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sábado, 30 de maio de 2020

Embora longo eis um ensaio de crítica funda às soluções salvadoras do capitalismo em crise profunda


No curto prazo todos estaremos mortos: apontamentos críticos sobre o novo consenso “keynesiano”

Quando aqueles que querem acelerar o trilho da barbárie diante da pandemia afirmam que “preservar as economias implica aceitar perdas de vida”, a despeito do caráter assassino e eugenista de tal proposição, eles não deixam de expressar de forma distorcida uma “verdade”: sim, a lógica econômica de nossas sociedades, é cada vez mais a aceleração de um processo crescentemente hostil à vida.


Por Daniel Feldmann.

Um amplo consenso para uma economia de guerra

Agora “somos todos keynesianos”, diz o adágio que ora volta em tempos pandêmicos. De fato, no Brasil e no mundo, vem agora à tona um inusitado e curioso “Novíssimo Consenso Macroeconômico” que aparentemente diverge bastante e em certos termos é oposto ao “Novo Consenso Macroeconômico” que antes prevaleceu nas últimas décadas dentro daquilo que se chama o mainstream entre os economistas. Sintomático nesse sentido é o relatório do FMI recém-lançado em abril de 2020. Nele, notam-se proposições que claramente destoam das orientações que historicamente têm norteado o Fundo e que não deixam de ecoar agora um sabor, por assim dizer, keynesiano. A necessidade de uma poderosa expansão fiscal é recomendada não apenas durante o atual confinamento forçado, mas deve prosseguir também em seguida quando o movimento de pessoas puder finalmente retornar. Mais ainda, para evitar crises no balanço de pagamento, os países mais frágeis estariam autorizados a instituir controles de capitais tal como Keynes sugerira em Bretton Woods, assim como também tais países poderiam em certos casos decretar moratória de suas dívidas externas fazendo eco aqui à crítica de Keynes ao “absolutismo dos contratos”.1

Tem-se então que o cenário muito adverso tende a aparar arestas e reaproximar antigos desafetos. Unindo gregos e troianos – esquerda com direita, ortodoxos com heterodoxos, desenvolvimentistas com liberais, sindicalistas com capitalistas – o novíssimo consenso aponta para a convergência de uma ação decidida dos Estados nacionais diante da catástrofe econômica e social. Há nuances, é claro, como sempre, mas todos convergem para a evidência óbvia de que confiar na volta espontânea de uma normalidade dos mercados seria nada menos que suicídio. Não faltam também, em todos os campos do espectro ideológico, a metáfora militar de que “estamos em guerra”. Daí também a consequência de que, como resposta à guerra, há de se dar plenos poderes para o Estado. Este último, surgido historicamente na modernidade europeia em grande medida como produto das guerras intestinas que assolavam aquele continente, tem que ser hoje de novo lançado ao ataque e deve usar sua munição pesada na forma de trilhões para mitigar o colapso. Ou ainda, para os mais otimistas, deverá o Estado no médio prazo reorganizar as bases de um capitalismo que há muito tempo já não funcionava direito. Neste sentido, inclusive, não é mera coincidência que por aqui os militares brasileiros desejem sair na frente, querendo atropelar o ministro Guedes com o assim chamado “Plano Marshall” ou “Plano Pró-Brasil” de investimentos públicos para a retomada econômica…

O keynesianismo salvacionista e o mito da normalidade

Mas o que de fato significa esta ampla e eclética união de pessoas com comportamentos e posicionamentos políticos tão díspares? E ligado à questão anterior, estaríamos de novo vivendo em tempos efetivamente keynesianos? De um lado, temos os keynesianos de sempre que argumentam, sem esconder um orgulhoso triunfalismo, que finalmente teriam vencido a batalha das ideias.2 Nessa leitura dos fatos, aqueles que outrora o descartavam ou mesmo o repudiavam, estariam agora se curvando à maior justeza e inteligência das ideias de Lord Keynes. Claro que nessa chave de argumentação nem todos os antigos liberais que, virando a casaca, estariam de fato honestamente convencidos. Haveria também aqueles que, por mero oportunismo enganador ou por pura impotência diante da hecatombe imediata, seriam apenas provisoriamente keynesianos. Ou seja, haveria também os recém-convertidos que agora defendem a ação pesada do Estado, apenas para posteriormente voltarem com a cantilena de austeridade e da importância dos “fundamentos” macroeconômicos para quando tivermos o retorno das boas condições “sanitárias” da economia.
Todavia, o que sugerimos aqui é que reduzir a questão sobre possíveis “vencedores” e “perdedores” do debate intelectual está longe de ser um caminho profícuo para o entendimento das questões de fundo que estão em jogo. Nos explicamos. Aquilo que aparece na superfície como a volta do keynesianismo – seja nas medidas já adotadas como as que têm sido propostas de forma comum por economistas outrora inimigos – em essência diverge profundamente dos pressupostos históricos, políticos e institucionais que animaram as posições e propostas práticas vindas do próprio Keynes para reformular e melhor impulsionar o capitalismo. Estamos diante, portanto, de “keynesianismo”, que deve ser expresso entre aspas. Para além disso e mais importante, a questão de fundo aqui vai bem além da constatação de um flagrante anacronismo3 mas reside em esclarecer a funcionalidade concreta do que de forma enganosa tem-se chamado hoje de um retorno a Keynes. Afinal este último, ao seu tempo, propôs uma solução contínua para as crises baseada no ativismo e coordenação estatais, solução esta que viria a ser duradoura e factível no pós-guerra nos países centrais justamente porque ela andava de par com um amplo processo de reprodução ampliada e valorização dos capitais.4 Já o que hoje o que está em curso, como veremos, é muito mais uma tentativa desesperada de se “comprar tempo” (para falar como Wolfgang Streeck) que ganha grande semblante de legitimidade por se apresentar como única e inescapável saída para se preservar minimamente a renda e evitar ainda maior destruição. E não poderia ser diferente pois o que a covid-19 escancarou é uma crise profunda e perene do capitalismo que já era transmitida mundo afora muito antes do vírus. Aqui os “fatos estilizados” são as décadas de baixo crescimento e o estancamento dos investimentos produtivos de longo prazo, o que leva inclusive alguns (mas apenas alguns) economistas do antigo mainstream reconhecerem a vigência de uma “estagnação secular”. Já o que está muito longe de ser consensual é o fato de que em meio a crises conjunturais cada vez mais frequentes desde os anos 1970, se sobrepõe uma longeva crise estrutural cuja solução passa longe seja do voluntarismo estatal keynesiano, seja das decantadas virtudes da economia de mercado. E esse ponto é decisivo: nada mais falso do que a ideia de que estaria em curso meramente uma crise das diferentes maneiras de se tentar regular, estimular ou conduzir o capitalismo. A coisa é muito mais complicada, como voltaremos a abordar mais à frente, na medida em que a longa crise tem origem no próprio movimento do capital.
De imediato, a consequência disso é que a ideia de Keynes de que seria possível fomentar o bom desempenho da máquina capitalista através dos “controles centrais” (Keynes, 1992, p. 288) sobre o sistema econômico dá lugar a redobradas tentativas de se apagar incêndios e de se administrar de forma cada vez mais caótica as crises que se sucedem. Mesmo uma eventual vacina para a pandemia não poderá curar a doença sistêmica que decorre do fato de que não há qualquer perspectiva de uma retomada minimamente sustentável da valorização e da reprodução ampliada do capital. Soma-se a isto o fato de que agora, diferentemente da crise em 2008, não deve mais haver o impulso da economia chinesa que naquele período ajudou muito a contra-arrestar a queda global generalizada. Diante de tal cenário, como já vimos o prelúdio também quando da crise de 2008, exige-se muito e não pouco Estado. Mas aqui há uma diferença decisiva no sentido do que seria esse “muito Estado” de hoje em relação ao que ele fora antes na era efetivamente keynesiana.
Na assim chamada “era de ouro do capitalismo” – que diga-se de passagem só teve a aparência breve de algo efetivamente reluzente para uma reduzida parte da humanidade – houve até certo ponto um Estado planejador que “pelo alto” da pirâmide social atuava como sustentáculo do avanço da acumulação produtiva, no mesmo passo que a força de tal acumulação reforçava as próprias condições de arbitragem e atuação da parte desse mesmo Estado. Num quadro de expansão da valorização capitalista em que ainda havia uma forte demanda por trabalhadores, este mesmo Estado podia “por baixo” mediar nos países centrais a formação de sociedade salariais e uma integração relativamente favorável das populações nos circuitos de produção e consumo. Já o “mais Estado” de hoje, seria muito mais um Estado salvacionista que deve crise atrás de crise realizar “por cima” intervenções de emergência de forma a evitar a desvalorização e bancarrota dos capitais. Enquanto isso, “por baixo”, esse mesmo Estado deve administrar a devastação em curso no mundo do trabalho onde, inclusive nos países ricos, a tônica é a precarização crescente dos que estão dentro combinada com a superfluidade dos que estão fora. Daí que a “salvação” deve advir de uma combinação de crédito e políticas sociais que amenizem quando possível a absoluta ausência de assalariamento decente e estável com políticas cada vez mais repressivas e securitárias que busquem estabelecer o controle bio/necropolítico dos que não podem mais sob nenhuma forma serem integrados.
O acima dito não é de pouca monta. Pois é isso que ilumina efetivamente o motivo pelo qual hoje o “keynesianismo” ganha ares de mainstream e produz tal “unidade dos contrários” entre os economistas e políticos. Dizer que vivemos agora um estado de exceção é correto apenas parcialmente, pois é absolutamente questionável que a situação anterior do mundo já não fosse de exceção, sobretudo para o “andar de baixo”.5 A novidade se encontra no reconhecimento oficial, institucional e governamental de um estado de exceção que teve de ser autoimposto pelos próprios Estados nacionais, não sem relutação inicial aqui e acolá. Reconhecimento este que, mesmo que possa ainda ferir as suscetibilidades de certos fanáticos do “livre-mercado”, é a condição sine qua non da continuidade da máquina capitalista. Esta, atolada em incertezas sanitárias e econômicas pode fazer que a previsão de Cristina Lagarde, do FMI, de queda em 15% do PIB europeu, ou ainda que a previsão da OMC de queda de 32% no comércio mundial se mostrem talvez perspectivas até otimistas.
Se qualquer aparência de normalidade e previsibilidade se torna insustentável, mesmo como retórica ardilosa e hipócrita, o que resta apenas como carta na manga é a máxima salvacionista de Keynes, esta sim absolutamente atual, de que é preciso “salvar o capitalismo dos capitalistas”. E como o remédio estatal obrigatoriamente há de ser muito maior e prolongado do que quando da crise de 2008, é infinitamente melhor que se assuma de vez e sem ambiguidades a necessidade do keynesianismo de salvação do que deixar que o naufrágio corra solto em nome de outras ideias já muito desbotadas. Ou seja, neste ponto, pode-se dizer que Keynes estava errado em dizer que, ao fim ao cabo, são as ideias que sempre em última instância nos governam: as ideias se tornam secundárias diante do consenso em torno de um fatalismo curto-prazista imposto pelas circunstâncias. Por isso mesmo, a já referida noção de uma vitória intelectual dos keynesianos é falsa ou na melhor das hipóteses dúbia: de um lado, de fato há sim o reconhecimento forçado da necessidade de forte intervenção do Estado no sistema econômico, mas por outro lado tal intervenção concretamente só pode ser uma gestão caótica e disruptiva sobre uma massa falida. E aqui, mais uma vez, nos deparamos com outra flagrante fratura com o mundo pensado pelo próprio Keynes. Este último acreditava que uma combinação adequada de razão, valores corretos e instituições adequadas bastaria para evitar as crises e o desmoronamento da civilização capitalista.6 Mas a utopia de Keynes, que pareceu factível apenas no curto interregno dos “trinta anos gloriosos” do pós-guerra nos países ricos – a saber a utopia de um capitalismo estável e que também poderia combinar uma relativa justiça social com um pujante desempenho econômico –, torna-se hoje nada menos que uma quimera.
Justamente o paradoxo da situação atual é que o reconhecimento da sua excepcionalidade de forma alguma tem implicado o reconhecimento sério e consequente de algo que deveria ser o ponto de partida de qualquer análise: não haverá qualquer volta futura da “normalidade” econômica. Pegando como exemplo o breve relatório mais recente do FMI (2020), contamos dez vezes em que a ideia de volta ao “normal” ou à “normalidade” é citada. Já de nossa parte pensamos que o mais correto é dizer que a anormalidade virou regra, não apenas porque já não se vivia a normalidade antes, como também pelo fato de que o pós-pandemia tende a aprofundar os antagonismos já postos.
Os mesmos remédios de contenção que hoje são exaltados como imprescindíveis só podem recolocar e acelerar mais à frente a dinâmica cega e infindável da produção pela produção, de acumulação pela acumulação – dinâmica que diga-se de passagem não é jamais questionada nem por keynesianos e nem por liberais –, que não apenas é insustentável econômica e socialmente, como também é produtora de mais destruição ambiental e do aumento do risco de novas pandemias. Daí que se desnuda outro consenso, este mais tácito e implícito, a saber, de que após a crise é possível vislumbrar um “novo normal”: gerar empregos, crescimento, prosperidade, integração do conjunto das populações nos fluxos econômicos, etc. Claro que, no que diz respeito às formas pelas quais pode ser ensejado esse novo impulso, rompe-se o consenso e as antigas diferenças reaparecem com força. Mas, apesar disso, essas diferentes rotas para o futuro, sugerindo como meios seja um maior ou seja um menor controle e coordenação estatal sobre o sistema econômico, seguem o mesmo trilho sem futuro como fim: a retórica tão persistente quanto anacrônica do progresso e do desenvolvimento.
Evidentemente, não se pretende dizer que o que predomina entre os economistas em geral seja meramente a ignorância quanto à impossibilidade de uma volta à “normalidade”. A questão é mais complexa posto que reside na sublimação do fato de que são os limites – externos e internos – do próprio do capital que inviabilizam hoje os pressupostos de uma ciência que em suas diferentes roupagens não pode prescindir da possibilidade de uma expansão e evolução incessantes do sistema econômico. E ao vislumbrar um futuro onde ele não mais existe, não há outra alternativa que não – implícita ou explicitamente – a recaída no mito da normalidade.

Eutanásia planejada do rentista ou autodestruição suicida do capital?

A explicitação dos limites hodiernos do capital pode também ser proficuamente abordada partindo-se de outro tema também caro a Keynes. Este último, mesmo se também apontasse para a necessidade de políticas monetárias para sustentar a atividade produtiva diante de um capitalismo errático em si mesmo, não deixava de apontar para a centralidade e maior relevância das políticas fiscais. Ora, o que se observa com inaudita intensidade nos últimos tempos e que chega às raias do absurdo agora com a crise da covid-19 em 2020 é a mobilização gigantesca de instrumentos monetários diversos para se evitar um maior colapso – emissão de dinheiro, compras massivas de títulos públicos e privados, crédito farto, garantia de provimento de liquidez etc. Se é verdade que também os instrumentos fiscais também são utilizados com peso agora, por outro lado, é nítido que eles tendem, assim como em 2008, a serem ultrapassados em abrangência e volume pelos instrumentos monetários, denotando uma hierarquia de políticas efetivamente aplicadas pelos países oposta à aquela sugerida por Keynes.
Ora, isso denota uma mudança de fundo que restringe sobremaneira a capacidade de domar racionalmente o sistema econômico aventada por Keynes. Com a ruptura de qualquer relação do dinheiro com o ouro a partir da decisão unilateral de Nixon em 1971 de fim da conversibilidade do dólar, criaram-se as bases estruturais para a expansão e garantia de salvamento dos capitais fictícios pelo Estado, bases sem as quais o afundamento sistêmico já teria sido muito mais agudo. Pois o que temos já há tempos é um capitalismo perenemente movido pelo capital fictício, o que enseja por sua vez uma tentativa permanente de inflação de ativos como forma de contra-arrestar a fraqueza da acumulação produtiva e do “espírito animal” empresarial keynesiano. Destarte, a expansão gigantesca do crédito e a valorização artificial dos mais diferentes dos diferentes papéis de propriedade são os verdadeiros motores sistêmicos contemporâneos, com toda instabilidade que isso implica. Os breves e restritos impulsos recentes da atividade produtiva na verdade acabam por ser movidos por tal desmesura fictícia de capital e não o contrário como em outras épocas da história do capitalismo.7
Assim, a ideia desde sempre nada crível de que seria possível separar um capitalismo “bom” e produtivista de um capitalismo “mau”, rentista e financista, hoje é ainda mais absurda. Como diz Chesnais (2017b, p. 2), “a financeirização é a consequência e não a causa do bloqueio da acumulação”. O ativismo monetário crescente e as correspondentes bolhas financeiras deste século, notadamente a partir da resposta do FED de Alan Greenspan à crise da Nasdaq em 2000, são o corolário da necessidade imperiosa de se sustentar a hipertrofia financeira como o verdadeiro modus operandi sistêmico. Não por outros motivos todo o debate sobre regulamentação do sistema financeiro vem se arrastando há tanto tempo e nada indica que muito mais do que medidas cosméticas possam ser tomadas nessa seara. Este ambiente de extrema fragilidade é o que está por trás de intervenções de última instância e cada vez mais ousadas dos Bancos Centrais, bem como do aparente paradoxo da manutenção constante de taxas de juros extremamente baixas ou mesmo negativas. A socialização das perdas e a garantia de intervenções massivas de proteção por parte das autoridades monetárias como vemos agora em 2020 são a pré-condição para se evitar o desmonte das pirâmides de dívidas interligadas, bem como para se evitar uma brusca desvalorização dos ativos que sustentam toda a arquitetura capitalista.
A justiça aqui exige dizer que Keynes anteviu com muita perspicácia ao seu tempo a possibilidade de algo como o cenário atual:
“Os especuladores podem não causar dano quando são apenas bolhas num fluxo constante de empreendimento; mas a situação torna-se séria quando o empreendimento se converte em bolhas no turbilhão especulativo. Quando o desenvolvimento do capital em um país se converte em subproduto das atividades de um cassino, o trabalho tende a ser malfeito”
(Keynes, 1992, p. 168).
Por outro lado, era estranha a Keynes a ideia de que essa subordinação do capitalismo à lógica de um cassino poderia ser algo permanente e irreversível como hoje. Ao contrário, Keynes se esmerava na realização de um capitalismo em que as paixões destrutivas do “amor ao dinheiro”8 fossem contidas através de uma paulatina “eutanásia do rentista”. Tal eutanásia consistia na eventualidade de uma situação em que, a partir de estímulos e cuidados racionais do Estado, haveria um tal aumento do estoque de capital frente às necessidades sociais que faria com que a demanda por novos investimentos fosse extremamente baixa. Como tal hipotética situação acabaria com a escassez do capital, a remuneração pela sua mera posse (a taxa de juros) tenderia a zero, minando assim as bases do rentismo. Tal utopia de Keynes, cuja inspiração remonta ao seu admirado John Stuart Mill, consistia na transformação do capitalismo em um sistema totalmente voltado à satisfação de um consumo abundante das sociedades, uma espécie de estado estacionário benfazejo em que não haveria mais a necessidade frenética de acumulação de bens de capital para a produção de consumo futuro, assim como toda a renda seria canalizada para os agentes efetivamente “produtivos” (trabalhadores e empresários) na medida em que sumiria a figura do rentista ocioso.
Deixemos de lado aqui a crítica de que é impossível a existência de um capitalismo baseado na mera “reprodução simples” das necessidades de consumo, posto que o capital justamente não é feito para atender “necessidades sociais”, mas sim para seguir seu movimento tautológico de reprodução ampliada em que a valorização do valor é único objetivo a ser perseguido. Ora, se de um lado nos deparamos hoje com um rebaixamento progressivo das taxas de juros, isso não tem em absoluto a ver com uma afinal bem sucedida “eutanásia planejada” do rentismo. Justo ao contrário, o que se observa é uma ampliação em escala como em escopo do rentismo. Pois para além do fato de tal tendência à zeragem atual das taxas básicas de juros não se dar forma homogênea para os diferentes agentes econômicos em função de avaliações de risco e spreads ainda muito diferenciados, mesmo uma taxa de juros bem reduzida deve agora remunerar um estoque crescente de dívidas públicas e privadas. Mais ainda, o “amor ao dinheiro” que não se aventura diretamente na produção de mercadorias hoje não é correspondido apenas através da remuneração na forma de juros pela cessão da mera posse de capital monetário, mas também é enormemente correspondido pelos ganhos de capital obtidos com o aumento artificial do próprio preço dos ativos em questão (ações, títulos de longo prazo, imóveis, etc.) endossados pelos juros no chão e pelos quantitative easing virando rotina.9
Tal novo ordenamento, para usar de novo a terminologia de Streeck, trata-se por certo de se “comprar tempo” com a injeção de dinheiro e crédito. Mais importante ainda, trata-se de uma tentativa de adiantar o futuro, isto é, de sustentar um tipo de capitalismo que busca através de uma montanha crescente de capital fictício antecipar ao máximo a acumulação presente de dinheiro, tendo como lastro um processo de criação real de valor futuro que pode nunca vir a ocorrer. Trata-se, portanto, de um gigantesco processo de simulação da valorização capitalista que vem tentar substituir a escassez da própria substância do capital: o valor. Longe de uma gradativa anulação do rentismo e do “amor ao dinheiro” de Keynes, temos ao contrário como condição de sobrevivência do próprio modo de produção capitalista a radicalização de um lógica em que o capital tende a se autonomizar de si mesmo, pleiteando a sua auto-expansão sem passar pelas vicissitudes do processo de extração de mais-valor através da exploração do trabalho vivo. Daí que uma crítica à ortodoxia econômica que tem ressurgido nesses tempos com a defesa dos poderes quase ilimitados do Estado de instituir e manipular a criação de símbolos monetários, como por exemplo nos debates em torno da Modern Monetary Theory, elide o principal, a saber, que a criação de “dinheiro sem valor” na expressão de Robert Kurz não apenas não pode suspender a contradição de fundo do capitalismo desde século XXI como, ao contrário, é produto direto dessa mesma contradição.10
Contradição em processo, como dizia Marx11, que faz com que antinomia entre valor de uso e valor já presente na forma mais simples de mercadoria seja elevada à enésima potência hoje. Segue em marcha a tendência suicidária do próprio capital que mina as bases sobre as quais ele mesmo se assenta. Mais precisamente, é o próprio desenvolvimento histórico da produção capitalista que faz com que ao mesmo tempo que o trabalho vivo se torne cada vez mais obsoleto para a produção de riqueza material, esta mesma produção só pode ter sentido na medida em que permita a expansão do mais-valor que depende desse mesmo trabalho vivo. A partir das transformações técnicas impostas pela concorrência que impõem cada vez mais automação e racionalização do processo produtivo, o capital tende então expulsar cada vez mais trabalho produtor de valor solapando assim a base de sem a qual não pode seguir seu movimento de expansão.
O sentido mais profundo e incontornável da crise em curso, portanto, reside no fato de que o ímpeto incessante da valorização do valor tem tornado cada vez mais obsoleta e restrita a própria fonte da valorização, ao mesmo tempo em que todo o metabolismo social precisa ainda obrigatoriamente passar pelo filtro dos critérios abstratos-quantitativos desse mesmo valor. Instaura-se, portanto, uma verdadeira corrida contra o tempo, em que se busca acelerar o presente de forma alucinada através de mecanismos de compensação que buscam em vão compensar a ausência completa de um horizonte de futuro12. Mecanismos presentistas estes, em que se enquadram não apenas a assim chamada financeirização sem fim como também a selvageria neoliberal travestida de “empreendedorismo” e “valorização do capital humano” no funil cada vez mais apertado do mercado de trabalho, assim como o crescimento de variadas práticas de “acumulação por despossessão”13 em que o capital, diante do bloqueio de seu processo autogerado de reprodução ampliada e valorização, se esmera em se apropriar e monopolizar diferentes fontes de renda futura externas a si mesmo. Já os Estados nacionais, que não podem jamais por si mesmos criar valor de forma a promover a volta de uma acumulação “normal” de capital, vão se tornando cada vez mais os organizadores e fiadores desses mecanismos devoradores do presente.
Daí o veredito: é precisamente tal tendência fetichista e autodestrutiva do capital como “sujeito automático” que elimina a sua própria substância o fator que também erodiu para sempre a própria “substância” dos arranjos econômicos e sociais efetivamente keynesianos. Pois quando, para usar de novo uma formulação de Chesnais (2017), é o próprio capital que encontra limites intransponíveis “à medida que a penúria de mais-valia se enraíza, se torna estrutural, não há mais qualquer plausibilidade para os antigos horizontes keynesianos de um processo racionalmente organizado de expansão da acumulação produtiva e de integração salarial das populações. E é precisamente por isso que, justo ao contrário do que esperava Keynes, a incapacidade econômica do capital em produzir mais valor redobra o afã para que ele se afirme cada vez mais como puro direito jurídico de propriedade, reforçando o rentismo em lugar de eliminá-lo. Por isso mesmo, aquilo que fora o cerne do keynesianismo como uma visão de mundo histórica só pode hoje consistir em pura aparência cujo conteúdo é o inverso do que se advoga. A antiga capacidade keynesiana de plasmar, moldar e conduzir as relações econômicas numa perspectiva ascensional, dá lugar hoje a um processo de descida ladeira abaixo em que aquilo que aparenta ser a ação autônoma e discricionária do Estado no fundo nada mais é que sua arraigada heteronomia e descontrole. Assim, o Estado atua tão somente como um bombeiro diante de um incêndio em constante expansão.

Incêndio em expansão

Pois mesmo que hoje qualquer cenário prospectivo esteja marcado por profunda incerteza, as perspectivas do que vem a ser o pós-pandemia sugerem um incêndio econômico, social e político certamente ainda mais alargado. A própria ideia que vem à tona de que o neoliberalismo seria o grande derrotado na atual situação é precipitada, para dizer o mínimo. Se entendermos o neoliberalismo, não como uma mera política ou orientação de política econômica, mas sim em linha com Pierre Dardot e Christian Laval (A nova razão do mundo) como uma racionalidade que governa os sujeitos pelo princípio da concorrência, nada autoriza que teremos mais à frente o seu fim. O contrário disso é bem mais provável, se pensarmos o neoliberalismo como a própria forma de sociabilidade de um capitalismo em crise. É de se prever, assim, o reforço de dispositivos cada vez mais duros de seleção e de exclusão (principalmente de exclusão) das pessoas como consequência de uma reprodução social que tende a tornar cada vez mais supérfluos e descartáveis os seres humanos.
Aliás, um dos efeitos já visíveis da pandemia mundo afora é a intensificação da substituição de trabalhadores por robôs e a aceleração da introdução de mecanismos ligados à indústria 4.0, não sem a alegação de “responsabilidade sanitária” de que isso vai de acordo com o desejo generalizado de empregados e consumidores de isolamento social.14 Ao mesmo tempo, o cenário atual pode servir como fonte de maior legitimação do casamento já em curso entre neoliberalismo e autoritarismo, na medida que se reforçam as práticas de controle, vigilância e punição que agora podem ser justificadas não mais contra um inimigo distante (como fora no caso da “guerra às drogas” ou do terrorismo), mas sim diante de um vírus que potencialmente está em todos e todas. Em suma, o neoliberalismo que, ao contrário do que se pensa, sempre atuou em sintonia e dependeu dos Estados Nacionais, não apenas tende a continuar bem vivo no pós-covid-19 como tende a salientar ainda mais o seu componente punitivo, aproveitando-se do cenário de maior culto à segurança e do processo de agravamento da crise social que se desenrola.
Aliás, diga-se de passagem, os gastos com armas e tecnologias de segurança, que como alertou Ellen Wood (2014) têm crescido enormemente após o fim da guerra fria ao contrário do que diziam os apologetas das economias de mercado quando da queda do Muro de Berlim, persistem hoje como promissora frente de expansão de investimentos coordenados entre governos e grandes empresas. Tal como na época do “keynesianismo realmente existente” do pós-guerra em que por trás da prosperidade dos países ricos estava o impulso que transformou o mundo numa literal bomba-relógio com o crescimento do complexo militar-industrial estadunidense15, a mesma sina apocalíptica continua em andamento e de vento em popa, como atestam as recentes provocações nucleares entre Putin e Trump. A sustentação da demanda efetiva que em tese para Keynes poderia depender de dispositivos inofensivos como “cavar buracos no chão” (Keynes, 1992, p. 173) ou a “construção de pirâmides” (idem, p.111) nos fatos tem se escorado na produção de valores de uso muito mais perigosos.
Ademais, voltando mais uma vez ao tema mais diretamente “econômico”, é preciso ver que as políticas de austeridade ora suspensas com as medidas de combate econômico à crise não estão exatamente em oposição ao agora dominante keynesianismo salvacionista. Ou, melhor dizendo, a própria administração da crise em curso, a própria necessidade de se “comprar tempo”, exigem diferentes combinações no tempo e no espaço de medidas por vezes austeras e de medidas por vezes expansionistas. Tal contradição, longe de ser fruto de uma mera confusão ideológica, é a contradição – sem possibilidade de qualquer síntese que a supere – do próprio objeto que se pretende fazer continuar funcionando: o capital. Pois se hoje a austeridade é esquecida nos fatos, nem por isso é correto dizer que o ativismo e gastos estatais continuarão dando o tom daqui para frente. Daqui em diante persistirá ainda com mais força a pressão para que os Estados “abram espaço” para os dispositivos de acumulação por despossessão cada vez mais dominantes hoje em dia: privatizações, concessões, assim como transferências de atividades estatais, previdência e serviços públicos para o setor privado.
Ao mesmo tempo, a debilidade congênita da atividade econômica mina a capacidade arrecadatória dos governos pressionando por aumentos em suas dívidas. E, mesmo que a conjuntura atual tenha forçado um enorme aumento das dívidas públicas que era considerado impossível antes pelos campeões da austeridade, nem por isso é lícito crer que o endividamento estatal crescente pode ser continuado ad infinitum sem maiores consequências. Se o endividamento público é uma forma de “comprar tempo” nem por isso deixa de ser colocada a questão de quanto tempo afinal poderá ser comprado. Afinal, diante da arquitetura extremamente frágil do capital fictício que circula pelo mundo, os títulos públicos são tidos como último “porto seguro” da riqueza financeira. Aliás, porto nem tão seguro assim, tendo em vista que quando da eclosão do pânico financeiro em meados de março deste ano o FED se viu logo constrangido a sustentar a liquidez de agentes que não estavam conseguindo sequer vender os próprios títulos americanos. Por isso mesmo, tem-se a manutenção de arraigada esquizofrenia que oscila ora entre a exigência de se abrir os cofres salvando os mercados, e ora com a exigência de se insistir com a austeridade. Para além disso, não se pode esquecer que a necessidade de se continuar concedendo isenções e subvenções fiscais ao capital diante de uma concorrência global ainda mais encarniçada também conspira a favor da manutenção de uma austeridade elitista em detrimento de gastos sociais.
E aqui chegamos também num outro dilema das relações internacionais decorrente da crise pandêmica. A pirataria nacionalista em torno da caça de equipamentos de proteção e tratamento da doença que envolveu Estados Unidos, Europa e China é a expressão cristalina que estamos a anos-luz da perspectiva de qualquer coordenação internacional. Lembremos que para Keynes, a coordenação internacional era a condição primária para que os governos pudessem efetivar políticas domésticas. Ao mesmo tempo, uma eventual renacionalização de cadeias produtivas ou “desglobalização” que tem sido aventada recentemente, não significa nem de longe que estaríamos de volta a um fechamento dos capitais em torno de seus espaços econômicos nacionais de origem. O nível de entrelaçamento econômico global do capitalismo não autoriza tal marcha à ré na história. Na realidade, o que poderia acontecer é muito mais um recuo para dentro das fronteiras apoiado pelos Estados com o objetivo de melhor enfrentar a guerra da concorrência global, sobretudo entre EUA e China. Assim, a “desglobalização” seria, na realidade, um passo atrás para se dar dois passos à frente no caráter predatório da globalização, com consequências extremamente deletérias para países periféricos. Pois como salienta alguém que está longe de ser um crítico do capitalismo, Nouriel Roubini (2020), este processo tende a incrementar a destruição de postos de trabalho em países para onde a produção fora antes deslocalizada, com a subsequente centralização nos países de origem de atividades cada vez mais sofisticadas e automatizadas que geram, por sua vez, pouquíssimos empregos.

No curto prazo todos estaremos mortos

A famosa frase de Keynes de que no “longo prazo todos estaremos mortos”, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não significava em absoluto que ele fosse autor desinteressado do futuro (Dostaler, 2007, p. 154). O que Keynes de fato queria dizer era que, caso os controles adequados fossem adotados no curto prazo, seria possível antever no futuro a abundância econômica e o bem-estar generalizado das populações. Aliás, a preocupação de Keynes com o longo prazo é patente em vários textos, como por exemplo em seu conhecido “Perspectivas econômicas para nossos netos”. Ligado a isso está o fato de que, dos economistas importantes, Keynes provavelmente tenha sido o que mais se preocupou com a política como arena de entendimento para a construção de consensos duradouros. Ele era, por excelência, o homem da persuasão, do convencimento, das negociações, que buscava construir alicerces permanentes de sustentação da civilização burguesa, a qual ele nunca negou ser a sua. É sintomático que justamente nos dois momentos mais críticos em que tal civilização esteve ameaçada nas duas grandes guerras, Keynes tenha emergido como o arauto de propostas políticas de longa duração e amplitude, ao contrário de limitar-se a um “curto prazismo” pragmático que se atribui equivocadamente a ele.16
Daí que seja forçoso constatar então que se hoje a perspectiva de futuro dá lugar a uma gerência cada vez mais estreita do presente, isto é, se a política é cada vez mais reduzida a um “no curto prazo todos estaremos mortos”, é a própria política no sentido que o próprio Keynes pensara que se esvazia. O keynesianismo salvacionista, ironicamente, não deixa de ser também a negação da política no sentido original forte keynesiano. Assim, a questão zero que deveria se colocar ao debate econômico seria justamente o como se deve fugir deste beco sem saída. Evidentemente, não se trata niilisticamente de rechaçar tout court medidas que o Estado deve tomar diante da pandemia, e menos ainda de deixar de combater para que elas sejam pautadas dentro de um espírito de mínima equidade social. Mas tampouco é uma postura séria deixar de ver que se não é este o momento que deve suscitar um amplo debate no sentido de uma revisão e superação de todas os pressupostos das formas de vida e as relações sociais que geraram a atual hecatombe, melhor seria então entregar os pontos de vez. Nesse sentido, é plenamente dotado de sentido o chamado de Latour (2020) para que agora, e não num futuro remoto, nos debrucemos para pensar e agir em prol de outras formas de produzir e de se consumir que apontem para além dos imperativos econômicos vigentes. Também é deveras pertinente a constatação de Latour de que “após cem anos de um socialismo que se limitou a pensar a redistribuição dos benefícios da economia, talvez seja o momento de inventar um socialismo que conteste a própria produção. Como exercício de tal invenção, o conjunto de perguntas que Latour elenca ao final de seu artigo poderia ser um rico ponto de partida para se iniciar o debate.
Acrescentamos ainda que tais imperativos econômicos devem ser confrontados, pois que são a grande ameaça para a humanidade, na medida em que anulam e se sobrepõem como um poder cego e inconsciente a todas as necessidades humanas de uma vida boa e conscientemente determinada. Ou, dito de outra forma, tais imperativos, que via de regra a ciência econômica ainda tem como a sua própria “normalidade” epistemológica, selecionam como critério de viabilidade social concreta apenas aquelas atividades que passem pelo crivo cada vez mais exigente e destrutivo da rentabilidade monetária abstrata do capital. Na boa fórmula de Moishe Postone (2017), o grande desafio deste século XXI é nos defrontarmos com o que ele chama de “anacronismo do valor”, a saber, fazer com que todo potencial de atividade humana constituído de forma alienada ao longo da modernidade capitalista possa ser reapropriado de fato pelas pessoas, deixando assim de ser pautado pela lógica impessoal de dominação social imposta pela forma valor, forma esta cada vez mais obsoleta. O que está na ordem do dia, portanto, é como instituir a perspectiva do Comum, de uma organização e reapropriação da vida que parta diretamente das próprias pessoas e suas necessidades, suplantando o atomismo que mantém a guerra de todos contra todos e que faz com que o próprio conceito de sociedade perca cada vez mais o sentido.
Alguém poderia contra-argumentar que tudo isso é utópico. Pode ser. Mas em tempos como os atuais, o realismo precisa ser utópico e, partindo dos movimentos e lutas sociais em curso, pensar alternativas que alarguem nossa imaginação muito além de uma já impossível “normalidade”. E se tomarmos a sério o enfrentamento dos pressupostos da catástrofe de nosso tempo, o que se propõe aqui é de certo bem mais realista do que falso realismo supostamente “pragmático” das visões de mundo liberais, keynesianas ou desenvolvimentistas que ainda se busca repaginar. E com uma vantagem decisiva, a saber, a de encarar de frente a dicotomia atualmente tão discutida entre economia e vida, dicotomia esta que tem sido discutida muitas vezes de forma equivocada e unilateral a nosso ver. Quando aqueles que querem acelerar o trilho da barbárie diante da pandemia afirmam que “preservar as economias implica aceitar perdas de vida”, a despeito do caráter assassino e eugenista de tal proposição, ela não deixa de expressar de forma distorcida uma “verdade”: sim, a lógica econômica de nossas sociedades é cada vez mais a aceleração de um processo crescentemente hostil à vida.
A força da extrema-direita hoje se deve muito ao fato dela dar forma e voz para o ressentimento e a pulsão de morte que se desprendem da realidade econômica demolidora de nossas sociedades. Daí que, independentemente de nossas boas intenções, a ideia de que se pode reafirmar a vida sem a transcendência da lógica econômica em si – isto é sem colocar em cheque o movimento que faz da vida mero objeto do capital que permanece como o verdadeiro sujeito –, estaremos sendo na melhor das hipóteses voluntaristas (e muito mais do que Keynes já fora ao seu tempo) e na pior delas estaremos alimentando, à despeito de nossas vontades subjetivas, o fim de linha que já está em curso. Que se suplante então as verdadeiras causas que conspiram para que no curto prazo todos estejamos mortos.

Notas
1 Keynes rechaçava o “absolutismo dos contratos” (1972, p. 56), isto é, a ideia de que dívidas e contratos financeiros fossem considerados sagrados e não pudessem ser revisados nem mesmo em situações excepcionais.
2 E aqui eles seguem a assertiva de Keynes que fecha sua Teoria Geral e que afirma serem as ideias mais poderosas que os meros interesses: “Mas, à parte esta disposição de espírito peculiar à época, as idéias dos economistas e dos filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, têm mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homens objetivos que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto. Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás. Estou convencido de que a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a firme penetração das idéias. […] Cedo ou tarde, são as idéias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.” (KEYNES, 1992, p. 291).
3 Que fique claro que o anacronismo ao qual nos referimos não se refere à boa parte das análises de Keynes e dos economistas por ele influenciados para pensarmos o funcionamento do capitalismo contemporâneo. Neste plano há sem dúvida contribuições úteis e importantes. Já o que consideramos sem dúvida totalmente anacrônico é todo o arcabouço keynesiano de propostas para se domar e ordenar tal capitalismo nos dias de hoje. O que ficou para trás na história é o keynesianismo como “visão de mundo” que contemplava uma dada configuração não apenas econômica, mas também política, social e mesmo cultural do capitalismo. Em outras palavras, se temos reflexões informadas por Keynes que podem seguir sendo válidas, a ideia de uma “nova era keynesiana” é fantasiosa, mesmo que se busque propor atualizações e reformulações em relação ao que foi a antiga era keynesiana.
4 Sobre as condições particulares e os limites da era keynesiana do pós-guerra, persiste como fundamental o trabalho de Mattick (1978)
5 Sobre isto ver Menegat (2020)
6 Keynes reiteradamente afirmava tal confiança, como por exemplo, quando criticava os que “enormemente superestimam a significância do problema econômico. O problema econômico não é difícil de resolver. Se você o deixar comigo, eu cuidarei dele” (Keynes apud Dostaler, p.93).
7 Ver sobre isso a ideia de um “capitalismo invertido” em Lohoff e Trenkle (2014) em que os autores apontam para o papel condutor e não meramente reativo do capital fictício em relação ao movimento da produção, ou ainda Brenner (2003) com sua argumentação sobre um “keynesianismo do mercado de ações” como decisivo para a economia estadunidense.<
8 Keynes criticava os excessos do individualismo eixado na exagerada paixão pelo dinheiro e o considerava uma séria ameaça à própria à manutenção da própria sociedade moderna baseada no indivíduo e sua propriedade privada. Ver, entre outros, Keynes (1978a)
9 Ver, por exemplo, Rogoff (2020) e sua proposta da manutenção por quanto tempo for necessário de taxas de juros nominais largamente negativas para se tentar reanimar a produção e para preservar também o valor de dívidas e títulos financeiros.
10 Longe de ser um mero símbolo das trocas, como quer a teoria econômica ortodoxa, ou uma convenção estatal manipulável, como defendem muitos economistas heterodoxos, o dinheiro no capitalismo é o meio e o fim do único elo possível em uma sociabilidade fragmentada, baseada em decisões privadas e não-coordenadas. E esta sociabilidade não tem como base a mera posse de dinheiro como tesouro, nem tampouco sua utilização para satisfazer o consumo. Em última análise, trata-se de uma sociabilidade estruturalmente antagônica e dominada pelo movimento incessante que deve fazer de uma dada quantidade de dinheiro, mais dinheiro, isto é, o movimento que deve fazer do dinheiro, capital. Por isso, mesmo que a emissão de moeda para gastos públicos e transferências possam ajudar a minorar os efeitos sociais e econômicos de uma crise como a atual, é absolutamente ilusório que isso consista em qualquer solução duradoura para os dilemas postos. A coordenação e manipulação pela sociedade do dinheiro não pode abolir a dinâmica fetichista do capital que faz com que, em seguida, seja o próprio movimento do dinheiro que volte a coordenar e manipular a sociedade.
11 “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza.” Karl Marx, Grundrisse (São Paulo, Boitempo, 2012), p. 28.
12 Ver Paulo Arantes, O novo tempo do mundo (São Paulo: Boitempo, 2014).
13 Usamos este útil conceito, mas de uma forma que talvez não corresponda exatamente ao sentido dado por seu autor original, David Harvey (2010). Cremos, que, para maior clareza, a acumulação por despossessão deve ser contraposta conceitualmente à acumulação “normal” por assim dizer, isto é, a reprodução ampliada do capital. Enquanto nesta última o capital se repõe a partir de si, isto é, a partir do movimento de sua própria lógica interna, na acumulação por despossessão o capital buscará se externalizar, isto é, tomar para si recursos e novas fontes de acumulação até então não possuídas por ele. Assim, para além dos dispositivos da acumulação primitiva de capital descritos por Marx, o conceito contemporâneo de Harvey deve ser alargado com outros dispositivos como propriedade intelectual, privatizações, concessão de atividades antes controladas pelo setor público ao setor privado, expansão da renda oriunda da terra, imóveis e recursos naturais, subsídios e isenções fiscais, corrupção, etc. Discordamos de Harvey na medida em ele parece equiparar de forma direta o processo de financeirização aos dispositivos de despossessão. Em si e por si, o capital financeiro se desdobra da divisão funcional interna ao capital em que parte do mais-valor gerada pela reprodução ampliada se transfigura na forma de juros. Por outro lado, é certo que a financeirização alimenta novas formas de despossesão como aquisições de empresas no mercado de capitais, drenagem de juros do Estado e das famílias, expansão das diferentes formas de renda, tomada de ativos a partir de inadimplência de crédito, etc.
14 Ver sobre este tema, BBC (2020)
15 Ver sobre isso Anders (2013) e Marcuse (2015)
16 Sobre as propostas de Keynes para reconstrução da ordem capitalista na sequência da Primeira e Segunda Guerra Mundial, respectivamente, ver Keynes (2002) e Keynes (1978b).
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sexta-feira, 29 de maio de 2020

ALERTA

«Muitos analistas esperavam que a crise financeira de 2008 marcasse o fim do neoliberalismo. Em vez disso, vimos uma onda de privatizações e austeridade nos serviços públicos. Hoje, as forças mais bem posicionadas para explorar a pandemia do coronavírus ainda são as que já têm poder: neoliberais, conservadores e milionários que moldam a agenda política económica há décadas.»
ler in Jacobin Brasil

Judith Butler, filósofa, sobre a Covid-19: ‘O capitalismo tem seus limites’

« (...) A proposta ( de Bernie Sanders e Elizabeth Warren ) de uma saúde pública e universal revigorou um imaginário socialista nos EUA – um imaginário que agora precisa esperar para poder se realizar como uma política social e como compromisso público neste país. Infelizmente, na era da pandemia, nenhum de nós pode esperar. É preciso agora que se mantenha vivo esse ideal nos movimentos sociais ancorados menos na campanha presidencial do que na luta de longo prazo que temos pela frente. Essas visões corajosas e apaixonadas, ridicularizadas e rejeitadas por “realistas” capitalistas, já tiveram destaque suficiente na mídia, já mobilizaram atenção o bastante, para deixar cada vez mais pessoas – algumas pela primeira vez – desejando um mundo transformado.
Com sorte, conseguiremos manter vivo esse desejo.»
in IHU, blog, Brasil. E in Boitempo blog

Os limites das políticas otimistas e pessimistas na crise do Covid-19 ou o “duelo” Slavoj Zizek vs Byung Chul Han. Artigo de Erick Kayser

16 Abril 2020
Na atual emergência do coronavírus, já temos exemplos nestas duas direções: por um lado, vemos ganhar força o discurso da solidariedade, com práticas de associativismo espontâneas, assim como um reforço ao papel do bem público e comum. Noutra direção, a crise surgiu como oportunidade para surgirem os Coronagolpes – como no caso da Hungria e de Israel –, onde a “guerra médica” é utilizada como pretexto para suprimir a democracia e estabelecer um fechamento do regime político", escreve Erick Kayser, mestre e doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Eis o artigo.


Poucos dias atrás, um “duelo filosófico”, de forma incomum, ganhou repercussão nas redes, chegando a figurar no sábado (11/04), por alguns momentos, entre os assuntos mais comentados do Twitter. O debate colocava os filósofos Slavoj Zizek e Byung Chul Han frente a frente acerca dos seus principais pontos de suas análises sobre a pandemia do coronavírus. Para além das diferenças entre o filósofo esloveno e o sul-coreano, esta polêmica virtual e (quase) “irreal” – já que ambos possivelmente sequer souberam que ela ocorreu – é um interessante caso que permite trazer à tona uma diferença de fundo, com significativas implicações, onde se opõem, grosso modo, uma perspectiva política otimista versus uma pessimista quanto os efeitos e possíveis desdobramentos da crise do vírus Covid-19.

Se é verdade que a urgência dos acontecimentos envolve a todos nós, cabe expor brevemente as posições de Zizek e Han sobre a crise do Covid-19. Seus artigos foram recentemente publicados na compilação Sopa de Wuhan – Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemia (e-book disponível gratuitamente), que reúne mais de uma dezena de autores renomados, publicado em língua espanhola pela Pablo Amadeo Editorial. Felizmente, tanto o texto de Zizek quanto o de Han já foram traduzidos e estão disponíveis em português. Podemos resumir a principal diferença entre eles em duas frases. Para Zizek, a pandemia teria provocado um golpe mortal no capitalismo, permitindo já antever sua superação. Em direção oposta, para Han, após a pandemia, o capitalismo continuará ainda mais forte, possibilitando formas de controle total sobre os indivíduos através de uma biopolítica digital.

Apostando no fim do capitalismo, Zizek se arrisca a fazer uma alegoria da crise com o famoso golpe assassino do filme Kill Bill, chamado “técnica do coração explosivo”, onde a pessoa que o recebe ainda pode continuar suas atividades por um tempo, beber uma taça de vinho, conversar etc., mas, inevitavelmente, o coração explode, levando a vítima à morte: “Minha modesta opinião sobre a realidade é muito mais radical: a epidemia de coronavírus é uma forma especial de ‘técnica do coração explosivo’ no sistema global capitalista, um sintoma de que não podemos continuar no caminho que seguimos até agora, que mudanças são necessárias”. Ele chega a apontar para a possibilidade da emergência de um novo comunismo, capaz de superar o modelo atual de Estado-nação e instituir um novo tipo de governança internacional, baseada na cooperação.

Menos otimista, Han afirmará respondendo diretamente a Zizek, que nada disso acontecerá; que poderíamos passar a viver em uma espécie de ultracapitalismo, tendo o Estado policial digital praticado na China como o novo modelo a ser replicado pelo mundo. Segundo ele, “o vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução.” Contudo, ainda que não aponte para “sinais redentores” em meio à crise, Han não descarta, por completo, as possibilidades de mudanças sociais. Sendo taxativo de que “não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus”, sua aposta é que a humanidade seja capaz de fazer um bom uso da razão para “repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”.

Numa análise apressada, não é difícil apontar para as fragilidades no argumento de Zizek, afinal, parece neste momento um tanto inverossímil afirmar que estaríamos vivenciando o prelúdio de um renascimento do comunismo. Por outro lado, o alcance dos efeitos econômicos e sociais da crise são de tamanha magnitude, que acreditar que tudo voltará ao “normal” talvez seja uma previsão ainda mais irrealista. Han, por sua vez, ainda que nos soe mais factível, aposta de forma diminuta em um horizonte de transformações guiadas pela “razão”. Observo que esta pequena brecha também pode ser vista tão criticamente quanto o “novo comunismo” de Zizek; afinal, acreditar em um caminho de transformações guiadas pela racionalidade, não seria uma espécie de atualização do velho, e já um tanto desgastado, projeto iluminista?

Contudo, como mencionado no início, mais do que aprofundarmos um escrutínio sobre as abordagens opostas feitas por estes dois filósofos, interessa-nos extrapolar este caso e debater a disjuntiva política entre uma perspectiva otimista e a pessimista diante das consequências da crise. Não pretendo aqui de forma alguma esgotar este tema ou propor uma “solução definitiva” capaz de mediar a oposição entre os extremos de um triunfalismo cândido com a de um catastrofismo melancólico, esforço de mediação que seria ontologicamente inviável. Pretendo, a seguir, apontar alguns pontos para buscarmos uma espécie de “dialética da pandemia”, como forma de encarar a complexidade desafiadora de nossa atual realidade.

Se, aparentemente, carece de maior materialidade a aposta otimista de que a crise abriria possibilidades históricas pós-capitalistas, por outro lado, negar de antemão quaisquer possibilidades de movimentos de mudanças é um equívoco ainda maior. A pandemia do Covid-19, em boa medida, aprofunda e talvez até gere uma dimensão desconhecida dentro de um cenário geral já conturbado, que se insinua como crise civilizacional do capitalismo. Diversos elementos indicam essa instabilidade estrutural da sociedade capitalista. A predatória destruição ambiental e o avanço do aquecimento global são uma das faces mais evidentes deste processo, colocando em risco a própria continuidade da vida humana. Mas, outros aspectos menos evidentes e igualmente decisivos, contribuíram para esta crise inconclusa, anterior ao vírus Covid-19.

Confirmando algumas das previsões de Marx, o próprio processo de acumulação e reprodução do capital está em um declínio prolongad e talvez fatal. O aprofundamento das contradições inerentes ao próprio capital, foram até aqui contornadas ou adiadas através de inúmeros artifícios, sendo o principal deles a financeirização da economia, com a ampliação de uma riqueza gerada em bases puramente especulativas e imateriais. Antecipa-se, continuamente, os lucros projetados no futuro, gastando estas riquezas estimadas no presente, tentando-se assim adiar uma crise de acumulação que se mostra incontornável. Para o capital existir, a base de exploração sobre o “trabalho vivo” é indispensável, ainda que o peso e papel relativo sofram mutações ao longo de seu processo histórico. Assim, uma outra forma de buscar adiar a crise do capital, muito popular em governos neoliberais, é a precarização geral do trabalho, que busca reduzir salários e maximizar lucros através de renovados mecanismos de espoliação.

Apesar da crise de 2008, até aqui esta fórmula vinha, em alguma medida, dando certo. O trabalho, cada vez mais composto por um precariado mal-remunerado e com baixíssima capacidade de associativismo e sindicalização, indicava um processo de irrefreável perda de força na luta de classes. A pandemia do coronavírus, contudo, irrompe como evento capaz de forçar a disputa por uma nova racionalidade. A interrupção das atividades laborais em diversos setores pelo mundo, devido às medidas de quarentena e distanciamento social para conter a propagação do vírus, paralisou a economia global. Como que em um passe de mágica, muitos dos apologistas neoliberais perceberam que, para uma economia existir, é fundamental que existam… pessoas vivas!

A rápida volta do Estado como centro organizador das economias nacionais colocou em suspenso o discurso neoliberal. A renovação de uma agenda estatal de promoção do bem-estar social da população surge como medida de urgência contra os efeitos econômicos da crise. O dogma da austeridade perde espaço para alternativas de renda emergencial ou mesmo de uma renda básica universal para todas as pessoas, ideia pontualmente já aplicada em muitos países após o início das medidas de quarentena. O papel dos sistemas públicos de saúde é um outro exemplo, mostrando-se infinitamente superior no combate à pandemia que países com sistemas de saúde privatizados. O Covid-19 colocou em crise o neoliberalismo, uma condição que até poucos meses atrás parecia impensável. Este é um aspecto político importante nesta conjuntura e amplia as possibilidades de mudanças paradigmáticas no próximo período. Uma “abertura na história”, cuja passagem e desdobramentos, não estão pré-determinados.

Se a história não está “fechada”, havendo as mudanças sociais como possibilidade sempre em movimento, tampouco esta “abertura” assegura qualquer “final feliz”. O fim do capitalismo não necessariamente será seguido pelo comunismo; poderíamos, pelo contrário, viver alguma forma de regressão à barbárie, como nos mostra a ficção científica com fartos exemplos destes futuros distópicos e pós-apocalípticos. A extensão da pandemia do Covid-19 ainda não é possível prever de forma conclusiva. Com relação à mencionada crise geral do capitalismo, essa seguramente se estenderá por mais alguns anos, talvez décadas. Portanto, o “estado de crise” não se dissipará, apenas mudará de intensidade e objeto. Neste século XXI, talvez ainda mais que nos períodos anteriores, não existe horizonte de estabilidade possível para o sistema capitalista. Com esta condição de instabilidade inerente, as possibilidades se abrem, tanto para perspectivas regressistas quanto progressistas.

Na atual emergência do coronavírus, já temos exemplos nestas duas direções: por um lado, vemos ganhar força o discurso da solidariedade, com práticas de associativismo espontâneas, assim como um reforço ao papel do bem público e comum. Noutra direção, a crise surgiu como oportunidade para surgirem os Coronagolpes – como no caso da Hungria e de Israel –, onde a “guerra médica” é utilizada como pretexto para suprimir a democracia e estabelecer um fechamento do regime político. Longe ainda de ser uma tendência generalizante, nos “afortunados” países de democracia estável, estas práticas autoritárias ainda não se colocaram. Em síntese, frente a tendências tão díspares, as condições para que os sujeitos construam alternativas se colocam com sensíveis mudanças nas correlações de força e nas dinâmicas sociais, renovando para a esquerda a importância de uma leitura com a maior precisão possível sobre a conjuntura aberta.

Assim, voltando aos arquétipos do otimismo e do pessimismo frente à atual crise, apoiar-se em algum destes extremos seria fatal. Uma confiança demasiada pode levar a decisões irrefletidas e desastrosas; um pessimismo exacerbado pode levar a um derrotismo paralisante. Nesta direção, pode ser útil recorrer a Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo britânico-jamaicano, que certa vez afirmou que “quando uma conjuntura se desenrola, não há como voltar atrás. A história muda de marcha. O terreno muda. Você está em um novo momento. Você tem que participar ‘violentamente’, com todo o ‘pessimismo do intelecto’ sob seu comando e com a ‘disciplina da conjuntura’”. Nesta complexa e instável dialética em tempos de pandemia, o desafio é buscarmos alguma forma de “esperança realista”, ou ainda, como nos versos da canção de Aldir Blanc e João Bosco, uma “esperança equilibrista”, que nos permita a ação e o esforço de renovação de nossa imaginação política em meio à crise.

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quarta-feira, 27 de maio de 2020

“A Revolução Russa” de Sheila Fitzpatrick

Por Paulo Marçaioli
Resenha do Livro “A Revolução Russa”, de Sheila Fitzpatrick , Ed. Todavia, tradução de José Geraldo Couto.

Logo na introdução de sua história da revolução russa, a historiadora australiana Sheila Fitzpatrick relata um episódio da visita do presidente Nixon à China no ano de 1972. Diz a lenda que um repórter teria questionado o premiê Chu En-Lai sobre o impacto mundial da Revolução Francesa (1789) e a resposta foi algo como “ainda é cedo para avaliar”.
Posteriormente, foi esclarecido que o premiê pensou tratar-se não da revolução que derrubou o feudalismo na França, mas dos eventos do maio de 1968. Ainda assim, a resposta não deixava de ser razoável aos olhos do historiador, conforme Fitzpatrick:
“Sempre é cedo demais para avaliarmos o impacto de grandes acontecimentos históricos, porque esse impacto nunca é estático e está sempre se transformando conforme mudam as circunstancias do presente e nossa perspectiva do passado. Assim foi com a Revolução Russa, cuja memória atravessou uma série de vicissitudes, um processo que certamente continuará no futuro”.
Em sendo a primeira experiência vitoriosa de uma revolução de trabalhadores e camponeses no mundo, é certa não só a variedade de versões sobre aqueles eventos, mas a existência de pontos ainda obscuros e pendentes de análises. Só muito recentemente, graças à possibilidade de mais acesso a documentos oficiais diante do fim da Guerra Fria e da própria URSS, temas como a história do cotidiano na sociedade soviética, o problema regional e a questão da revolução junto aos povos das diferentes nacionalidades, bem como as experiência individuais, usando como fonte diários e autobiografias, são exemplos de novas linhas de estudo.
Os primeiros relatos disponíveis no ocidente sobre a Revolução Russa foram não tanto livros de história mas relatos de pessoas que estavam participando ou relatando pessoalmente os eventos. É o caso do notório relato do jornalista John Reed[1], dos trabalhos de Louis Fischer ou mesmo os depoimentos autobiográficos de Trótsky. Em qualquer caso, a estudiosa Sheila Fitzpatrick coloca-se como parte de uma nova geração de estudiosos da história soviética que se beneficiaram a partir da década de 1990 da suspensão das restrições ao acesso aos arquivos na Rússia. Havia também a história oficial, redigida pelo partido comunista, que é certamente uma versão importante, mas limitada aos acertos do movimento russo, pouco crítica quanto aos seus erros, e muito limitada aos aspectos políticos e militares da revolução.
Assim, talvez mais do que nunca, a opinião do premiê chinês tem uma validade inequívoca para a história da Revolução Russa: 103 anos após a tomada do poder pelos bolcheviques, muita coisa ainda deve ser descoberta e relatada, bem como os significados da revolução serão revalidados, sendo ainda muito cedo para suscitar juízos definitivos.
No meio da Revolução
Não parece haver muita dificuldade em situar o início da Revolução Russa em fevereiro de 1917 com a derrubada do regime czarista por uma coalização política formada pelo campesinato, soldados e trabalhadores e dirigida pela burguesia. A participação da Rússia numa guerra extremamente impopular, a insistência do governo provisório em manter o país dentro dos compromissos da guerra junto aos aliados, além do não cumprimento do programa de entrega da terra aos camponeses, que representavam 80% da população russa, foram criando as condições para a polarização e radicalização políticas. Os corpos oriundos do front em seus caixões em direção às cidades só aumentavam, bem como a desmoralização dos políticos conciliadores do Governo Provisório que viam sua popularidade se esfarelar em detrimento dos partidos da extrema esquerda e da direita.
Nas jornadas de 3 e 5 de julho os operários de Petrogrado, junto com soldados e marinheiros de Kronstadt, lançaram-se prematuramente  numa manifestação de massas. Lênin, que via a revolução como uma arte, com seu compasso determinado por uma rigorosa análise das  forças sociais, compreendia que a tomada do poder naquele momento era prematura.
Lênin e os bolcheviques estavam certos. A reação veio logo após as  Jornadas de Julho com o movimento de Kornlivov que fomentou a ameaça contra-revolucionária. A reação kornilovista foi derrotada não pelo governo provisório, sempre hesitante, mas pela força da organização dos operários e soldados.
Estavam dadas as condições para a insurreição de Outubro, que levou à tomada do poder pelo partido bolchevique apenas um dia antes do II Congresso Pan-Russo dos Soviets.
Uma dificuldade maior não é situar o início da Revolução Russa, mas o seu fim. O fim teria se dado com a derrota militar do governo provisório poucos dias após o levante de Petrogrado em Outubro? Ou o fim se daria com o término da guerra civil (1918-1920)? Talvez alguém poderia diz que a Revolução morreu junto com o seu inconteste líder, Lênin, no ano de 1924. Em todo o caso, nesta história a autora situa o fim da Revolução Russa nos anos de 1937-38, durante os chamados grandes expurgos stalinistas, que por um lado levaram à prisão política membros de todos os níveis do partido e por outro (este lado talvez não muito relevado pela autora) levaram a maior unidade político-ideológica do partido e da sociedade, possibilitando um fortalecimento imprescindível para a derrota militar do nazi-fascismo na II Guerra Mundial.
A historiadora refere-se aos expurgos como uma experiência análoga ao terror jacobino de 1794 no contexto da revolução francesa. Já na sua introdução, a autora compartilha sua visão social de mundo que não é de forma alguma revolucionária. Mas em todo caso, uma questão suscitada na obra e que terá repercussão com a própria significação da História da Revolução Russa no presente é a seguinte: como o furor ideológico que move os revolucionários se adequa às exigências de um tempo pós-revolucionário, quando as forças destrutivas e criativas da sociedade encontram-se exaustas? O que fazer quando surge o imperativo de estabilizar as coisas? Como dar um fim à revolução vitoriosa sem rejeitá-la no plano ideológico e prático? Este parece ser um dos aspectos mais intrigantes do período stalinista que, diga-se de passagem, se mostra do ponto de vista da historiadora australiana como o mais fiel herdeiro do leninismo.
Stálin lançou o primeiro plano quinquenal como algo com a mesma importância que a decisão do CC bolchevique de tomar o poder em outubro de 1917. Foi um plano que tinha como escopo no mais curto espaço de tempo industrializar a Rússia, com ênfase na indústria de base, especialmente aço, ferro e carvão. Neste contexto, foi necessário garantir o fornecimento de grãos pelos camponeses, implicando na necessidade de coletivização e dura repressão aos especuladores. Uma verdadeira “revolução pelo alto” nas palavras da historiadora.
Talvez a autora esteja correta parcialmente ao chamar nós os  revolucionários de todos os tempos e lugares “de fascinados por metas grandiosas e irrealistas”: talvez acabemos acreditando interiormente  que a sociedade pode ser uma tábula rasa na qual a revolução poderá ser escrita. Reconhecer as dificuldades do encerramento do desafio revolucionário certamente não significa para nós renunciar ao horizonte revolucionário.

[1] “Dez Dias Que Abalaram o Mundo” – John Reed – Resenha disponível em http://esperandopaulo.blogspot.com/2020/04/dez-dias-que-abalaram-o-mundo-john-reed.html

Horóscopo da Pandemia: O Capitalismo não Morrerá de Coronavírus – Por Fernando Buen Abad Domínguez

«(...) É necessário também, um movimento internacionalista de Filosofia para a transformação da realidade. Não se resolverão os problemas que a acumulação de capital impõe à humanidade, apenas com reformas fiscais nem só com reformas do aparelho do Estado ajoelhado ante as oligarquias. Não se resolverá só com mais hospitais, nem só com mais escolas ou com mais do mesmo. Há que reformar integralmente os conteúdos de cada instituição. Ainda que venham brunidos com palavrório ao gosto de certas tribunas. O modo de produção e as relações de produção devem ser profundamente postos em causa. A posse da terra, as “concessões” mineiras, a soberania dos mares territoriais e, em geral, o direito dos povos a desfrutar das riquezas naturais e do produto do trabalho que a elas imprima e que delas provenha. Toda a democracia burguesa deve ser discutida. A sua história, as suas definições, as suas legislações e as milhares de emboscadas ideológicas e vazias. Há que filosofar no sentido de uma revolução humanista a sério.
É também o momento de descolonizar a Filosofia. Lutar nas entranhas das máfias que a sequestraram para esconder a luta de classes e ornar o capital. Há que interpelar a educação na sua totalidade e os seus servidores do mercado dos conhecimentos. Há que interpelar o modelo de saúde e os princípios porque se rege para o emancipar da lógica do mercantilismo messiânico. Devemos questionar, “até doer”, toda a estrutura de “valores” e “senso comum” inoculados pelos “meios de comunicação” sequestrados para nos submeter ao “síndrome de Estocolmo” que nos obriga a aceitá-los como se fossem nossos, os valores da classe opressora. Há que interpelar integralmente o aparelho jurídico e das sanções… o capitalismo integralmente. Incluindo todos nós. Também devemos questionar a nossa crise de liderança revolucionária e resolvê-la para acabar com o capital. Como será o mundo depois da pandemia?: O mesmo, só com o perigo de que nos sequestrem o futuro novamente… o mesmo, só que piorando velozmente se não nos organizarmos para o transformar. “O perigo está na demora”. Eloy Alfaro.
Via: as palavras são armas https://bit.ly/3eaZSbs

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.