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sábado, 16 de maio de 2020

Um homem


Entrevista
Ben Ferencz
“O pensar de Trump é o pensar de Hitler”
<span class="creditofoto">Brooks Kraft/Getty Images</span>
Brooks Kraft/Getty Images
É o único procurador do célebre tribunal de Nuremberga, que julgou os criminosos nazis, ainda vivo. Passou a vida inteira a tentar evitar que a História se repetisse. Aos cem anos ainda não perdeu a esperança. E não poupa criticas a Trump
POR Colin van Heezik (originalmente publicado no “De Volkskrant”)

Delray Beach, Florida. O bungalow cor-de-rosa fica num vasto parque, onde a relva é um pouco verde demais e as casas de férias parecem bolos a derreter ao sol. Em frente à casa está um Buick Century com uma matrícula que diz “Law, Not War” (lei, não guerra)”.
O slogan hippie não era Make Love, Not War? Sim, mas este é o carro de Ben Ferencz. Aos 27 anos, ele foi nomeado procurador-chefe num dos julgamentos de nazis em Nuremberga. Um procurador peculiar, pois estava menos interessado em acusar os nazis do que em responder à questão de como podemos evitar que aqueles crimes de guerra aconteçam no futuro. Ferencz sonhava com um Tribunal Penal Internacional. Escreveu livros sobre ele, fez constantemente lóbi a seu favor, até que finalmente se tornou uma realidade no verão de 1998.
Ferencz é agora o único procurador de Nuremberga ainda vivo. Trabalha todos os dias, escrevendo artigos e dando conferências pelo mundo fora. O mês passado, no número de abril da revista “Nexus”, criticou fortemente o Presidente Trump.
“Entre, o senhor Ferencz está no seu escritório”, diz a mulher peruana que abre a porta. Está ali sobretudo por causa da mulher de Ferencz, Gertrude, com 100 anos, que está a dormir no sofá.
Quanto a Ferencz, parece enérgico hoje. De estatura baixa — cerca de metro e meio — veste uma camisa azul e calças de jogging.
Benjamin Berell Ferencz ainda nada todos os dias, como se pode ser no documentário “Prosecuting Evil” (acusando o mal) que foi feito sobre a sua vida o ano passado. Também tenta completar cem flexões todas as manhãs.
O primeiro campo [que visitei] foi Buchenwald. Havia corpos por todo o lado. Mal se podia ver se as pessoas ainda estavam vivas. Foi como um vislumbre do inferno”
“Cheguei a 75 esta manhã”, diz Ferencz. “Mas às vezes ultrapasso as cem. Um entrevistador de um jornal local visitou-me o mês passado, e eu tinha feito 115 nessa manhã. Mas quando li depois a entrevista, reparei que dizia que eu tinha feito ‘quinze flexões’. Claro que liguei imediatamente para o jornal”.
Os olhos dele brilham. A sua figura é frágil mas sólida, como uma escultura antiga. Qual o segredo para chegar a tão velho em tão boa forma? Ferencz não fuma e não bebe, diz. Sempre foi desportivo. Na juventude, praticou boxe. “Não me era permitido entrar em competições”, diz bem-disposto, “pois achavam que era demasiado pequeno. Enfim, a minha longevidade provavelmente tem só a ver com genes e nada a ver com o meu estilo de vida”.
Talvez haja outra explicação para a sua vitalidade: ter um objetivo tão claro na sua vida?
Sim, eu tenho uma vocação. E a origem é a Segunda Guerra Mundial. Eu tinha combatido no Terceiro Exército do general Patton e fui nomeado investigador de crimes de guerra depois da guerra. Isso implicou ter de visitar diferentes campos de concentração. O meu primeiro campo foi Buchenwald. Havia corpos por todo o lado. Mal se podia ver se as pessoas ainda estavam vivas. Os que ainda estavam vivos à justa só conseguiam pedir ajuda com os olhos. Foi como um vislumbre do inferno, e teve sem dúvida um efeito traumático em mim. Todo o meu pensamento foi determinado por isso. Porque passei o resto da minha vida a tentar evitar que algo semelhante voltasse a acontecer. Isso é mais importante, acho eu, do que acusar uma mão-cheia de assassinos em massa”.
Durante o primeiro julgamento de Nuremberga, entre novembro de 1945 e abril de 1946, 22 nazis de alto nível foram condenados. Mas seriam julgados muitos mais criminosos de guerra, em todos os tipos de categorias: comandantes de campos, homens da SS, médicos que tinham levado a cabo experiências médicas. Portanto, decidiu-se avançar com 12 casos adicionais, a ser processados entre 1946 e 1948. Ferencz foi nomeado procurador-chefe num desses julgamentos mais tardios, em 1947.
O seu caso dizia respeito aos Einsatzgruppen, os esquadrões da morte paramilitares na Frente Leste. Porque é que nomearam um procurador de 27 anos para um processo tão histórico?
Os Einsatzgruppen tinham por tarefa matar todo o judeu — homem, mulher ou criança — que encontrassem. E fazer o mesmo aos ciganos e outros inimigos do Reich. Portanto fizeram-no. Todo os dias escreviam um relatório e enviavam-no para Berlim. Como jovem investigador no tribunal de Nuremberga, deparei com esses relatórios. Peguei na calculadora: 30 mil assassínios aqui, 46 mil ali. Somei-os todos. Quando cheguei a um milhão, pensei: já chega. Até aí, não havia um processo separado para os Einsatzgruppen. Mas peguei nas minhas provas e fui falar com Telford Taylor, o procurador-chefe que o Presidente Truman tinha nomeado para dirigir os julgamentos, e disse: “Precisamos de abrir um novo processo.” E ele disse: “Ok, faça-o você.” Foi o meu primeiro caso. Nunca tinha estado num tribunal!
<span class="arranque"><span style="color:#1f54a5">Convicção</span></span> Em frente à sua casa, na Florida, há um Buick Century com uma matrícula que diz “Law, Not War” (lei, não guerra)” <span class="creditofoto">Brooks Kraft/Getty Images</span>
Convicção Em frente à sua casa, na Florida, há um Buick Century com uma matrícula que diz “Law, Not War” (lei, não guerra)” Brooks Kraft/Getty Images
Os assassínios cometidos pelas SS foram particularmente cruéis.
Sim, alguns bateram a cabeça de um bebé contra uma árvore. Para salvar munições. O general Ohlendorf das Einsatzgruppen disse: “Se virem uma mãe com um bebé, foquem-se no bebé. Elas apertam sempre o bebé contra o peito, portanto assim matam dois judeus de uma vez. E poupam as vossas munições.” Também os lançavam para uma fossa e atiravam terra para cima deles. O seu trabalho era exterminar todos os judeus que viam, como baratas. No total, havia 3 mil membros desses Einsatzgruppen, dos quais selecionei 22, com base no seu posto e educação. Mais do que 22 não era possível, pela razão ridícula de que só tínhamos 22 lugares no tribunal.
O que aconteceu aos outros?
Nada. Safaram-se. Foi por isso que rapidamente percebi: julgar uns poucos nazis não é suficiente.
Ferencz decidiu apostar mais alto. O jovem procurador pediu ao tribunal que afirmasse, segundo a lei penal internacional, “o direito de todas as pessoas a viverem em paz e dignidade, independentemente da sua raça ou crença”.Foi a sua contribuição pessoal para os processos de Nuremberga: estabelecer o fundamento da futura lei internacional. Ferencz: “Eu não quis saber o que ia acontecer àquelas 22 pessoas. Nem pedi a pena capital. Eles mataram um milhão de pessoas, o que querem fazer? Cortá-los num milhão de bocados e dá-los aos cães para comerem? Nenhuma pena adequada era concebível.”
Nunca pensei que o nazismo fosse o único exemplo desse tipo de crueldade na História. E todas as guerras têm atrocidades de ambos os lados, eu vi isso como soldado”
Consegue imaginar alguém ser seduzido por Hitler, ou, como hoje, por uma ideologia de extrema-direita ou do tipo do Daesh?
Sim, consigo imaginar isso muito bem. Nunca pensei que o nazismo fosse o único exemplo desse tipo de crueldade na história. E todas as guerras têm atrocidades de ambos os lados, eu vi isso como soldado. Lembro-me de uma mulher alemã. Tinha participado na morte de um piloto americano. Mas o que se descobriu? Que ela tinha perdido dois filhos nos bombardeamentos americanos. Algumas coisas são compreensíveis, mas não justificadas. Compreendo que se possa ficar cego com uma ideologia. Metade dos alemães acreditavam realmente no que Hitler dizia. Que o povo alemão não podia florescer porque estava a ser sabotado pelos judeus. Ele fazia um discurso poderoso e as pessoas diziam: “Sieg Heil. Deutschland uber alles!” Soa familiar? “Make America Great Again!”
Vamos falar de Trump daqui a pouco. O que acha que devemos fazer com a nova geração de criminosos de guerra, os combatentes do Daesh: julgamento ou reeducação?
Os soldados do Daesh têm direito a um julgamento justo. Se isso não for possível num tribunal local, temos a sorte de ter o Tribunal Penal Internacional. E sim, devemos tentar reeducá-los se possível. Mas não temos de reeducar apenas os combatentes do autoproclamado Estado Islâmico. Temos de reeducar todos os que acreditam no uso da força armada. Pensamos que os nazis e as pessoas do Daesh foram ‘cegados’ por uma ideologia perigosa. Mas eles não são nenhuma exceção.
Em “Prosecuting Evil”, diz: “A guerra transforma pessoas decentes em assassinos em série.”
Sim, portanto a verdadeira solução é parar de fazer a guerra. Mas isso não significa que toda a gente fique isenta de responsabilidades numa guerra. A guerra não é um facto abstrato. Quem começa guerras são pessoas. E os crimes são cometidos por indivíduos, a quem devemos responsabilizar pelas suas ações.
Ferencz foi o primeiro a usar em tribunal o termo “genocídio”, inventado por Raphael Lemkin, um advogado polaco judeu. É uma contração da palavra grega ‘genus’ (espécie, raça, povo) e da latina ‘caedera’ (matar). Lemkin descreveu o conceito no seu livro “O Domínio do Eixo na Europa Ocupada” (1948) como “a destruição de uma nação ou de um grupo étnico”. Ferencz: “Lemkin também estava em Nuremberga. Era um homem pobre, tinha sempre buracos na camisa. Deu-me o seu livro, eu li-o e achei que ele estava correto. O genocídio ainda não estava nos códigos. Eu sabia bem isso, mas não me importei. Usei-o nas minhas alegações, embora legalmente não fosse possível: acusar os nazis por um crime que ainda não tinha sido reconhecido como crime.” Essa ousadia ajudou a lei internacional a avançar. Em 1948, a Convenção sobre Genocídio foi adotada pelas Nações Unidas. Mas quando lhe referem o seu sucesso, Ferencz expressa frustração sobre o laxismo do seu próprio país. “É uma vergonha que tenha demorado 40 anos para os EUA assinarem a Convenção sobre Genocídio. Só em 1998!” Após Nuremberga, Ferencz estava determinado a agir para tornar o mundo um lugar mais seguro e pacífico. Trabalhou como advogado em Nova Iorque. Nos seus tempos livres, lia tudo o que havia para ler sobre lei internacional, na biblioteca das Nações Unidas e em Harvard. “Percebi: para ter ordem numa cidade, num país ou num planeta precisamos de leis e de tribunais. É esse o meu compromisso. Ainda. Todas as manhãs começo a trabalhar às oito e vou para cama às dez da noite. 365 dias por ano.”
Nunca tira férias?
Nunca. Pensão, também não recebo. Tenho de jogar golfe? Tentar atirar uma bola para um buraco, que absurdo é esse? Por isso estou aqui com um simpático repórter de Amesterdão, que veio para me perguntar como havemos de salvar o mundo.
Realmente: como devemos salvar o mundo?
Posso dar-lhe uma resposta em três volumes ou em três palavras. A resposta em três palavras é, as pessoas adoram slogans: “Law, Not War”. Isso significa que os Estados vão a tribunal no caso de uma disputa, como as pessoas comuns. Sempre defendi um Tribunal Penal Internacional permanente, e ele existe desde 2002, mas os EUA não o reconheceram. John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump [Bolton deixou entretanto esse cargo e tornou-se um crítico de alguns comportamentos de Trump ], chama mesmo ao tribunal ‘ilegal’ e diz que os EUA jamais o reconhecerão.
Num ensaio da edição de abril da revista “Nexus”, comparou o Presidente Trump ao general Ohlendorf, um dos 22 nazis que julgou em Nuremberga. Porquê?
Quando Trump fez o seu primeiro discurso na ONU, disse acerca da Coreia do Norte: “Se nos ameaçarem, destruir-vos-emos totalmente.” Como se destrói um país inteiro e a sua população? Foi o que os alemães fizeram com os judeus. Vai deitar-lhes uma bomba atómica? Do que está a falar? Pensei em Ohlendorf, que condenámos à morte em Nuremberga. Enforcámo-lo pelo que Trump ameaçou fazer com a Coreia do Norte. Vi Trump e pensei: é Ohlendorf!
Também disse isso a Trump?
Não, nunca nos encontrámos. Mas ele talvez saiba. Pela minha parte, pode ir para o inferno.
Consegue imaginar que muitas pessoas achem que comparar Trump aos nazis é ir demasiado longe?
Sim, vai demasiado longe, se põe isso assim. Os nazis mataram milhões de pessoas. Trump não. Mas ameaça fazê-lo. Ameaça o genocídio: destruir-vos-emos totalmente. Não digo que ele seja um Hitler, mas segue a mesma linha de argumentação que ouvimos dos nazis em Nuremberga. O pensar de Trump é o pensar de Hitler, no sentido do pensar ‘matem-nos todos’. A sua política é desumana e uma vergonha para os Estados Unidos. Eu vim para a América com os meus pais nos anos 20, como emigrantes refugiados da Áustria-Hungria. Trump quer fechar as fronteiras, construir um muro! Eu vi a Linha Maginot, o Muro de Berlim. Não faz sentido construir um muro, é estúpido. Vejam como Trump trata os mexicanos que tentam vir para aqui. Separa as mães dos bebés. Isso é um crime contra a humanidade.
Acha mesmo que o Governo de Trump é pior em matéria de direitos humanos do que os de Bush ou Clinton? Para só referir algumas coisas: um número recorde de ataques com drones foram lançados durante a Administração Obama. E com Bush, os Estados Unidos invadiram o Iraque, resultando em muitas baixas de civis inocentes.
Não gosto de fazer comparações como essas: quem é o pior? Devemos julgar as pessoas por atos específicos dos quais são responsáveis. Tirar crianças aos seus pais porque estes não têm os papéis de entrada certos é aos meus olhos um crime contra a humanidade
Os nazis mataram milhões de pessoas. Trump não. Não digo que seja um Hitler, mas segue a mesma linha de argumentação que ouvimos dos nazis em Nuremberga”
Não estou a falar de Trump, de Bush ou de qualquer outro. Luto por um mundo onde cada líder possa ser acusado pelo uso ilegal da força armada. Em 1958, o Presidente Eisenhower disse: “Num sentido muito real, o mundo já não tem escolha entre a força e a lei. Para a civilização sobreviver temos de escolher o império de lei.” Estas palavras são mais importantes do que nunca, agora que podemos cortar a rede de eletricidade mundial com ciberarmas. É possível matar milhões de pessoas de uma vez. A Rússia e a China também podem fazer isso. É por isso que temos de mudar toda a forma de pensar.
De vez em quando, Ferencz não compreende bem uma pergunta. “Aproxime-se um pouco”, diz, apontando para o seu ouvido esquerdo. “Este ouvido já tem cem anos. O outro só 99.”
Em “Prosecuting Evil”, o seu filho diz-lhe que costumava repetir a mesma pergunta todas as noites à mesa de jantar: “O que fizeste hoje pela humanidade?”
É correto! Eles inventavam sempre algo de novo. Diziam, ‘ajudei o professor esta manhã’!
E qual era o castigo se não conseguissem pensar em nada?
Não comiam sobremesa! Tenho quatro filhos, todos nascidos em Nuremberga quando eu era o procurador-chefe nos julgamentos. Quando me perguntam como conseguia, digo: o tribunal de Nuremberga estava muitas vezes de férias. Sim, também devemos ser capazes de rir. O mundo é tão triste. Se não conseguirmos rir, afogamo-nos em lágrimas.
Também transformou os seus filhos em pessoas que melhoram o mundo?
De facto, sim. As minhas três filhas trabalham com migrantes e organizações ambientais. Resultou, devo dizer. Porque todos os meus filhos estão agora na casa dos 70 e reformados. Exceto o meu filho, que trabalha comigo.
Em 1998, o sonho de Ferencz pareceu tornar-se realidade quando o estatuto do Tribunal Penal Internacional foi elaborado em Roma. A grande questão era se os EUA reconheceriam o tribunal. Através de um texto de opinião publicado a 12 de dezembro de 2000 no “New York Times”, Ferencz conseguiu conseguiu convencer o Presidente Clinton a assinar o estatuto.
Curiosamente, escreveu essa peça juntamente com Robert McNamara, que foi secretário da defesa dos presidentes Kennedy e Johnson durante a guerra do Vietname.
McNamara podia ter sido um dos primeiros réus. Ele sabia-o muito bem. Porém, quis fazer isto. Estava genuinamente arrependido. Como ministro, ele sabia que não podiam vencer a guerra do Vietname e que era inútil enviar mais tropas. Sentia culpa por isso e abordou-me para escrever aquela peça de opinião. Não havia grande perigo de ele vir realmente a ser condenado. As coisas não eram assim tão rápidas. O ponto era: se na altura houvesse um Tribunal Penal Internacional, a guerra do Vietname teria provavelmente durado menos. Se os líderes souberem que poderão vir a ser responsabilizados pelas suas ações num tribunal independente, serão mais relutantes em enviar tropas e deitar bombas. Foi também o que McNamara compreendeu. E conseguimos convencer Clinton, embora ele tenha esperado até ao último minuto. Na véspera de Ano Novo em 2000, mandou alguém a um escritório praticamente vazio nas Nações Unidas em Nova Iorque para assinar o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional em seu nome. Foi o seu último ato como Presidente.
Essa assinatura tem algum valor?
Primeiro, o estatuto não foi ratificado. Mais, a assinatura foi revogada por George W. Bush, que também trabalhou com Bolton. E em 2002 Bolton conseguiu convencer o Congresso a adotar a Lei da Invasão de Haia, que autoriza o Presidente americano e enviar soldados para libertar presos norte-americanos da sua cela na Haia. Também participei numa manifestação contra isso, na praia de Scheveningen, com uma bandeira americana na mão.
<span class="creditofoto">Brooks Kraft/Getty Images</span>
Brooks Kraft/Getty Images
Os EUA às vezes dizem: o tribunal pode ser manipulado e usado contra nós pelos nossos inimigos.
É absurdo. Podemos sempre dizer se um juiz tem preconceitos. Se passarmos um sinal vermelho, dizemos que o juiz nos multa porque não gosta do nosso carro. São só desculpas estúpidas para escapar à lei. Bolton nega a existência da lei internacional. Faz discursos contra o Tribunal Penal Internacional a pessoas muito influentes pelo país fora. E provavelmente também no resto do mundo. Tem direito à sua opinião, mas não é a minha. Eu digo: é este o mundo que quer? Que enquanto EUA somos o poder dominante e podemos matar quem quer que se atravesse no caminho? É isso que Bolton e Trump têm em mente.
É justo ter um tribunal que atualmente acusa sobretudo líderes africanos, mas não americanos?
Claro que não. A lei deve aplicar-se a toda a gente. Mas o ponto, acho, é que finalmente temos tribunais internacionais. Por enquanto não são perfeitos. São o início de um processo de aprendizagem, no qual aprendemos a ir à justiça em vez de pegar em armas. É difícil descobrir provas, ou sequer entrar no país onde os crimes foram cometidos. Talvez o próprio chefe de estado esteja envolvido e não queira colaborar. Precisamos de uma data de gente e dinheiro. são problemas de crescimento do Tribunal Penal Internacional. É um protótipo. Temos de ser pacientes.
É por isso que eu digo à nova geração: parem de fazer guerra, tornem a guerra uma coisa do passado. Lei, não guerra. Tenho conseguido progressos, mas ainda há guerras”
Qual acha que é o principal obstáculo a ultrapassar para o Tribunal Penal Internacional?
Devia-se criar um ramo de execução, para impor o cumprimento das leis e dos julgamentos. Quando não se executa, a lei é uma farsa. Mas isso para já é demasiado ambicioso. Neste momento, o tribunal luta pela sua existência. Com Obama não foi bloqueado, houve mesmo cooperação. Bolton e Trump preferem vê-lo desaparecer. É um momento triste. Esperei muito tempo por esse tribunal, desde os 27 anos. No primeiro processo pediram-me para concluir as alegações finais. Tinha 92 anos.
Demorou um pouco.
Sim. Às vezes digo: não tenho tempo para morrer.
Recentemente, Ferencz teve um ataque cardíaco num avião para Chicago, onde ia dar uma conferência. Acordou no hospital. Desde então, tem estado a oferecer todos os seus livros. “Na minha casa em New Rochelle, Nova Iorque, há milhares de livros. Também doo o meu dinheiro, por exemplo ao Museu do Holocausto em Washington. Nasci pobre, de emigrantes judeus da Transilvânia, na Áustria-Hungria. Tornei-me rico. O meu objetivo é morrer pobre outra vez.”
Está satisfeito com a sua vida?
Sim. A vida tem sido boa para mim. Tenho um casamento feliz há mais de 70 anos. Conheci a Gertrude no Bronx, em Nova Iorque. Ela também era da Transilvânia. Nunca tivemos uma briga ao longo destes setenta anos.
Nunca?
Nunca!
O seu sonho ainda é que os Estados, em caso de uma disputa, não entrem em guerra mas vão a um tribunal independente. Acha que esse dia alguma vez chegará?
É o meu objetivo! Pouco depois da guerra, falei com alguns professores que disseram: é uma ideia nobre, mas não vai ter sucesso. Não perca o seu tempo com isso. E eu disse: “Sei como é difícil, mas vou tentar.” Às vezes penso nos irmãos Wright. Eles tinham uma bicicleta, puseram-lhe uma asa, e disseram: “Podemos fazer esta bicicleta voar.” E as pessoas disseram, “se Deus quisesse que o homem voasse, tinha-lhe dado asas”. Chamaram aos irmãos Wright ‘sonhadores’, como eu sou. Mas agora temos milhares de aviões no ar e a maioria deles voa sem cair. É por isso que eu digo à nova geração: é a vossa vez, parem de fazer guerra, tornem a guerra uma coisa do passado. Lei, não guerra. Tenho conseguido progressos, mas ainda há guerras. É por isso que continuo sempre a trabalhar, mesmo no meu centésimo ano.
© Veenhoven-Amsterdam, 2020 Tradução Luís M. Faria

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