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Entrevista
Ben Ferencz
Ben Ferencz
“O pensar de Trump é o pensar de Hitler”
É
o único procurador do célebre tribunal de Nuremberga, que julgou os
criminosos nazis, ainda vivo. Passou a vida inteira a tentar evitar que a
História se repetisse. Aos cem anos ainda não perdeu a esperança. E não
poupa criticas a Trump
POR Colin van Heezik (originalmente publicado no “De Volkskrant”)
Delray Beach, Florida. O bungalow
cor-de-rosa fica num vasto parque, onde a relva é um pouco verde demais
e as casas de férias parecem bolos a derreter ao sol. Em frente à casa
está um Buick Century com uma matrícula que diz “Law, Not War” (lei, não
guerra)”.
O slogan hippie
não era Make Love, Not War? Sim, mas este é o carro de Ben Ferencz. Aos
27 anos, ele foi nomeado procurador-chefe num dos julgamentos de nazis
em Nuremberga. Um procurador peculiar, pois estava menos interessado em
acusar os nazis do que em responder à questão de como podemos evitar que
aqueles crimes de guerra aconteçam no futuro. Ferencz sonhava com um
Tribunal Penal Internacional. Escreveu livros sobre ele, fez
constantemente lóbi a seu favor, até que finalmente se tornou uma
realidade no verão de 1998.
Ferencz é agora o único
procurador de Nuremberga ainda vivo. Trabalha todos os dias, escrevendo
artigos e dando conferências pelo mundo fora. O mês passado, no número
de abril da revista “Nexus”, criticou fortemente o Presidente Trump.
“Entre,
o senhor Ferencz está no seu escritório”, diz a mulher peruana que abre
a porta. Está ali sobretudo por causa da mulher de Ferencz, Gertrude,
com 100 anos, que está a dormir no sofá.
Quanto a Ferencz, parece enérgico hoje. De estatura baixa — cerca de metro e meio — veste uma camisa azul e calças de jogging.
Benjamin
Berell Ferencz ainda nada todos os dias, como se pode ser no
documentário “Prosecuting Evil” (acusando o mal) que foi feito sobre a
sua vida o ano passado. Também tenta completar cem flexões todas as
manhãs.
O primeiro
campo [que visitei] foi Buchenwald. Havia corpos por todo o lado. Mal se
podia ver se as pessoas ainda estavam vivas. Foi como um vislumbre do
inferno”
“Cheguei a 75 esta manhã”, diz
Ferencz. “Mas às vezes ultrapasso as cem. Um entrevistador de um jornal
local visitou-me o mês passado, e eu tinha feito 115 nessa manhã. Mas
quando li depois a entrevista, reparei que dizia que eu tinha feito
‘quinze flexões’. Claro que liguei imediatamente para o jornal”.
Os
olhos dele brilham. A sua figura é frágil mas sólida, como uma
escultura antiga. Qual o segredo para chegar a tão velho em tão boa
forma? Ferencz não fuma e não bebe, diz. Sempre foi desportivo. Na
juventude, praticou boxe. “Não me era permitido entrar em competições”,
diz bem-disposto, “pois achavam que era demasiado pequeno. Enfim, a
minha longevidade provavelmente tem só a ver com genes e nada a ver com o
meu estilo de vida”.
Talvez haja outra explicação para a sua vitalidade: ter um objetivo tão claro na sua vida?
Sim,
eu tenho uma vocação. E a origem é a Segunda Guerra Mundial. Eu tinha
combatido no Terceiro Exército do general Patton e fui nomeado
investigador de crimes de guerra depois da guerra. Isso implicou ter de
visitar diferentes campos de concentração. O meu primeiro campo foi
Buchenwald. Havia corpos por todo o lado. Mal se podia ver se as pessoas
ainda estavam vivas. Os que ainda estavam vivos à justa só conseguiam
pedir ajuda com os olhos. Foi como um vislumbre do inferno, e teve sem
dúvida um efeito traumático em mim. Todo o meu pensamento foi
determinado por isso. Porque passei o resto da minha vida a tentar
evitar que algo semelhante voltasse a acontecer. Isso é mais importante,
acho eu, do que acusar uma mão-cheia de assassinos em massa”.
Durante
o primeiro julgamento de Nuremberga, entre novembro de 1945 e abril de
1946, 22 nazis de alto nível foram condenados. Mas seriam julgados
muitos mais criminosos de guerra, em todos os tipos de categorias:
comandantes de campos, homens da SS, médicos que tinham levado a cabo
experiências médicas. Portanto, decidiu-se avançar com 12 casos
adicionais, a ser processados entre 1946 e 1948. Ferencz foi nomeado
procurador-chefe num desses julgamentos mais tardios, em 1947.
O
seu caso dizia respeito aos Einsatzgruppen, os esquadrões da morte
paramilitares na Frente Leste. Porque é que nomearam um procurador de 27
anos para um processo tão histórico?
Os
Einsatzgruppen tinham por tarefa matar todo o judeu — homem, mulher ou
criança — que encontrassem. E fazer o mesmo aos ciganos e outros
inimigos do Reich. Portanto fizeram-no. Todo os dias escreviam um
relatório e enviavam-no para Berlim. Como jovem investigador no tribunal
de Nuremberga, deparei com esses relatórios. Peguei na calculadora: 30
mil assassínios aqui, 46 mil ali. Somei-os todos. Quando cheguei a um
milhão, pensei: já chega. Até aí, não havia um processo separado para os
Einsatzgruppen. Mas peguei nas minhas provas e fui falar com Telford
Taylor, o procurador-chefe que o Presidente Truman tinha nomeado para
dirigir os julgamentos, e disse: “Precisamos de abrir um novo processo.”
E ele disse: “Ok, faça-o você.” Foi o meu primeiro caso. Nunca tinha
estado num tribunal!
Os assassínios cometidos pelas SS foram particularmente cruéis.
Sim,
alguns bateram a cabeça de um bebé contra uma árvore. Para salvar
munições. O general Ohlendorf das Einsatzgruppen disse: “Se virem uma
mãe com um bebé, foquem-se no bebé. Elas apertam sempre o bebé contra o
peito, portanto assim matam dois judeus de uma vez. E poupam as vossas
munições.” Também os lançavam para uma fossa e atiravam terra para cima
deles. O seu trabalho era exterminar todos os judeus que viam, como
baratas. No total, havia 3 mil membros desses Einsatzgruppen, dos quais
selecionei 22, com base no seu posto e educação. Mais do que 22 não era
possível, pela razão ridícula de que só tínhamos 22 lugares no tribunal.
O que aconteceu aos outros?
Nada. Safaram-se. Foi por isso que rapidamente percebi: julgar uns poucos nazis não é suficiente.
Ferencz
decidiu apostar mais alto. O jovem procurador pediu ao tribunal que
afirmasse, segundo a lei penal internacional, “o direito de todas as
pessoas a viverem em paz e dignidade, independentemente da sua raça ou
crença”.Foi a sua contribuição pessoal para os processos de Nuremberga:
estabelecer o fundamento da futura lei internacional. Ferencz: “Eu não
quis saber o que ia acontecer àquelas 22 pessoas. Nem pedi a pena
capital. Eles mataram um milhão de pessoas, o que querem fazer?
Cortá-los num milhão de bocados e dá-los aos cães para comerem? Nenhuma
pena adequada era concebível.”
Nunca
pensei que o nazismo fosse o único exemplo desse tipo de crueldade na
História. E todas as guerras têm atrocidades de ambos os lados, eu vi
isso como soldado”
Consegue imaginar alguém ser seduzido por Hitler, ou, como hoje, por uma ideologia de extrema-direita ou do tipo do Daesh?
Sim,
consigo imaginar isso muito bem. Nunca pensei que o nazismo fosse o
único exemplo desse tipo de crueldade na história. E todas as guerras
têm atrocidades de ambos os lados, eu vi isso como soldado. Lembro-me de
uma mulher alemã. Tinha participado na morte de um piloto americano.
Mas o que se descobriu? Que ela tinha perdido dois filhos nos
bombardeamentos americanos. Algumas coisas são compreensíveis, mas não
justificadas. Compreendo que se possa ficar cego com uma ideologia.
Metade dos alemães acreditavam realmente no que Hitler dizia. Que o povo
alemão não podia florescer porque estava a ser sabotado pelos judeus.
Ele fazia um discurso poderoso e as pessoas diziam: “Sieg Heil.
Deutschland uber alles!” Soa familiar? “Make America Great Again!”
Vamos
falar de Trump daqui a pouco. O que acha que devemos fazer com a nova
geração de criminosos de guerra, os combatentes do Daesh: julgamento ou
reeducação?
Os soldados do Daesh têm direito a um
julgamento justo. Se isso não for possível num tribunal local, temos a
sorte de ter o Tribunal Penal Internacional. E sim, devemos tentar
reeducá-los se possível. Mas não temos de reeducar apenas os combatentes
do autoproclamado Estado Islâmico. Temos de reeducar todos os que
acreditam no uso da força armada. Pensamos que os nazis e as pessoas do
Daesh foram ‘cegados’ por uma ideologia perigosa. Mas eles não são
nenhuma exceção.
Em “Prosecuting Evil”, diz: “A guerra transforma pessoas decentes em assassinos em série.”
Sim,
portanto a verdadeira solução é parar de fazer a guerra. Mas isso não
significa que toda a gente fique isenta de responsabilidades numa
guerra. A guerra não é um facto abstrato. Quem começa guerras são
pessoas. E os crimes são cometidos por indivíduos, a quem devemos
responsabilizar pelas suas ações.
Ferencz
foi o primeiro a usar em tribunal o termo “genocídio”, inventado por
Raphael Lemkin, um advogado polaco judeu. É uma contração da palavra
grega ‘genus’ (espécie, raça, povo) e da latina ‘caedera’ (matar).
Lemkin descreveu o conceito no seu livro “O Domínio do Eixo na Europa
Ocupada” (1948) como “a destruição de uma nação ou de um grupo étnico”.
Ferencz: “Lemkin também estava em Nuremberga. Era um homem pobre, tinha
sempre buracos na camisa. Deu-me o seu livro, eu li-o e achei que ele
estava correto. O genocídio ainda não estava nos códigos. Eu sabia bem
isso, mas não me importei. Usei-o nas minhas alegações, embora
legalmente não fosse possível: acusar os nazis por um crime que ainda
não tinha sido reconhecido como crime.” Essa ousadia ajudou a lei
internacional a avançar. Em 1948, a Convenção sobre Genocídio foi
adotada pelas Nações Unidas. Mas quando lhe referem o seu sucesso,
Ferencz expressa frustração sobre o laxismo do seu próprio país. “É uma
vergonha que tenha demorado 40 anos para os EUA assinarem a Convenção
sobre Genocídio. Só em 1998!” Após Nuremberga, Ferencz estava
determinado a agir para tornar o mundo um lugar mais seguro e pacífico.
Trabalhou como advogado em Nova Iorque. Nos seus tempos livres, lia tudo
o que havia para ler sobre lei internacional, na biblioteca das Nações
Unidas e em Harvard. “Percebi: para ter ordem numa cidade, num país ou
num planeta precisamos de leis e de tribunais. É esse o meu compromisso.
Ainda. Todas as manhãs começo a trabalhar às oito e vou para cama às
dez da noite. 365 dias por ano.”
Nunca tira férias?
Nunca.
Pensão, também não recebo. Tenho de jogar golfe? Tentar atirar uma bola
para um buraco, que absurdo é esse? Por isso estou aqui com um
simpático repórter de Amesterdão, que veio para me perguntar como
havemos de salvar o mundo.
Realmente: como devemos salvar o mundo?
Posso
dar-lhe uma resposta em três volumes ou em três palavras. A resposta em
três palavras é, as pessoas adoram slogans: “Law, Not War”. Isso
significa que os Estados vão a tribunal no caso de uma disputa, como as
pessoas comuns. Sempre defendi um Tribunal Penal Internacional
permanente, e ele existe desde 2002, mas os EUA não o reconheceram. John
Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump [Bolton deixou
entretanto esse cargo e tornou-se um crítico de alguns comportamentos de
Trump ], chama mesmo ao tribunal ‘ilegal’ e diz que os EUA jamais o
reconhecerão.
Num ensaio da edição de abril da
revista “Nexus”, comparou o Presidente Trump ao general Ohlendorf, um
dos 22 nazis que julgou em Nuremberga. Porquê?
Quando
Trump fez o seu primeiro discurso na ONU, disse acerca da Coreia do
Norte: “Se nos ameaçarem, destruir-vos-emos totalmente.” Como se destrói
um país inteiro e a sua população? Foi o que os alemães fizeram com os
judeus. Vai deitar-lhes uma bomba atómica? Do que está a falar? Pensei
em Ohlendorf, que condenámos à morte em Nuremberga. Enforcámo-lo pelo
que Trump ameaçou fazer com a Coreia do Norte. Vi Trump e pensei: é
Ohlendorf!
Também disse isso a Trump?
Não, nunca nos encontrámos. Mas ele talvez saiba. Pela minha parte, pode ir para o inferno.
Consegue imaginar que muitas pessoas achem que comparar Trump aos nazis é ir demasiado longe?
Sim,
vai demasiado longe, se põe isso assim. Os nazis mataram milhões de
pessoas. Trump não. Mas ameaça fazê-lo. Ameaça o genocídio:
destruir-vos-emos totalmente. Não digo que ele seja um Hitler, mas segue
a mesma linha de argumentação que ouvimos dos nazis em Nuremberga. O
pensar de Trump é o pensar de Hitler, no sentido do pensar ‘matem-nos
todos’. A sua política é desumana e uma vergonha para os Estados Unidos.
Eu vim para a América com os meus pais nos anos 20, como emigrantes
refugiados da Áustria-Hungria. Trump quer fechar as fronteiras,
construir um muro! Eu vi a Linha Maginot, o Muro de Berlim. Não faz
sentido construir um muro, é estúpido. Vejam como Trump trata os
mexicanos que tentam vir para aqui. Separa as mães dos bebés. Isso é um
crime contra a humanidade.
Acha mesmo que o
Governo de Trump é pior em matéria de direitos humanos do que os de Bush
ou Clinton? Para só referir algumas coisas: um número recorde de
ataques com drones foram lançados durante a
Administração Obama. E com Bush, os Estados Unidos invadiram o Iraque,
resultando em muitas baixas de civis inocentes.
Não
gosto de fazer comparações como essas: quem é o pior? Devemos julgar as
pessoas por atos específicos dos quais são responsáveis. Tirar crianças
aos seus pais porque estes não têm os papéis de entrada certos é aos
meus olhos um crime contra a humanidade
Os
nazis mataram milhões de pessoas. Trump não. Não digo que seja um
Hitler, mas segue a mesma linha de argumentação que ouvimos dos nazis em
Nuremberga”
Não estou a falar de Trump, de
Bush ou de qualquer outro. Luto por um mundo onde cada líder possa ser
acusado pelo uso ilegal da força armada. Em 1958, o Presidente
Eisenhower disse: “Num sentido muito real, o mundo já não tem escolha
entre a força e a lei. Para a civilização sobreviver temos de escolher o
império de lei.” Estas palavras são mais importantes do que nunca,
agora que podemos cortar a rede de eletricidade mundial com ciberarmas. É
possível matar milhões de pessoas de uma vez. A Rússia e a China também
podem fazer isso. É por isso que temos de mudar toda a forma de pensar.
De
vez em quando, Ferencz não compreende bem uma pergunta. “Aproxime-se um
pouco”, diz, apontando para o seu ouvido esquerdo. “Este ouvido já tem
cem anos. O outro só 99.”
Em “Prosecuting
Evil”, o seu filho diz-lhe que costumava repetir a mesma pergunta todas
as noites à mesa de jantar: “O que fizeste hoje pela humanidade?”
É correto! Eles inventavam sempre algo de novo. Diziam, ‘ajudei o professor esta manhã’!
E qual era o castigo se não conseguissem pensar em nada?
Não
comiam sobremesa! Tenho quatro filhos, todos nascidos em Nuremberga
quando eu era o procurador-chefe nos julgamentos. Quando me perguntam
como conseguia, digo: o tribunal de Nuremberga estava muitas vezes de
férias. Sim, também devemos ser capazes de rir. O mundo é tão triste. Se
não conseguirmos rir, afogamo-nos em lágrimas.
Também transformou os seus filhos em pessoas que melhoram o mundo?
De
facto, sim. As minhas três filhas trabalham com migrantes e
organizações ambientais. Resultou, devo dizer. Porque todos os meus
filhos estão agora na casa dos 70 e reformados. Exceto o meu filho, que
trabalha comigo.
Em 1998, o
sonho de Ferencz pareceu tornar-se realidade quando o estatuto do
Tribunal Penal Internacional foi elaborado em Roma. A grande questão era
se os EUA reconheceriam o tribunal. Através de um texto de opinião
publicado a 12 de dezembro de 2000 no “New York Times”, Ferencz
conseguiu conseguiu convencer o Presidente Clinton a assinar o estatuto.
Curiosamente,
escreveu essa peça juntamente com Robert McNamara, que foi secretário
da defesa dos presidentes Kennedy e Johnson durante a guerra do
Vietname.
McNamara podia ter sido um dos primeiros
réus. Ele sabia-o muito bem. Porém, quis fazer isto. Estava genuinamente
arrependido. Como ministro, ele sabia que não podiam vencer a guerra do
Vietname e que era inútil enviar mais tropas. Sentia culpa por isso e
abordou-me para escrever aquela peça de opinião. Não havia grande perigo
de ele vir realmente a ser condenado. As coisas não eram assim tão
rápidas. O ponto era: se na altura houvesse um Tribunal Penal
Internacional, a guerra do Vietname teria provavelmente durado menos. Se
os líderes souberem que poderão vir a ser responsabilizados pelas suas
ações num tribunal independente, serão mais relutantes em enviar tropas e
deitar bombas. Foi também o que McNamara compreendeu. E conseguimos
convencer Clinton, embora ele tenha esperado até ao último minuto. Na
véspera de Ano Novo em 2000, mandou alguém a um escritório praticamente
vazio nas Nações Unidas em Nova Iorque para assinar o Estatuto de Roma
do Tribunal Penal Internacional em seu nome. Foi o seu último ato como
Presidente.
Essa assinatura tem algum valor?
Primeiro,
o estatuto não foi ratificado. Mais, a assinatura foi revogada por
George W. Bush, que também trabalhou com Bolton. E em 2002 Bolton
conseguiu convencer o Congresso a adotar a Lei da Invasão de Haia, que
autoriza o Presidente americano e enviar soldados para libertar presos
norte-americanos da sua cela na Haia. Também participei numa
manifestação contra isso, na praia de Scheveningen, com uma bandeira
americana na mão.
Os EUA às vezes dizem: o tribunal pode ser manipulado e usado contra nós pelos nossos inimigos.
É
absurdo. Podemos sempre dizer se um juiz tem preconceitos. Se passarmos
um sinal vermelho, dizemos que o juiz nos multa porque não gosta do
nosso carro. São só desculpas estúpidas para escapar à lei. Bolton nega a
existência da lei internacional. Faz discursos contra o Tribunal Penal
Internacional a pessoas muito influentes pelo país fora. E provavelmente
também no resto do mundo. Tem direito à sua opinião, mas não é a minha.
Eu digo: é este o mundo que quer? Que enquanto EUA somos o poder
dominante e podemos matar quem quer que se atravesse no caminho? É isso
que Bolton e Trump têm em mente.
É justo ter um tribunal que atualmente acusa sobretudo líderes africanos, mas não americanos?
Claro
que não. A lei deve aplicar-se a toda a gente. Mas o ponto, acho, é que
finalmente temos tribunais internacionais. Por enquanto não são
perfeitos. São o início de um processo de aprendizagem, no qual
aprendemos a ir à justiça em vez de pegar em armas. É difícil descobrir
provas, ou sequer entrar no país onde os crimes foram cometidos. Talvez o
próprio chefe de estado esteja envolvido e não queira colaborar.
Precisamos de uma data de gente e dinheiro. são problemas de crescimento
do Tribunal Penal Internacional. É um protótipo. Temos de ser
pacientes.
É por isso
que eu digo à nova geração: parem de fazer guerra, tornem a guerra uma
coisa do passado. Lei, não guerra. Tenho conseguido progressos, mas
ainda há guerras”
Qual acha que é o principal obstáculo a ultrapassar para o Tribunal Penal Internacional?
Devia-se
criar um ramo de execução, para impor o cumprimento das leis e dos
julgamentos. Quando não se executa, a lei é uma farsa. Mas isso para já é
demasiado ambicioso. Neste momento, o tribunal luta pela sua
existência. Com Obama não foi bloqueado, houve mesmo cooperação. Bolton e
Trump preferem vê-lo desaparecer. É um momento triste. Esperei muito
tempo por esse tribunal, desde os 27 anos. No primeiro processo
pediram-me para concluir as alegações finais. Tinha 92 anos.
Demorou um pouco.
Sim. Às vezes digo: não tenho tempo para morrer.
Recentemente,
Ferencz teve um ataque cardíaco num avião para Chicago, onde ia dar uma
conferência. Acordou no hospital. Desde então, tem estado a oferecer
todos os seus livros. “Na minha casa em New Rochelle, Nova Iorque, há
milhares de livros. Também doo o meu dinheiro, por exemplo ao Museu do
Holocausto em Washington. Nasci pobre, de emigrantes judeus da
Transilvânia, na Áustria-Hungria. Tornei-me rico. O meu objetivo é
morrer pobre outra vez.”
Está satisfeito com a sua vida?
Sim.
A vida tem sido boa para mim. Tenho um casamento feliz há mais de 70
anos. Conheci a Gertrude no Bronx, em Nova Iorque. Ela também era da
Transilvânia. Nunca tivemos uma briga ao longo destes setenta anos.
Nunca?
Nunca!
O
seu sonho ainda é que os Estados, em caso de uma disputa, não entrem em
guerra mas vão a um tribunal independente. Acha que esse dia alguma vez
chegará?
É o meu objetivo! Pouco depois da guerra,
falei com alguns professores que disseram: é uma ideia nobre, mas não
vai ter sucesso. Não perca o seu tempo com isso. E eu disse: “Sei como é
difícil, mas vou tentar.” Às vezes penso nos irmãos Wright. Eles tinham
uma bicicleta, puseram-lhe uma asa, e disseram: “Podemos fazer esta
bicicleta voar.” E as pessoas disseram, “se Deus quisesse que o homem
voasse, tinha-lhe dado asas”. Chamaram aos irmãos Wright ‘sonhadores’,
como eu sou. Mas agora temos milhares de aviões no ar e a maioria deles
voa sem cair. É por isso que eu digo à nova geração: é a vossa vez,
parem de fazer guerra, tornem a guerra uma coisa do passado. Lei, não
guerra. Tenho conseguido progressos, mas ainda há guerras. É por isso
que continuo sempre a trabalhar, mesmo no meu centésimo ano.
© Veenhoven-Amsterdam, 2020 Tradução Luís M. Faria
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