Žižek: O dia do trabalhador em um mundo viral
Os enfermeiros são apenas a parte mais visível, durante esta pandemia, de toda uma classe de trabalhadores super-explorados do cuidado. Parece apropriado dedicar a essa 'nova classe trabalhadora' este 1º de maio.
Por Slavoj Žižek.
* ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Talvez tenha chegado o momento de darmos
um passo atrás em nosso foco exclusivo na epidemia do novo coronavírus e
nos perguntarmos o que a pandemia e seus efeitos devastadores revelam a
respeito de nossa realidade social.
A primeira coisa que chama a atenção é
que, em contraste com o lema barato de que “estamos todos no mesmo
barco”, as divisões de classe explodiram. No andar mais baixo (da nossa
hierarquia social) há aqueles tão destituídos que o vírus em si não
constitui o problema principal (refugiados, pessoas enredadas em zonas
de guerra). Enquanto estes ainda são em larga medida ignorados pela
nossa mídia, somos bombardeados por celebrações sentimentais aos
enfermeiros na linha de frente da luta contra o vírus – a Força Aérea
Real inglesa chegou inclusive a organizar um desfile aeronáutico em
homenagem a esses profissionais da saúde. Mas os enfermeiros são apenas a
parte mais visível de toda uma classe de trabalhadores do cuidado
explorados – ainda que não da mesma maneira que a antiga classe
trabalhadora do imaginário marxista clássico é explorada. Nas palavras
de David Harvey, eles constituem uma “nova classe trabalhadora”:
“A força de trabalho que se espera que
cuide dos números cada vez maiores de doentes, ou forneça os serviços
mínimos que permitem a reprodução da vida cotidiana é, via de regra,
altamente generificada, racializada e etnicizada. Essa é a ‘nova classe
trabalhadora’ que está na linha de frente do capitalismo contemporâneo.
Seus integrantes precisam suportar dois fardos: eles são os mais
expostos ao risco de contrair o vírus ao realizarem seus trabalhos, e ao
mesmo tempo os mais propensos a serem demitidos sem nenhuma compensação
por conta das medidas de contenção econômica introduzidas pelo vírus. A
classe trabalhadora contemporânea nos Estados Unidos – composta
predominantemente de afro-americanos, mexicanos e mulheres assalariadas –
se encontra diante de uma escolha terrível: entre sofrer contaminação
no processo de cuidar das pessoas e manter abertos formas-chave de
provisão (tais como mercados de alimentos), ou desemprego sem benefícios
(tais como atendimento à saúde).”1
É por isso que na França explodiram
revoltas nas periferias pobres situadas a norte de Paris onde moram as
pessoas que servem aos ricos. Nas últimas semanas, Singapura também vem
registrando um aumento vertiginoso nas infecções de coronavírus em
dormitórios de trabalhadores estrangeiros:
“Singapura abriga cerca de 1.4 milhões de
trabalhadores migrantes provenientes em larga medida do sul e sudeste
asiáticos. Na condição de faxineiros, cuidadores domésticos,
trabalhadores de construção e trabalhadores manuais, esses migrantes são
essenciais para manter a cidade em funcionamento – mas são ao mesmo
tempo algumas das pessoas mais mal pagas e mais vulneráveis da
metrópole.”2
Essa nova classe trabalhadora sempre
esteve aqui, a epidemia apenas a tornou mais visível. Peguemos o caso da
Bolívia: embora a maior parte da população boliviana seja indígena ou
de etnia misturada, até a ascensão de Evo Morales, essa enorme parcela
da sociedade era efetivamente excluída da vida política, reduzida a uma
maioria silenciosa do país que realiza seu trabalho sujo nas sombras. O
que aconteceu com a eleição de Morales foi o despertar político dessa
maioria silenciosa que não se encaixava na rede de relações
capitalistas. Ainda não eram proletários no sentido moderno,
permanecendo imersos em suas identidades sociais tribais pré-modernas –
foi assim que Álvaro García Linera, o vice-presidente de Morales,
descreveu a sina dessa população:
“Na Bolívia, os alimentos eram produzidos
por agricultores indígenas, as casas e as construções eram erguidas por
trabalhadores indígenas, as ruas eram limpas por indígenas, e a elite e
as classes médias delegavam a eles o cuidado de seus filhos. No
entanto, a esquerda tradicional parecia alheia a isso, ocupando-se
apenas com os trabalhadores na indústria de larga escala e deixando de
atentar para sua identidade étnica.”3
Para designar essa classe, Bruno Latour e Nikolaj Schultz cunharam o termo “classe geo-social”4.
Muitos desses sujeitos não são explorados no sentido marxista clássico
de trabalhar para os detentores dos meios de produção; a exploração se
dá na forma pela qual se relacionam com as próprias condições materiais
de suas vidas: acesso a água e ar puro, saúde, segurança… Mesmo não
trabalhando para empresas estrangeiras, a população local é explorada
quando seu território passa a ser utilizado para agricultura de
exportação ou mineração intensiva: são explorados no simples sentido de
serem privados do uso pleno do território que propiciava a manutenção de
seus modos de vida. Pegue o caso dos piratas somalis: eles recorreram à
pirataria porque sua costa marítima estava completamente exaurida de
peixes por conta das práticas de pesca industrial realizadas por
companhias estrangeiras lá. Parte do seu território foi apropriado pelos
países desenvolvidos e utilizado para sustentar o nosso modo de vida.
Latour propõe substituir, nesses casos, apropriação de “mais-valor” por
apropriação de “mais-existência”, onde “existência” se refere às
condições materiais da vida.
Então descobrimos agora, com a epidemia
viral, que mesmo com as fábricas paralisadas, a classe geo-social de
cuidadores precisa continuar trabalhando – e parece apropriado dedicar
este 1o de Maio a eles ao invés de à classe trabalhadora
industrial clássica. Eles são os verdadeiros super-explorados:
explorados quando trabalham, visto que seu trabalho é em larga medida
invisível, e explorados inclusive quando não trabalham; explorados não
são apenas através do que fazem, como também em sua própria existência.
O sonho eterno dos ricos é o de um
território totalmente separado dos locais poluídos em que vivem e
circulam as pessoas comuns – basta lembrar de blockbusters pós-apocalípticos como Elysium (2013,
dirigido por Neil Blomkamp), que se passa no ano de 2154 em uma
sociedade na qual os ricos vivem em uma gigantesca estação espacial
enquanto o resto da população vive em um planeta Terra que parece uma
enorme favela latino-americana. À espera de algum tipo de catástrofe, os
ricos estão adquirindo refúgios na Nova Zelândia ou renovando bunkers
nucleares da Guerra Fria nas Montanhas Rochosas, mas o problema com a
epidemia viral é que não é possível se isolar completamente – tal como
um cordão umbilical que não pode ser totalmente rompido, é inevitável um
vínculo mínimo com a realidade poluída.
Notas
1 David Harvey, Política anticapitalista em tempos de covid-19 (Boitempo, no prelo).
2 Jessie Yeung, Joshua Berlinger, Sandi Sidhu, Manisha Tank e Isaac Yee, “Singapore’s migrant workers are suffering the brunt of the country’s coronavirus outbreak”, 25 abr. 2020, CNN.
3 Marcello Musto, “Bolivian Vice President Álvaro García Linera on Marx and Indigenous Politics”, Truthout, 9 nov. 2010.
4 Bruno Latour e Nikolaj Schultz “Reassembling the Geo-Social: a conversation”, Theory Culture & Society 36(7-8), ago. 2019.
1 David Harvey, Política anticapitalista em tempos de covid-19 (Boitempo, no prelo).
2 Jessie Yeung, Joshua Berlinger, Sandi Sidhu, Manisha Tank e Isaac Yee, “Singapore’s migrant workers are suffering the brunt of the country’s coronavirus outbreak”, 25 abr. 2020, CNN.
3 Marcello Musto, “Bolivian Vice President Álvaro García Linera on Marx and Indigenous Politics”, Truthout, 9 nov. 2010.
4 Bruno Latour e Nikolaj Schultz “Reassembling the Geo-Social: a conversation”, Theory Culture & Society 36(7-8), ago. 2019.
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Slavoj Žižek
nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo,
psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por
diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política
da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto
de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou
Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil (2015), O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016) e Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo (2020). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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