O Retorno do Político
Por Jorge Alemán, via Pagina 12, traduzido por Thales Fonseca
Em primeiro lugar, o título “O
retorno do político”, já de entrada, dá a entender que o político parece
ser algo que não está sempre presente, que não está aí, que não se
apresenta a nós como algo estável, firme e consolidado. Se falamos da
volta ou do retorno do político, quer dizer que o político pode ser
evitado, reprimido, cancelado, esquecido, por isso para tratar este tema
vou me valer da distinção entre o político e a política, e vou me
referir a essa distinção clássica através dos percursos teóricos aos
quais me sinto envolvido e preocupado.
Jorge Alemán é um psicanalista e
escritor argentino radicado há mais de 40 anos na Espanha, conselheiro
cultural da Embaixada da Argentina na Espanha, professor honorário da
Universidad de Buenos Aires, fundador de diversos grupos de psicanálise e
da primeira revista lacaniana de Madri. Colaborou na consolidação do
Campo Freudiano na Espanha, é membro da Escuela Lacaniana de
Psicoanálisis del Campo Freudiano en España (ELP) e da Asociación
Mundial de Psicoanálisis (AMP), além de ser docente do Nuevo Centro de
Estudios Psicoanalíticos. Curiosamente, apesar de sua importância no
cenário psicanalítico internacional – principalmente em seu esforço para
pensar a articulação entre a psicanálise e o político sob o escopo de
uma “esquerda lacaniana” –, não se encontram com facilidade textos seus
traduzidos para a língua portuguesa. O presente manuscrito é produto de
sua intervenção[i] no Foro Nacional y Latinoamericano por una Nueva Independencia. (N. do T.)
- Produção de subjetividade e singularidade irredutível
Em primeiro lugar, uma diferença que para
mim é chave e que normalmente se sobrepõe ou se confunde no campo da
filosofia, das ciências sociais e das ciências políticas. Uma coisa são
as lógicas do poder que na formação do neoliberalismo atual, como
concretização do discurso capitalista, produzem subjetividades, o modo
em que os meios de comunicação, as corporações tomaram, como seu espólio
mais valioso, a produção mesma da subjetividade; e outra coisa é a
própria constituição do sujeito pela “lalíngua”, constituição que se
inaugura antes do nascimento do sujeito e que prossegue após a sua
morte. São dois lugares absolutamente distintos, e mais, constituem a
diferença absoluta.
A diferença absoluta
Uma coisa é a produção de subjetividade
pela lógica do poder, que assume distintas figuras: a produção do
empreendedor, viver a própria vida como se fosse uma empresa, a produção
das frases horríveis de autoajuda e autoestima, a produção do homem
endividado, a produção do homem atado e submetido aos imperativos de
felicidade que cada vez o tornam um ser mais atormentado, as indústrias
farmacêuticas, os coaches, etc. etc., e outra coisa é essa
singularidade irredutível que surge no advento da “lalíngua” para a sua
existência falante, sexuada e mortal; se confundirmos essas duas coisas e
crermos que o poder definitivamente capta esse momento de surgimento do
sujeito, o crime é perfeito e, aí sim, podemos dizer que os meios de
comunicação fabricam sujeitos, produzem sujeitos.
A singularidade não pode ser produzida
Não, a singularidade não pode ser
produzida, chamo político o instante em que o sujeito advém e chamo
política – em vez disso – as produções de subjetividade, e essa é uma
diferença que me parece crucial, se isso se confunde, se esse momento
inaugural, estrutural, se vocês quiserem, “ontológico” da constituição
mesma dessa singularidade em que há em cada um algo de irrepetível é
apagado, isso que nos faz ser o que somos, se isso é apagado e se
confunde com a produção de subjetividades, como disse antes, então
finalmente o poder terá realizado seu crime perfeito e já não haverá
lugar nem para exercer resistência, nem para recuperar os legados
históricos, nem para praticar a rememoração e a invenção. Assim, esta é a
minha primeira distinção chave entre o político e a política, a
política é tudo isso que surge dos dispositivos de poder do capital e,
por outro lado, chamo de político o “inapropriável”.
O inapropriável
Se o discurso do capital, a lógica de
circulação da mercadoria, a capacidade que tem a mercadoria para tratar
as subjetividades como se fossem fluidas, líquidas, voláteis, consegue
apagar essa singularidade, efetivamente não há nenhuma outra
possibilidade a não ser pensar que o poder assumiu toda a existência.
Então, nesse aspecto, considero que é um exercício fundamental do
pensamento pensar o inapropriável. Que é o inapropriável? Aquilo que o
discurso do capital não pode capturar. Como nomeio aquilo que o discurso
do capital não pode capturar? Esta singularidade que surge com o
advento da “lalíngua”, e que é o lugar de onde efetivamente os retornos,
entre eles o retorno do político, podem ser levados a cabo.
- Diferenciar capitalismo de hegemonia
Em minha segunda distinção me distancio
de certas construções teóricas, não vou dar nomes de autores, mas vou
diferenciar o capitalismo da hegemonia. Eu mesmo, lexicalmente ou
idiomaticamente, digo: “a hegemonia neoliberal”, “a hegemonia do
capital”, etc. etc., é um modo de falar. No entanto, creio que o
capitalismo por sua capacidade de conectar lugares, de se expandir
transversalmente, por não possuir barreiras, por expulsar tudo o que
seja impossível, por absorver todas as crises e se potencializar através
da crise, visto que das crises quem padecem são os povos, as nações, as
famílias e os sujeitos, mas nunca a lógica do capital; ao ser o capital
um movimento circular, ilimitado, onde o tempo todo o novo clama pelo
novo para anular-se como novidade e não para produzir um acontecimento,
onde o diferente clama pelo diferente para que nunca surja a diferença,
por tudo isso, considero que o capitalismo não é uma hegemonia, o
capitalismo é um poder.
A hegemonia sempre é vazia
A hegemonia pelo contrário, se constrói
com as singularidades e, portanto, sempre é vazia, tem como ponto de
partida a heterogeneidade, não pode nunca apagar as diferenças,
pensemos, por exemplo, a própria construção hegemônica quando falamos
das demandas não satisfeitas pelas instituições do neoliberalismo e como
essas diferentes demandas ingressam em uma cadeia de equivalência,
essas diferenças nunca são apagadas na lógica da articulação hegemônica;
assim que oponho a estrutura do discurso do capital – a qual considero
um poder – dos projetos hegemônicos.
Discurso do capital e vontade acéfala
Chamo política o discurso do capital e a
sua vocação fundamental de realizar como vontade acéfala a conexão de
todos os lugares em um circuito da mercadoria, e designo, por sua vez,
como político o hegemônico, que sempre é por essência falido, instável, e
que tem que jogar sua partida na brecha (por isso surge de maneira tão
reiterada a pergunta pelo caráter irreversível ou não das
transformações), tem que jogar sua partida na brecha da estrutura de
localização do discurso do capitalismo que, como vocês sabem, já não nos
permite pensar que haja uma contradição interna que atribua um lugar
previamente determinado que seja capaz de sair do capitalismo. O
capitalismo nos confronta com um paradoxo único na história que implica
que, por um lado, não possamos nomear sua saída, não possamos reconhecer
sua exterioridade, e, por outro, tenhamos que seguir insistindo em seu
caráter contingente e histórico.
A construção hegemônica
É assim que, como vocês já viram, é feita
duas distinções entre a política e o político: a primeira, as
fabricações de subjetividade dos dispositivos de poder e a singularidade
subjetiva; a segunda, o poder do capital e a construção hegemônica; a
construção de uma lógica articulada e hegemônica, o modo em que uma
vontade popular emerge, sempre tem como ponto de partida o heterogêneo, o
diferente, o que não é suscetível de ser homogeneizado. O discurso do
capital é um campo que se estende transversalmente, homogeneamente; a
hegemonia nunca conquista homogeneidade alguma, e sua verdadeira força
transformadora consiste precisamente nessa heterogeneidade com que
trabalha e pela qual é trabalhada.
- Atos instituintes e instituições
Minha terceira distinção, e última, é a
diferença entre os atos instituintes – assim eu os designo, não utilizo
termos de outras tradições, como poder constituinte ou práxis
instituinte – e as instituições.
Um ato instituinte é o político
Como entendo um ato instituinte? Um ato
instituinte é o político, entendo um ato instituinte e penso em sua
inteligibilidade para dar conta de como o novo entra na história, o que
caracteriza o ato instituinte é que por um lado – e prestemos atenção
nisso – não é uma criação que vem do nada, não é uma criação – como
poderíamos dizer – “ex nihilo”, é uma criação que exige as tramas
simbólica, as constelações históricas, os legados; no entanto, o ato
instituinte não é um mero resultado dessas condições históricas, é mais,
exige a presença dessas condições históricas, porém é, ao mesmo tempo,
uma ruptura no que se refere as mesmas.
Solidão: Comum
O novo entra na história através do ato
instituinte e o ato instituinte é sempre levado a cabo por um coletivo
de singularidades que eu designo em meus textos pelo nome de “Solidão:
Comum” porque são tanto singularidade como, por outro lado, operam no
comum da “lalíngua”, e voltam a ser outro nome do inapropriável; assim
como disse que o sujeito em sua singularidade e advento era
inapropriável, agora digo que um ato instituinte é também outro nome do
inapropriável, como também o é a hegemonia, a hegemonia também nomeia o
inapropriável.
Impossível-Contingente, Necessário-Possível
O que nos interessa pensar sempre é: de
que coisa o discurso do capital não pode se apropriar? Este ato
instituinte, como vocês sabem, seu único destino possível é fundar
instituições, seu trajeto final é ser reconhecido pela instituição, é
como na história de amor, ela é o encontro contingente e logo o desafio
da permanência, do mesmo modo, o ato instituinte se dá na relação entre o
impossível e o contingente, e a instituição se dá entre o necessário e o
possível.
A aventura da permanência
A instituição é feita de hierarquias,
burocracias, inércias, autoridades, e todo o desafio é como esse ato
instituinte – que é o político – se aloja na política das instituições
de tal maneira que a instituição não possa se fechar – ainda que ela
tente, no que se refere a esse ato instituinte –, e ao mesmo tempo o ato
instituinte se caracteriza por não ter escolha a não ser passar pela
aventura da permanência. Nesse aspecto, esse ato instituinte… dou três
traços: a angústia (porque ele sempre se faz desde um lugar de
desamparo, sempre se faz sem… – ainda que haja uma constelação histórica
que o preceda –, no ato instituinte há uma solidão radical, ainda que
sejam muitos os que intervenham), logo, a certeza (a certeza sempre vem
da angústia) e por último a antecipação.
Angústia, certeza e antecipação
Angústia, certeza e antecipação são os
três modos do ato instituinte. A instituição, pelo contrário, é a que o
acolhe e entendo por práxis militante aquela práxis que é capaz de levar
ao seio mesmo da instituição a instabilidade, a fragilidade, o
desamparo, a angústia, mas também a certeza do ato instituinte.
Entre o ato instituinte e o instituído
Pois bem, nada pode se identificar nem se
assumir de um ato instituinte, porque isso seria uma contradição, é
sempre um coletivo anônimo, o que eu designo como “Solidão: Comum”,
porém nenhuma instituição, se quer seguir em um projeto emancipatório e
transformador, pode apagar a memória, o rastro, a impressão do que é
instituinte. Não há outra escolha que viver o tempo todo em uma tensão
entre o ato instituinte e o instituído da política, entre o ato
instituinte inapropriável do político e o instituído da política. Eu
sei, sou plenamente consciente que não falei de nenhuma das situações do
presente e não nomeei nada, porém eu estou seguro de que com a generosa
imaginação de todos vocês, talvez possam inferir do que estou falando.
[i] Há momentos do texto que são
apresentados de maneira um tanto confusa, muito provavelmente por ser
ele o produto de uma intervenção oral. Porém, tendo em vista que, como
já dizia Umberto Eco, “traduzir é trair”, procuramos manter sempre que
possível os pontos confusos tal como aparecem no original, na tentativa
de trair o mínimo possível – ainda que fosse com a melhor das intenções.
(N. do T.)
in LavraPalavra
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