra de Hitler. Pouco importa o
sacrifício do povo soviético, pouco importam os sucessos do Exército
Vermelho, já que o seu líder – Estaline – é um carrasco sanguinário que
não é muito melhor do que o seu homólogo nazi. Essa interpretação dos
factos pela doxa [palavra grega que significa crença comum ou
opinião popular – NT] ocidental é perfeitamente ilustrada por Hannah
Arendt, novamente, quando escreve, em 1966, que “ao contrário de
algumas lendas do pós-guerra, Hitler nunca teve a intenção de defender o
Ocidente contra o bolchevismo, mas esteve sempre pronto para se aliar
aos Vermelhos para a destruição do Ocidente, mesmo no auge da guerra
contra a União Soviética”. (Hannah Arendt, Op. Cit, p. 243).
É em vão que se procura qualquer
evidência para apoiar esta afirmação, mas isso não importa. A
materialidade dos factos faz a fineza de se apagar diante desse teatro
de sombras ideológicas. Nazismo e estalinismo, representando “duas
variantes do mesmo modelo”, não poderiam realmente envolver-se
numa luta de morte. Para mostrar que a verdadeira fratura não está entre
o nazismo e o estalinismo, mas entre o totalitarismo (de dupla face) e a
democracia liberal, dedica-se a subtrair à história qualquer coisa que
possa desmentir a interpretação. Assim, Hitler deveria ser o aliado
natural de Stáline, mas, na véspera da Operação Barbarossa (junho de
1941), o ministro nazi de propaganda, Joseph Goebbels, escreve no seu
diário: “O bolchevismo venceu. Assim, assumimos perante a história o
nosso dever autêntico. Contra um tal empreendimento, o próprio
Churchill ou Roosevelt têm poucas objeções. Talvez consigamos convencer o
episcopado alemão de ambas as confissões a abençoar esta guerra como
uma guerra desejada por Deus”. E então, se Hitler pensasse em
“aliar-se aos vermelhos”, como explicar a extrema brutalidade dos nazis
contra a URSS, em contraste com a sua atitude muito mais respeitadora
dos costumes de guerra, na frente oeste?
É que, na França, Hitler não pretende
instalar o grande Reich milenar, que ficará em casa nos vastos espaços
disponíveis a Oriente. A futura colonização alemã no que ele chama de
“deserto russo” ocupa sua imaginação. Essa utopia colonialista e
esclavagista radica num desprezo absoluto pelos eslavos, num racismo tão
radical que legitima qualquer violência, massacre ou fome contra esses
novos “peles vermelhas”, para usar a expressão usada pelo próprio
Hitler. Passada despercebida pela historiografia dominante, essa
referência aos ameríndios no discurso de Hitler é reveladora. Ela
enfatiza a proximidade entre a ideologia racista das democracias
liberais e a da ditadura nacional-socialista. “Não é por acaso que o
termo-chave do programa eugénico e racial do Terceiro Reich,
Untermensch, é apenas a tradução do inglês estadunidense Under man, o
neologismo cunhado por Lothrop Stoddard, um autor celebrado, tanto nos
EUA como na Alemanha, e consagrado por homenagens de dois presidentes
dos EUA (Harding e Hoover) e do Führer do Terceiro Reich, por quem é
recebido pessoalmente com todas as honras”, lembra Domenico Losurdo (Stáline, História e crítica de uma lenda negra, Aden, 2011, p. 442).
Se basearmos a tese da união de regimes
totalitários no uso do terror, como Hannah Arendt, o que se deve deduzir
do uso do terror sob o regime colonial imposto pelos europeus às
populações de cor? Dos ameríndios liquidados, desde o século XVI, às
populações africanas, asiáticas e oceânicas escravizadas ou exterminadas
pelos brancos em nome da civilização, a tarefa nazi de liquidação das
“raças inferiores” tinha sérios antecedente. “É muito cómodo colocar
as infâmias do nazismo na conta exclusiva de Hitler, escondendo o facto
de que ele assumiu, radicalizando-os, os dois elementos centrais da sua
teoria num mundo pré-existente: a celebração da raça branca e do
ocidente, agora chamada a estender o seu domínio até na Europa oriental;
a leitura da revolução bolchevique como uma trama judaico-bolchevique
que, estimulando a revolta dos povos coloniais e minando a hierarquia
natural das raças e, mais geralmente, infetando, como agente patogénico,
o organismo da sociedade, constitui uma ameaça assustadora à
civilização, que é necessário combater por todos os meios, incluindo a
solução final”. (Domenico Losurdo, Op., Cit., p. 469).
É por isso que a guerra dos nazis contra a URSS foi, de imediato, uma guerra total, uma guerra de extermínio (Vernichtungskrieg).
Contra os novos peles-vermelhas, as diretrizes do Führer às suas tropas
invasoras tiveram logo uma conotação política: os comissários políticos
– por maioria de razão, se forem judeus - serão imediatamente
executados, de acordo com o célebre Kommissarbefehl (ordem
sobre os comissários), de 6 de junho de 1941. Não era apenas o Exército
Vermelho, mas todo o regime soviético que deveria ser destruído. Uma
determinação alimentada pela conceção nazi de um “Estado
judaico-bolchevique”, cuja destruição exigia o extermínio dos quadros
judeus que faziam funcionar o Estado soviético. A ideologia racista nazi
também definiu os povos eslavos da União Soviética como uma raça
inferior de Untermenschen, de sub-humanos. Em 30 de março de 1941, Hitler anuncia aos seus generais: “A
guerra contra a Rússia é aquele tipo de guerra que não pode ser feita
de forma cavalheiresca: é uma luta entre diferentes ideologias e raças, e
não poderá ser conduzida senão com um nível de violência sem
precedentes, sem pausas nem piedade”.
Mas, é claro, a tese da aliança entre
Hitler e Stáline contra as democracias encontra o seu principal
argumento na assinatura do pacto germano-soviético, de 23 de agosto de
1939. Porque esse acontecimento, inesperado, teve o efeito de um trovão.
Manchou brutalmente a imagem da “pátria do socialismo”, que fizera do
“antifascismo” o símbolo da união de todas as forças progressistas
chamadas a conjurar a ameaça hitleriana. Se o pacto deixava espaço ao
expansionismo alemão no Ocidente, como explicar que Stáline tenha mudado
de rumo tão brutalmente, permitindo a acusação de ter traído a causa do
antifascismo e provocando um rebuliço no seu próprio campo? Para a
historiografia dominante, inspirada em Hannah Arendt, a similitude
totalitária entre as duas tiranias teria favorecido esta monstruosa
aliança. Em suma, a proximidade sistémica explicaria a conivência
estratégica. Mas não é nada disso que os factos revelam.
Com efeito, durante os três anos
anteriores ao pacto de 23 de agosto de 1939, Stáline tenta
obstinadamente negociar uma aliança anti-hitleriana com os franceses e
os britânicos. Para a URSS, uma tripla aliança com a França e a
Grã-Bretanha significa, acima de tudo, uma coordenação militar para
liderar o combate comum contra a Alemanha. O Kremlin também insiste com
uma precisa reivindicação: os franco-britânicos devem garantir que a
Polónia e a Roménia permitam a passagem do Exército Vermelho no seu
território, logo que a guerra com a Alemanha seja desencadeada. Ora a
Polónia e a Roménia – duas ditaduras de direita antissemitas e
anticomunistas – temem tanto a intervenção soviética quanto a invasão
alemã e não estão dispostas a conceder o direito de passagem ao Exército
Vermelho. Favorecida pela “política de apaziguamento” preconizada por
Londres em relação a Berlim, essa recusa tem o efeito de reduzir a
tríplice aliança a uma frente política sem ala militar, condenando-a ao
fracasso.
Certamente, Stáline não está mais
confiante nas intenções dos alemães do que nas das franco-britânicos.
Ele conhece o programa de expansão para Oriente preconizado pelo autor
de Mein Kampf e ideologia impregnada de ódio racial, que
justifica estes planos de conquista. O esforço de rearmamento da URSS
realizado pelo regime stalinista, nos anos 30, em favor da
industrialização acelerada, testemunha bem essa lucidez perante o
agudizar dos perigos. Mas as negociações com Paris e Londres arrastam-se
meses e meses, e a abordagem dilatória dos ocidentais acabou por
convencer o dirigente do Kremlin de que não poderia contar com eles.
Persuadido de que os alemães atacarão a Polónia a qualquer custo, e
constatando que os ocidentais hipotecaram a hipótese da tríplice
aliança, Stáline acabou por responder aos avanços de Berlim. Perante o
Soviete Supremo, Molotov justifica então o pacto, insistindo no facto de
que ele é a consequência e não a causa do fracasso
das negociações para a tríplice aliança. Do ponto de vista soviético, o
pacto é apenas uma alternativa, à falta de melhor, à coligação com Paris
e Londres.
Do lado ocidental, a política de
“apaziguamento” tornou caducas as propostas de uma aliança antifascista,
formuladas pela URSS, preferindo uma atitude conciliatória face às
pretensões do Reich. Passividade calculada, esta demissão perante o
expansionismo revanchista da Alemanha, visa orientar a agressão nazi em
direção à URSS, designada como o inimigo a abater pela ideologia
nacional-socialista. Esta política atingiu seu auge durante os acordos
assinados em Munique pela França, a Grã-Bretanha, a Alemanha e a Itália,
em 30 de setembro de 1938. A Checoslováquia é entregue de pés e mãos
amarrados a Adolf Hitler, que compartilha os despojos deste infeliz país
com a Polónia e a Hungria. A União Soviética, por sua vez, tenta
impedir este desastre. Reclama, em vão, a coordenação das forças
soviéticas, francesas e checoslovacas, assim como o recurso à Assembleia
Geral da Sociedade das Nações (SDN). Entre 21 e 23 de setembro de 1938,
o Exército Vermelho mobiliza as forças militares na Ucrânia e na
Bielorrússia. Na ausência de uma fronteira comum entre a URSS e a
Checoslováquia, Moscovo solicita o acordo de Varsóvia e de Bucareste
para atravessar o seu território. A Roménia parece prestes a aceitar,
mas a recusa polaca sela o destino da Checoslováquia. Indignada com os
acordos de Munique, a diplomacia soviética denuncia uma “capitulação que terá consequências incalculáveis”.
O Pacto de 23 de agosto de 1939 é o
último episódio do jogo de xadrez que caracteriza as relações
internacionais nos últimos anos do período pré-guerra. Seja com a
tríplice aliança – abortada – ou com o pacto germano-soviético, Stáline
tenta afastar o espetro da guerra, sabendo que é inevitável. “Na
verdade, longe de travar uma guerra que levasse a uma revolução, Stáline
estava apenas preocupado com um novo grande conflito militar. A guerra
oferecia oportunidades, mas também expunha a grandes perigos. Embora a
Primeira Guerra Mundial tenha levado à Revolução Russa de 1917,
seguiu-se uma guerra civil na qual os inimigos dos comunistas estiveram
prestes a matar o bolchevismo no ovo. Entre os oponentes dos
bolcheviques, durante a guerra civil, estavam as grandes
potências capitalistas – Grã-Bretanha, França e Estados Unidos – que
ajudaram as forças anticomunistas na Rússia e impuseram um bloqueio
económico e político para conter o contágio do bolchevismo”, destaca Geoffrey Roberts (As Guerras de Stáline, Delga, 2011, p. 25).
Se Stáline joga a cartada alemã, em
agosto de 1939, é porque as tentativas de entendimento com os ocidentais
falharam por culpa deles. Depois da traição à Checoslováquia pelas
“democracias” ocidentais em Munique, em setembro de 1938, ele sabe o
quanto a tentação de uma linha “Mais Hitler do que Stáline” é forte na
Europa. As suas ofertas de aliança da primavera de 1939, tropeçando na
recusa da Polónia – que fica com um pedaço da Checoslováquia, em 1938 –,
resultam na convicção da impossibilidade de se entender com Paris e
Londres, e vira temporariamente contra os franco-britânicos a ameaça
alemã que pretendiam atirar contra a URSS. É impossível, portanto,
compreender o trovão de 23 de agosto de 1939, sem o ligar ao caráter
defensivo da política externa soviética. Se Stáline assinou o pacto foi
para atrasar o desencadear da guerra em solo soviético. E fê-lo,
sobretudo, porque os Acordos de Munique não lhe deixaram outra escolha.
Fonte: https://www.initiative-communiste.fr/articles/billet-rouge-2/le-mythe-des-jumeaux-totalitaires/, acedido em 2019/09/23
Tradução do francês de TAM
Sem comentários:
Enviar um comentário