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sexta-feira, 15 de maio de 2020


O espectro do “marxismo cultural”
Público 15 de Maio de 2020
Essa coisa chamada “marxismo cultural”, que atravessou o Atlântico, vinda dos Estados Unidos, não é uma categoria política, não é um movimento cultural, não é um conceito: é o nome de um espantalho, na sua versão cómica, ou um fantasma terrível, na sua versão mais negra, que pode provocar patologias do comportamento a quem é acometido por visões que dão corpo a este espectro.
Quando, em 2011, o terrorista norueguês Anders Breivik matou 77 jovens que participavam numa festa do partido social-democrata, na ilha de Utoya, esse assassínio em massa foi antecedido pela difusão, na Internet, de um longo “manual” ideológico — expressão do mais elevado delírio teórico — que explicitava as razões inadiáveis que levavam o seu autor a passar ao acto. Entre essas razões, estava a “islamização” em curso da sociedade ocidental e também o “marxismo cultural”, ao qual se atribuía uma ascendência multiforme, mas revitalizado principalmente nos sinistros laboratórios da Escola de Frankfurt. Robert Bowers, o norte-americano que assassinou onze pessoas na sinagoga de Pittsburgh, em 2018, também se apresentava em luta contra o “marxismo cultural”. No Brasil, a guerra contra o “marxismo cultural” foi declarada ao mais alto nível, pelo presidente Jair Bolsonaro, num grito de mobilização nacional. Resistindo muito embora a uma simplista “reductio ad Hitlerum”, é inevitável, quando procedemos a uma busca genealógica do “marxismo cultural”, não ir dar ao “bolchevismo cultural”, o termo usado na Alemanha nazi para designar a “degeneração” das artes e da sociedade, mesmo que os denunciantes desta forma de marxismo que não ousa dizer o seu nome — e por isso é necessário que outros, intrépidos, o digam e o apontem — não tenham nada que ver com um Breivik e não tenham qualquer ligação a ideias nazis.
A ideia de “marxismo cultural” é a ideia de um complot, do tipo daquele que era revelado pela célebre publicação de 1903, Protocolos dos Sábios de Sião, que denunciava uma conspiração dos judeus para dominar o mundo. Assim, o “marxismo cultural”, agindo a partir de cima, a partir da superestrutura ideológica, estaria a provocar uma “revolução” que o marxismo político não conseguiu: uma revolução cultural e social nos costumes que se serve de ferramentas culturais para engendrar operações de alta engenharia. Feminismo, multiculturalismo, direitos dos homossexuais ao casamento e à adopção (ou, até mesmo, a manifestarem-se no espaço público), censura da linguagem discriminatória e responsável pela naturalização do racismo, visão da história que não segue uma concepção épica e heróica do passado nacional: tudo isto é o chamado “marxismo cultural”; tudo isto é tido como destruidor dos “valores cristãos” e da sociedade ocidental. A ideia de “marxismo cultural” é uma máquina mitológica que funciona à custa de fantasmas, lugares-comuns, estereótipos, frases feitas, repetição de fórmulas que não necessitam de ser analisadas nem sequer compreendidas.
Na nomeação e denúncia do “marxismo cultural” há nomes próprios, figuras, instituições que surgem com frequência no lugar do crime. As ciências sociais, por exemplo, e até em grande parte as ciências humanas, são consideradas centros doutrinários. É sabido — os denunciadores estão sempre a dizê-lo — que o  ISCTE e alguns departamentos da Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa são estações do nefasto marxismo (não o político, mas s sua versão cultural), e mereciam que sobre eles se abatesse o castigo infligido a Sodoma e Gomorra. Mas estas nossas filiais do “marxismo cultural” têm um fraco poder. O verdadeiro perigo vem de fora, das grandes centrais alojadas nas universidades americanas e numa parte considerável dos media. A universitária norte-americana Judith Butler já uma vez teve de ser escoltada, no Brasil, para não ser agredida por uma turba de activistas que ameaçava essa satânica representante do “marxismo cultural”. À cabeça da lista negra elaborada pelos combatentes contra o “marxismo cultural” estão figuras que nem sequer eram marxistas e mantiveram a maior distância em relação ao “cultural”. Por exemplo, Michel Foucault. 

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