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quarta-feira, 27 de maio de 2020

“A Revolução Russa” de Sheila Fitzpatrick

Por Paulo Marçaioli
Resenha do Livro “A Revolução Russa”, de Sheila Fitzpatrick , Ed. Todavia, tradução de José Geraldo Couto.

Logo na introdução de sua história da revolução russa, a historiadora australiana Sheila Fitzpatrick relata um episódio da visita do presidente Nixon à China no ano de 1972. Diz a lenda que um repórter teria questionado o premiê Chu En-Lai sobre o impacto mundial da Revolução Francesa (1789) e a resposta foi algo como “ainda é cedo para avaliar”.
Posteriormente, foi esclarecido que o premiê pensou tratar-se não da revolução que derrubou o feudalismo na França, mas dos eventos do maio de 1968. Ainda assim, a resposta não deixava de ser razoável aos olhos do historiador, conforme Fitzpatrick:
“Sempre é cedo demais para avaliarmos o impacto de grandes acontecimentos históricos, porque esse impacto nunca é estático e está sempre se transformando conforme mudam as circunstancias do presente e nossa perspectiva do passado. Assim foi com a Revolução Russa, cuja memória atravessou uma série de vicissitudes, um processo que certamente continuará no futuro”.
Em sendo a primeira experiência vitoriosa de uma revolução de trabalhadores e camponeses no mundo, é certa não só a variedade de versões sobre aqueles eventos, mas a existência de pontos ainda obscuros e pendentes de análises. Só muito recentemente, graças à possibilidade de mais acesso a documentos oficiais diante do fim da Guerra Fria e da própria URSS, temas como a história do cotidiano na sociedade soviética, o problema regional e a questão da revolução junto aos povos das diferentes nacionalidades, bem como as experiência individuais, usando como fonte diários e autobiografias, são exemplos de novas linhas de estudo.
Os primeiros relatos disponíveis no ocidente sobre a Revolução Russa foram não tanto livros de história mas relatos de pessoas que estavam participando ou relatando pessoalmente os eventos. É o caso do notório relato do jornalista John Reed[1], dos trabalhos de Louis Fischer ou mesmo os depoimentos autobiográficos de Trótsky. Em qualquer caso, a estudiosa Sheila Fitzpatrick coloca-se como parte de uma nova geração de estudiosos da história soviética que se beneficiaram a partir da década de 1990 da suspensão das restrições ao acesso aos arquivos na Rússia. Havia também a história oficial, redigida pelo partido comunista, que é certamente uma versão importante, mas limitada aos acertos do movimento russo, pouco crítica quanto aos seus erros, e muito limitada aos aspectos políticos e militares da revolução.
Assim, talvez mais do que nunca, a opinião do premiê chinês tem uma validade inequívoca para a história da Revolução Russa: 103 anos após a tomada do poder pelos bolcheviques, muita coisa ainda deve ser descoberta e relatada, bem como os significados da revolução serão revalidados, sendo ainda muito cedo para suscitar juízos definitivos.
No meio da Revolução
Não parece haver muita dificuldade em situar o início da Revolução Russa em fevereiro de 1917 com a derrubada do regime czarista por uma coalização política formada pelo campesinato, soldados e trabalhadores e dirigida pela burguesia. A participação da Rússia numa guerra extremamente impopular, a insistência do governo provisório em manter o país dentro dos compromissos da guerra junto aos aliados, além do não cumprimento do programa de entrega da terra aos camponeses, que representavam 80% da população russa, foram criando as condições para a polarização e radicalização políticas. Os corpos oriundos do front em seus caixões em direção às cidades só aumentavam, bem como a desmoralização dos políticos conciliadores do Governo Provisório que viam sua popularidade se esfarelar em detrimento dos partidos da extrema esquerda e da direita.
Nas jornadas de 3 e 5 de julho os operários de Petrogrado, junto com soldados e marinheiros de Kronstadt, lançaram-se prematuramente  numa manifestação de massas. Lênin, que via a revolução como uma arte, com seu compasso determinado por uma rigorosa análise das  forças sociais, compreendia que a tomada do poder naquele momento era prematura.
Lênin e os bolcheviques estavam certos. A reação veio logo após as  Jornadas de Julho com o movimento de Kornlivov que fomentou a ameaça contra-revolucionária. A reação kornilovista foi derrotada não pelo governo provisório, sempre hesitante, mas pela força da organização dos operários e soldados.
Estavam dadas as condições para a insurreição de Outubro, que levou à tomada do poder pelo partido bolchevique apenas um dia antes do II Congresso Pan-Russo dos Soviets.
Uma dificuldade maior não é situar o início da Revolução Russa, mas o seu fim. O fim teria se dado com a derrota militar do governo provisório poucos dias após o levante de Petrogrado em Outubro? Ou o fim se daria com o término da guerra civil (1918-1920)? Talvez alguém poderia diz que a Revolução morreu junto com o seu inconteste líder, Lênin, no ano de 1924. Em todo o caso, nesta história a autora situa o fim da Revolução Russa nos anos de 1937-38, durante os chamados grandes expurgos stalinistas, que por um lado levaram à prisão política membros de todos os níveis do partido e por outro (este lado talvez não muito relevado pela autora) levaram a maior unidade político-ideológica do partido e da sociedade, possibilitando um fortalecimento imprescindível para a derrota militar do nazi-fascismo na II Guerra Mundial.
A historiadora refere-se aos expurgos como uma experiência análoga ao terror jacobino de 1794 no contexto da revolução francesa. Já na sua introdução, a autora compartilha sua visão social de mundo que não é de forma alguma revolucionária. Mas em todo caso, uma questão suscitada na obra e que terá repercussão com a própria significação da História da Revolução Russa no presente é a seguinte: como o furor ideológico que move os revolucionários se adequa às exigências de um tempo pós-revolucionário, quando as forças destrutivas e criativas da sociedade encontram-se exaustas? O que fazer quando surge o imperativo de estabilizar as coisas? Como dar um fim à revolução vitoriosa sem rejeitá-la no plano ideológico e prático? Este parece ser um dos aspectos mais intrigantes do período stalinista que, diga-se de passagem, se mostra do ponto de vista da historiadora australiana como o mais fiel herdeiro do leninismo.
Stálin lançou o primeiro plano quinquenal como algo com a mesma importância que a decisão do CC bolchevique de tomar o poder em outubro de 1917. Foi um plano que tinha como escopo no mais curto espaço de tempo industrializar a Rússia, com ênfase na indústria de base, especialmente aço, ferro e carvão. Neste contexto, foi necessário garantir o fornecimento de grãos pelos camponeses, implicando na necessidade de coletivização e dura repressão aos especuladores. Uma verdadeira “revolução pelo alto” nas palavras da historiadora.
Talvez a autora esteja correta parcialmente ao chamar nós os  revolucionários de todos os tempos e lugares “de fascinados por metas grandiosas e irrealistas”: talvez acabemos acreditando interiormente  que a sociedade pode ser uma tábula rasa na qual a revolução poderá ser escrita. Reconhecer as dificuldades do encerramento do desafio revolucionário certamente não significa para nós renunciar ao horizonte revolucionário.

[1] “Dez Dias Que Abalaram o Mundo” – John Reed – Resenha disponível em http://esperandopaulo.blogspot.com/2020/04/dez-dias-que-abalaram-o-mundo-john-reed.html

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