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quinta-feira, 30 de setembro de 2021

OPINIÃO

 Portugal, à semelhança de muitos outros países, viu descer o número de operários produtivos (indústria), o chamado proletariado clássico, e viu subir o número dos assalariados dos serviços (ou improdutivos, segundo a classificação marxista, ou semi-produtivos), cada vez mais precários. O proletariado agrícola do Alentejo já há muito que desapareceu.

  Aumento exponencial dos serviços, mecanização, informação e robótica. Crescimento do assalariado precário submetido, fragmentado, sem a coesão proporcionada pelos sindicatos e as grandes fábricas.

  O proletariado não morreu. Mudou-se.

Quem teimar em pensar à maneira de cem anos atrás, engana-se e, sem o querer, engana os outros.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Um social-democrata reformista que sabe do que fala porque viveu por dentro a trafulhice dos banqueiros e seus acólitos políticos

 Wook.pt - Comportem-se Como Adultos 

«Um dos meus poucos heróis. Enquanto houver pessoas como o Varoufakis ainda há esperança.» | Slavoj Žižek 

 «Varoufakis escreveu uma das melhores memórias políticas de sempre e uma das mais detalhadas e certeiras descrições do poder moderno que alguma vez foram escritas.» | The Guardian

 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Prolegómenos-Ética- 5

 A moralidade -as normas morais de conduta- está instalada em todas as instituições sociais. Na família, na escola, nos partidos políticos, no Estado, nas empresas privadas ou cooperativas, etc. Eliminadas as tradições milenares ou seculares pelo rolo compressor da mundialização do capitalismo (nos casos em que isso já aconteceu ou está em vias de acontecer), as regras morais de conduta confundem-se com a regras cívicas dos habitantes de um bairro ou cidade (colaborar na higiene pública, na melhoria do ambiente, da segurança). O Bem identifica-se com a solidariedade, o voluntariado, o político com carisma. Tende-se a "descer" do Olimpo da Moral abstracta para o terreno das acções concretas, imediatas ou urgentes : o que devo fazer para melhorar a qualidade do rio, dos campos, do ar, etc. O que devo fazer para participar nas grandes reformas que me parecem necessárias para a minha terra, o meu país, o próprio mundo? Devo ingressar num partido político (comprometer-me a esse ponto)? Como devo comportar-me dentro dele (os partidos políticos regem-se também por normas de tipo moral, em alguns casos bastantes severas)?

   Tos estas normas coexistem com a acção boa que o capitalismo promove: aceitar como naturais e legítimas as normas jurídicas das relações de produção, desejar ser um bom consumidor, participar no jogo eleitoral. 

Diversas normas de conduta contradizem-se no interior do próprio indivíduo, tenha ele consciência ou não (voluntários de ONGs que colidem com os interesses do lucro) e contradizem-se no corpo total da sociedade, sendo que algumas são contradições secundárias e outras são antagónicas. 

  Presentemente a interrogação "Que devo fazer?" é simultaneamente ética e política. Coloca normas de conduta moral que é, no fim de contas, política. Auxiliar os países e povos mais pobres oferecendo vacinas é do domínio da moral e da política. Como fica claro quando não se auxilia...

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

 

O futuro da economia mundial

Um frisson de otimismo anima os capitalistas, que sonham com o pós-pandemia. Mas últimos ciclos econômicos sugerem novas crises e mais desigualdade. Ocaso do sistema parece nítido – resta saber o que virá depois…

Por Eleutério F. S. Prado, em A Terra é Redonda

A economia do mundo como um todo decresceu -3,5% em 2020 em decorrência da crise provocada pelo novo coronavírus; entretanto, segundo estimativas recentes da OCDE, crescerá 5,8% em 2021 e provavelmente algo em torno de 4,4% em 2022. Essa perspectiva tem trazido esperança e até um pouco de euforia para os agentes econômicos que dão suporte ao capital e que se beneficiam de seu processo de valorização: o mundo, segundo eles, vai recuperar o caminho de prosperidade – mesmo, porém, se desconfiam racionalmente dessa predição, é isso o que mais desejam.  Mas, o que esperar de fato da economia mundial na próxima década – e mesmo depois dela?

Uma primeira resposta a essa pergunta pode ser encontrada examinando simplesmente a evolução da economia mundial nas últimas décadas. A figura abaixo mostra de forma iniludível que as taxas de crescimento do PIB global têm caído tendencialmente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Se entre 1961 e 1970, esse indicador avançou segundo uma taxa média de 5,4% ano, nas décadas seguintes, essa taxa foi caindo até chegar à média de 2,2% ao ano entre 2011 e 2020.

Logo, não parece haver de início qualquer razão para otimismo; eis que a tendência histórica de longo prazo mostra um continuo declínio da taxa de elevação do PIB. A euforia constatada não parece ser, portanto, nada mais do que uma ilusão produzida pela recuperação em V da crise produzida pelo novo coronavírus. Na perspectiva desse evolver secular cadente, projetou-se apenas uma elevação média de 2,2% ao ano para a década que se inicia em 2021 e termina em 2030, tal como foi posto no gráfico em sequência.

Fonte: Banco Mundial

Entretanto, como se sabe, este tipo de análise é insuficiente, pois se baseia somente numa regularidade estatística – e em um pouco de bom senso. De qualquer modo, antes de entrar em considerações teóricas, é interessante considerar, ainda na mesma perspectiva, que a economia capitalista tem crescido por meio de ciclos longos desde pelo menos o último quartel do século XVIII.

Nesses ciclos há sempre uma fase ascendente em que as taxas de crescimento tendem a se elevar e uma fase descendente em que elas tendem a cair. A tabela abaixo mostra os resultados obtidos por Tsoulfidis e Papageorgiou por meio de uma pesquisa estatística cuidadosamente desenvolvida com base nas séries estatísticas atualmente disponíveis; segundo esse estudo, após o advento da primeira revolução industrial, ainda no século XVIII, ocorreram cinco ciclos longos na economia capitalista. O início do primeiro “ocorreu” em 1790 porque essa é a data mais antiga para a qual há informações confiáveis.[1]

Após a Segunda Guerra Mundial, ocorreram dois ciclos longos na economia mundial: um entre 1946 e 1982, período em que dominou o keynesianismo, e um outro a partir dessa última data, época em que prevaleceu o neoliberalismo. Entre 1981 e 1990, a economia mundial cresceu em média 3,12% ao ano; entre 1991 e 2010, essa taxa média caiu para 2,8%, para chegar a apenas 2,2% na última década. Em razão desse baixo crescimento, reconhece-se amplamente que a economia mundial entrou num período de estagnação após 1997.

Ora, esse resultado também mostra de imediato que o neoliberalismo não foi capaz de produzir uma recuperação forte da economia mundial, capaz de levar as economias dispersas na superfície do planeta Terra aos patamares obtidos após o fim da Segunda Guerra Mundial. De qualquer modo, enquanto regime de acumulação prevalecente nos últimos 40 anos, o neoliberalismo parece agora estar em processo final de esgotamento – sem que se saiba ainda o que vai substitui-lo.

Para melhor compreender esses dois últimos ciclos longos, ou seja, o 4º e o 5º, é preciso observar o que ocorreu com a taxa de lucro no período considerado. Para tornar isso possível, empregou-se aqui uma boa aproximação dela; tomou-se a taxa interna de retorno para o G20 (uma média ponderada construída com os dados da Penn World Table 9.1) como representativa, já que o G20 inclui as vinte maiores economias, as quais respondem por cerca de 70% do PIB mundial. A figura em sequência apresenta essa estatística descritiva. Nela fica bem evidente os dois ciclos longos mencionados: o primeiro está formado pela “idade de ouro” e pela “crise de lucratividade”; o segundo está constituído pela “recuperação neoliberal” e pela “longa depressão”.

Fonte: Michael Roberts

A evolução da taxa de lucro permite datar o começo e do fim dos ciclos; eis que esses dois limites – admite-se – são determinados de modo crucial pelo evolver dessa variável – assim como, de modo complementar, pelo movimento ascendente ou descendente da massa de lucro. A figura acima mostra inequivocamente que a taxa de lucro se eleva na fase ascendente e cai na fase descendente dos ciclos. Ela mostra, também, que esse sobe-e-desce ocorreu duas vezes nos últimos 70 anos. São esses ciclos que aqui se quer considerar de modo melhor.

É por meio desse movimento que a taxa de lucro comanda a taxa de acumulação,[2] a qual, por sua vez, consiste no investimento na ampliação da capacidade produtiva da economia. Nesse sentido, o comportamento da taxa de crescimento do PIB reflete, com certas defasagens, o comportamento da taxa de lucro, ainda que seja influenciada também de outros modos. Assim, a tendência declinante do PIB (primeiro gráfico) no período como um todo é assim explicada grosso modo pela própria tendência cadente da rentabilidade do capital (segundo gráfico) no mesmo período (70 anos).

Ainda que isso não conste do último gráfico, a crise produzida pela pandemia do coronavírus produziu um tombo na taxa de lucro observada em 2020. De qualquer modo, a recuperação ocorrida em 2015-16 não foi sustentada nos anos seguintes. Ainda que também não apareça no gráfico, é sabido que a queda persistente da taxa de lucro acaba produzido também uma queda da massa de lucro. E quando isso ocorre tem-se aquele momento em que uma crise de superacumulação de grandes proporções se precipita de alguma forma.

A questão se põe agora é saber se haverá um novo ciclo longo na economia mundial ou se a tendência de estagnação vai permanecer ou mesmo se aprofundar? A dinâmica observada no passado vai se repetir ou a deterioração da força disruptiva do capitalismo não permite mais o advento de um sexto ciclo longo de acumulação? O que se pode esperar do desenvolvimento futuro da economia capitalista agora fortemente globalizada? Para tentar responder a essa pergunta deve-se começar lembrando que as crises são endogenamente necessárias ao desenvolvimento do capitalismo.[3]

Considere-se todo o período de um ciclo longo. No início, a taxa de lucro se eleva e com ela cresce o investimento. O volume da produção aumenta aceleradamente. O evolver da força produtiva do trabalho gera um crescimento da composição orgânica do capital, ou seja, da razão entre o capital constante (máquinas, equipamento, matéria primas etc.) e o capital variável (salários). A demora desse processo acaba invertendo a tendência de crescimento da taxa de lucro em tendência ao decrescimento. Começa, então, a cair a taxa de acumulação e, assim, a taxa de crescimento.

Em certo ponto desse processo, a massa de lucros também passa a se reduzir. É nesse momento que surge uma crise de superacumulação e ela vem para reduzir as tensões acumuladas pelo evolver das contradições inerentes ao capitalismo. É por isso que, “periodicamente” – diz Marx – “o conflito entre os agentes antagônicos [forças produtivas e relações de produção] se desafoga em crises. E as crises são sempre soluções momentâneas violentas das contradições existentes”.

Ora, para que as crises cumpram o seu papel na acumulação é preciso que haja destruição de parte expressiva do capital industrial e do capital financeiro. Ora, isso ocorria espontaneamente no capitalismo até aproximadamente os anos 1920. Após a grande crise de 1929, o Estado capitalista começou a atuar, cada vez mais pesadamente, no evolver da acumulação e no acontecer das crises.[4] Na crise de 2007-08, os Estados, em especial nos países desenvolvidos, evitaram uma brutal destruição das forças produtivas – eis que isso se tornou inaceitável politicamente – por meio da emissão maciça de dinheiro para impedir a falências dos grandes bancos e, assim, em consequência, das grandes corporações industriais.

A consequência dessa intervenção salvadora é que as contradições não foram neutralizadas e, assim, não foram criadas as condições para uma recuperação rápida e para o início de um novo ciclo longo de acumulação de capital. Em particular, a enorme massa de capital fictício criada no passado recente não foi reduzida, mas, ao contrário, continuou crescendo de forma cada vez mais ameaçadora.  De qualquer modo, a longa depressão minou a legitimidade do neoliberalismo.

Ora, a história do capitalismo mostra que não há “nem prosperidade perpétua nem estagnação permanente”. É, pois, necessário admitir que durante o período da longa depressão vem ocorrendo certas transformações que atuam para elevar a lucratividade. Note-se, porém, que elas não acontecem e não podem acontecer mais sem a atuação econômica do Estado.

Junto com uma liquidação endógena das empresas menos eficientes e com um rebaixamento dos salários reais da força de trabalho, o que ocorre devido à própria estagnação, novos arranjos institucionais e novos modos de regulação vêm sendo criados pela administração do sistema econômico. É preciso ver que as políticas econômicas nunca se ausentam do esforço de criação de condições para elevação da taxa de acumulação. Ademais, os subsídios à criação e à adoção de novas tecnologias nunca faltam nos países centrais que competem entre si, internacionalmente, pela primazia de fazer avançar as forças produtivas – o que não ocorre em geral nos países periféricos.

Ora, a introdução de tais mudanças institucionais e nas inovações tecnológicas não estão encontrando um caminho facilitado justamente porque não ocorreu uma destruição do capital acumulado no passado. Ademais, essa destruição é necessária para que a taxa de lucro possa se recuperar: o estoque de capital precisa cair para que essa taxa, dada uma certa massa de lucro, possa subir. De qualquer modo, pode-se revisar sinteticamente aquelas mudanças que estão em curso de se tornarem realidade.

Sabe-se, por um lado, que o lançamento de um novo ciclo longo depende da existência de uma “onda de inovações” que venha sucatear as velhas estruturas produtivas, abrindo espaços para grandes volumes de investimentos. Nesse sentido, fala-se muito atualmente sobre a vinda da quarta revolução tecnológica que seria caracterizada pela difusão da inteligência artificial, do aprendizado de máquina, da robótica e da automação industrial, tendo em vista revolucionar os processos produtivos.

Fala-se também que a substituição da geração de energia “suja” por “limpa”, um imperativo posto pela emergência climática, pode abrir um grande espaço para a acumulação de capital. A própria pandemia do coronavírus acelerou a adoção de novas práticas de organização do trabalho, as quais podem ter algum impacto. Entretanto, o seu efeito mais importante foi revelar certas fraquezas do neoliberalismo em sua fase atual enquanto um modo de regulação que visa promover o crescimento econômico. Na verdade, é de notar que as suas recomendações de política econômica, em particular o princípio da austeridade fiscal, foram abandonadas no enfrentamento dessa peste do século XXI.

Sabe-se, por outro lado, que o alçamento de um novo ciclo longo de acumulação precisa encontrar condições institucionais adequadas. A observação do que ocorreu nas últimas décadas mostrou de modo claro que o início e a sustentação de uma nova etapa no processo de desenvolvimento do capitalismo dependem da existência de um novo regime de acumulação. Sabe-se, também, que essa nova configuração institucional dever estar caracterizada por toda uma estrutura de incentivo, regulação e coordenação macroeconômica.

Os proponentes da corrente teórica “estrutura social de acumulação” consideram que uma “crise estrutural” como a atual não pode ser resolvida sem uma grande reforma estrutural. Mencionam, por exemplo, que um novo ciclo não se iniciará sem um aprofundamento do papel do Estado na promoção de um crescimento econômico sustentável. Assim, preveem como possível – e talvez necessário – que surja uma forma de “capitalismo regulado” que se baseie numa combinação mais profunda de iniciativa estatal com a iniciativa privada.

Como o capitalismo é um sistema que visa o lucro das empresas – e não o bem-estar da população em geral –, essa nova regulação poderá ser tão excludente quanto o neoliberalismo. Alguma manutenção e mesmo alguma renovação possível do “compromisso capital-trabalho” caraterístico da socialdemocracia dependerá da agudeza das lutas sociais.

De qualquer modo, mesmo se uma nova “estrutura social de acumulação” for institucionalizada, especialmente nos países mais ricos, não se verá o capitalismo global passar por um novo período de ouro, como ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. Há um certo consenso de aquele surto de acumulação foi possível devido à grande destruição de forças produtivas em todos os países cujos territórios foram afetados pela atividade bélica. Ora, isso não deve acontecer novamente já que se ocorrer, como evento catastrófico de grandes proporções, não deixará de destruir a humanidade.

O operar continuo da tendência da queda da taxa de lucro, que se observou nos últimos 70 anos, certamente não permitirá que esse novo ciclo se apresente com grande dinamismo e euforia prática. Como a economia global, ademais, vai sofrer cada vez mais os impactos do aquecimento global, da destruição das florestas, da falta de água potável e das diversas formas de poluição, é de se esperar que os resultados econômicos de um novo ciclo serão muito moderados, insuficientes mesmo para gerar uma onda de otimismo sobre o futuro do sistema.

Assim, se o quinto ciclo não foi capaz de recuperar os níveis da taxa de lucro observados no quarto ciclo, é sensato esperar que um sexto ciclo não venha a ser capaz de obter os resultados do quinto. Pode-se prever, pois, que o capitalismo global, na melhor das hipóteses, passe de estagnado para semi-estagnado com algum surto ou outro de crescimento mais elevado. Ademais, não é de ser prever que a concentração da renda e da riqueza ocorrida no período neoliberal seja revertida de modo importante. Em consequência, deve-se esperar que o mundo nas próximas décadas se configure, não por uma prosperidade que se difunde pela sociedade como um todo, mas por meio de conjunturas sucessivas bem instáveis econômica, social e politicamente.

Na verdade – acredita o economista que aqui escreve –, está na presença do ocaso do capitalismo, mesmo se não se pode ter qualquer certeza sobre o advento possível de um socialismo renovado, profundamente democrático. Só é possível ter certeza de que é preciso lutar por ele.

Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade).

Notas


[1] Ver Tsoulfidis, Lefteris; Papageorgiou, Aris – The Recurrence of Long Cycles: Theories, Stylized Facts and Figures. World Review of Political Economy, 2019, vol. 10(4), p. 1-36.

[2 ] Na verdade, o que determina o investimento é a taxa de lucro futura. Mas, como essa está sempre envolta por uma sombra de incerteza, os capitalistas se valem dos resultados presentes para pensar o futuro. Ademais, a grandeza dessa taxa indica também, indiretamente, a disponibilidade de fundos (lucros retidos) para sustentar o investimento.

[3] As considerações que se seguem estão, em parte, baseadas em artigo de Tsoulfidis, Lefteris; Tsaliki, Persefoni – “The long recession and economic consequences of the covid-19 pandemic”, o qual pode ser encontrado na internet.

[4] A exterioridade do Estado em relação ao sistema econômico, como se sabe, é uma aparência necessária do modo de produção capitalista.

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quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Prolegómenos- ÉTICA- 4

   Fala-se muito atualmente da categoria do Fétiche (feitiço) na teoria de Marx. Realmente esse conceito científico é fundamental na análise marxiana (em os Grundrisse e em O capital) do capitalismo, traço que se foi tornando cada vez mais marcante com os modos de desenvolvimento do mercado capitalista. Contudo, quando essas análises recentes empolam o conceito e eliminam o conceito de Exploração parece-me errado, uma espécie de revisionismo. No caso da construção de uma Ética em bases marxianas o conceito de Exploração é decisivo, pode-se dizer essencial. Isto é: localiza-se na essência deste modo de produção.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

 

"O povo apenas transfere livremente para o rei o poder que não domina totalmente". Spinoza

Stalin: História crítica de uma lenda negra – II

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Por DOMENICO LOSURDO*

Resposta à resenha de Jean-Jacques Marie

Jamais se poderá avaliar de modo satisfatório a sabedoria da frase atribuída a Georges Clemenceau: a guerra é uma coisa muito séria para que seja entregue aos generais!

Na verdade, em seu ardente chauvinismo e anticomunismo, o primeiro-ministro francês mantinha uma consciência bastante lúcida em relação ao fato de os especialistas (neste caso, os especialistas da guerra) frequentemente serem capazes de ver as árvores, mas não a floresta, eles se deixam absorver pelos detalhes perdendo de vista o global; neste caso eles sabem tudo, menos o que é essencial.

À afirmação de Clemenceau se é rapidamente levado a pensar quando se lê a crítica intransigente que Jean-Jacques Marie queria destinar a meu livro sobre Stalin [https://aterraeredonda.com.br/stalin-historia-critica-de-uma-lenda-negra/]. Pelo que parece, o autor é um dos maiores especialistas sobre “trotskismo-logia” e se põe a demonstrá-lo em qualquer circunstância.

Stalin liquidado pelo Relatório secreto, o Relatório secreto liquidado pelos historiadores

Ele começa imediatamente a contestar minha afirmação segundo a qual Kruschev “se propõe derrotar Stalin em todos os aspectos”. Ainda assim, é o grande intelectual trotskista Isaac Deutscher que destaca que o Relatório secreto menciona Stalin como um “enorme, tenebroso, extravagante, degenerado monstro humano”. No entanto, esse retrato não é suficientemente monstruoso aos olhos de Marie! O meu livro assim continua: na arguição pronunciada por Kruschev, “por ser responsável por crimes horrendos, era um indivíduo desprezível, seja no plano moral, seja no plano intelectual”.

“Além de desumano, o ditador era também risível”. Basta pensar no pormenor sobre o qual se detém Kruschev: “é preciso ter presente que Stalin preparava os seus planos em cima de um mapa mundi. Sim, companheiros, ele marcava a linha da frente de batalha sobre o mapa mundi” (p. 27-29 da edição francesa). O quadro aqui traçado sobre Stalin é claramente caricatural: como fez para derrotar Hitler a URSS que era dirigida por um líder criminoso e imbecil ao mesmo tempo? E como chegou esse líder criminoso e imbecil ao mesmo tempo a reger pelo “mapa mundi” uma batalha épica como aquela de Stalingrado, combatida de bairro a bairro, de rua a rua, de terreno a terreno, de porta a porta?

Ao invés de responder a essas contestações, Marie se preocupa em demonstrar que – enquanto maior especialista de “trotskismo-logia” – conhece de memória também o Relatório Kruschev e se põe a citá-lo por toda parte, em aspectos que não têm nada a ver com o problema em discussão!

Como demonstração do fato de essa total aniquilação de Stalin (no plano intelectual além do moral) não subsistir à investigação histórica, chamo a atenção para dois pontos: historiadores eminentes (de nenhum dos quais se pode suspeitar ser filo-stalinista) falam de Stalin como o “maior líder militar do século 20”. E vão ainda além: atribuem-lhe um “talento político excepcional” e o consideram um político “supercompetente” que salva a nação russa da dizimação e escravização a que é destinada pelo 3º Reich, graças não apenas à sua astuta estratégia militar, mas também aos “magistrais” discursos de guerra, por vezes verdadeiros e apropriados “atos de bravura” que, em momentos trágicos e decisivos, chegam a estimular a resistência nacional. E ainda não é tudo: historiadores ardorosamente antistalinistas reconhecem a “perspicácia” com que ele trata a questão nacional no escrito de 1913 e o “efeito positivo” de sua “contribuição” para a linguística (p. 409).

Em segundo lugar, faço notar que já em 1966 Deutscher demonstrava sérias dúvidas sobre a credibilidade do Relatório secreto: “não o considero a ponto de aceitar sem reservas as assim ditas ‘revelações de Kruschev’, particularmente sua afirmação de na 2ª Guerra Mundial (e na vitória sobre o 3º Reich) Stalin apenas ter desempenhado um papel praticamente insignificante” (p. 407). Hoje, à luz de novo material à disposição, não são poucos os estudiosos que acusam Kruschev de ter recorrido à mentira. E, portanto: se Kruschev realiza a aniquilação total de Stalin, a historiografia mais recente anula a credibilidade do assim dito Relatório secreto.

De que maneira Marie responde a tudo isso? Resume o ponto de vista não apenas o meu como também o dos autores citados por mim (inclusive o trotskista Deuscher) com o clichê: “Vade retro, Kruschev!”. Ou seja, o grande especialista de “trotskismo-logia” acredita poder exorcizar as dificuldades insuperáveis com que se depara pronunciando duas palavras em latim (eclesiástico)!

Vejamos um segundo exemplo. No início do segundo capítulo (“Os bolcheviques: do conflito ideológico à guerra civil”), eu analiso o conflito que se desenvolve por ocasião da paz de Brest-Litowsky. Bukharin denuncia o “declínio camponês em nosso partido e no poder soviético”; outros bolcheviques se desligam do partido; outros até declaram já desprovido de valor o próprio poder soviético. Em sentido oposto, Lênin expressa sua indignação por essas “palavras esquivas e monstruosas”. Já em seus primeiros meses de vida, a Rússia soviética vê se desenvolver um conflito ideológico de extrema rispidez e a ponto de se transformar em guerra civil.

E tão mais facilmente se transformará em guerra civil – observo em meu livro – já que, com a morte de Lênin, “vem a desaparecer uma indiscutível autoridade”. Antes – acrescento –, segundo um ilustre historiador burguês (Conquest), já naquela ocasião Bukharin havia acalentado a ideia de um golpe de Estado (p. 71). Como Marie responde a tudo isso? Novamente, ele exibe toda a sua erudição de grande, e talvez máximo, especialista de “trotskismo-logia”, mas não faz nenhum esforço para responder às questões que se impõem: se o conflito mortal que sucessivamente aflige o grupo dirigente bolchevista é culpa apenas de Stalin (o pensamento primitivo não pode passar sem o bode expiatório), como explicar a dura troca de acusações que Lênin condena como “monstruosas”, as frases pronunciadas por aqueles que estimulam a “degeneração” do partido comunista e do poder soviético? E como explicar o fato de Robert Conquest – que dedicou toda a sua existência a demonstrar a sordidez de Stalin e dos processos de Moscou – falar de um projeto de golpe de Estado contra Lênin, cultivado ou acalentado por Bukharin?

Não sabendo o que responder, Marie me acusa de manipulador e escreve até que – no que se refere à ideia de golpe de Estado acalentada por Bukharin – eu cito apenas a mim mesmo. Não tenho tempo a perder com insultos. Limito-me a fazer notar que à página 71, nota 137, cito um historiador (Conquest) que não é inferior a Marie nem em erudição nem no zelo antistalinista.

2- De que maneira os trotskistas para Marie insultam Trotsky

Com a morte de Lênin e a consolidação do poder de Stalin, o conflito ideológico se torna cada vez mais uma guerra civil: a dialética de Saturno que, de um modo ou de outro, se manifesta em todas as grandes revoluções, desgraçadamente não poupa nem mesmo os bolcheviques. Desenvolvo essa tese na segunda parte do segundo capítulo, citando uma série de personalidades entre as muitas diferentes (que revelam a existência de um aparato clandestino e militar criado pela oposição) e citando, sobretudo, Trotsky. Sim, Trotsky em pessoa declara que a luta contra “a oligarquia burocrática” stalinista “não comporta solução pacífica”. É sempre ele que declara que “o país se dirige notoriamente em direção à revolução”, em direção a uma guerra civil, e que, “no âmbito de uma guerra civil, o assassinato de alguns opressores não diz respeito mais ao terrorismo individual”, mas é parte integrante da “luta mortal” entre os alinhamentos opostos (p. 104). Como se vê, pelo menos neste caso, o próprio Trotsky coloca em dificuldade a mitologia do bode expiatório.

Compreende-se o embaraço totalmente particular de Marie. E então? Conhecemos já a ostentação de erudição como cortina de fumaça. Vamos à substância. Entre as inúmeras e muito diferentes personalidades por mim citadas, Marie escolhe duas: a uma (Malaparte) considera incompetente, à outra (Feuchtwanger) tacha como agente mercenário a serviço do crime e imbecil que se encontra no Kremlim. E assim o jogo é feito: a guerra civil desaparece e novamente o primitivismo do bode expiatório pode festejar seus êxitos. Mas recusar-se a levar em consideração os argumentos utilizados por um grande intelectual, como Feuchtwanger, para limitar-se a tachá-lo como agente mercenário a serviço do inimigo: geralmente não é esse o modo de proceder considerado “stalinista”? E, sobretudo: o que devemos pensar do testemunho de Trotsky que fala de “guerra civil” e de “luta mortal”? Não é um paradoxo o grande especialista e sumo sacerdote da “trotskismo-logia” constranger ao silêncio a divindade por ele venerada? Sim, mas não é o único paradoxo e nem mesmo o mais ressonante.

Vejamos: Trotsky não apenas compara Stalin a Nicolau II (p. 104) como vai além: no Kremlim se encontra um “provocador a serviço de Hitler”, ou “a marionete de Hitler” (p. 126 e 401). E Trotsky, que se gabava de ter muitos partidários na União Soviética e que, antes, segundo Broué (biógrafo e hagiógrafo de Trotsky), tinha conseguido infiltrar seus “fiéis” até no interior da GPU, não havia feito nada para destruir o poder contrarrevolucionário do novo czar ou do escravo do 3º Reich? Marie termina retratando Trotsky como um simples tagarela que se limita a uma basófia verbal de taberna, ou como um revolucionário desprovido de coerência e até medroso e vil. O paradoxo mais gritante é que sou de fato constrangido a defender Trotsky contra alguns de seus apologetas!

Digo “alguns de seus apologetas” pelo fato de nem todos serem tão despreparados como Marie. A propósito da impiedosa “guerra civil” que se desenvolve entre os bolcheviques, o meu livro observa: “Estamos diante de uma categoria que constitui o fio condutor da pesquisa de um historiador russo (Rogovin), de firme e declarada fé trotskista, autor de uma obra em vários volumes, dedicada a registrar a reconstrução minuciosa dessa guerra civil. Nela se fala, a propósito da Rússia soviética, de ‘uma guerra civil preventiva’ desencadeada por Stalin contra aqueles que se organizam para derrotá-lo. Também aos de fora da URSS, essa guerra civil se manifesta e em partes arrebenta na frente de combate contra Franco; e, com efeito, em referência à Espanha de 1936-39, se fala não de uma, mas de ‘duas guerras civis’. Com grande honestidade intelectual e tirando proveito do novo e rico material documentário disponível, graças à abertura dos arquivos russos, o autor aqui citado chega à conclusão: ‘Os processos de Moscou não foram um crime imotivado e a sangue frio, mas a reação de Stalin ao longo de uma arguta luta política’”.

Polemizando com Alexander Soljenítsin, que menciona as vítimas das purgações como um bando de “coelhos”, o historiador trotskista russo cita um folhetinho que nos anos 1930 chamava a varrer do Kremlim “o ditador fascista e sua camarilha”. Depois, comenta: “Mesmo do ponto de vista da legislação russa hoje em vigor, esse folhetinho deve ser analisado como um apelo a uma violenta derrocada do poder (mais exatamente do estrato superior dominante)”. Em conclusão, bem longe de ser expressão de “um ataque de violência irracional e insensata”, o sanguinário terror desencadeado por Stalin é, na realidade, o único modo com que ele consegue dobrar a “resistência das verdadeiras forças comunistas” (p. 117-118).

Assim se expressa o historiador trotskista russo. Mas Marie – para não renunciar ao seu primitivismo e à procura de um bode expiatório (Stalin) sobre o qual concentrar todos os pecados do Terror e da União Soviética em seu conjunto – prefere seguir os passos de Soljenítsin e apresentar Trotsky como um “coelho”.

3- Traição ou contradição objetiva? A lição de Hegel

No âmbito do quadro por mim traçado, permanecem firmes os méritos de Stalin: ele compreendeu uma série de pontos essenciais: a nova fase histórica que se abria com a falência da revolução no Ocidente; o período de colonização escravista que ameaçava a Rússia soviética; a urgência de recuperação do atraso em relação ao Ocidente; a necessidade de conquista de ciência e tecnologia mais avançadas e a consciência de que a luta por tal conquista pode ser, em determinadas circunstâncias, um aspecto essencial, e mesmo decisivo, para a luta de classe; a necessidade de coordenar patriotismo e internacionalismo e a compreensão do fato de uma vitoriosa luta de resistência e de libertação nacional (como foi a Grande guerra patriótica) constituir-se na mesma época uma contribuição de primeiríssimo plano à causa internacionalista da luta contra o imperialismo e o capitalismo.

Stalingrado lançou os requisitos para a crise do sistema colonial em escala planetária. O mundo de hoje caracteriza-se por crescentes dificuldades do mesmo neocolonialismo; pela prosperação de países como China e Índia e, mais no geral, da civilização na mesma época subjugada ou humilhada pelo Ocidente; pela crise da doutrina Monroe e pelo esforço de certos países latino-americanos de unir luta contra o imperialismo com a construção de uma sociedade pós-capitalista. Pois bem, este mundo não é presumível sem Stalingrado.

E, no entanto, uma vez dito isso, é possível compreender a tragédia de Trotsky. Depois de ter reconhecido o grande papel por ele desempenhado no curso da Revolução de Outubro, o meu livro assim descreve o conflito que vem a se formar com a morte de Lênin: “Na medida em que um poder carismático era ainda possível, isso tendia a tomar corpo na figura de Trotsky, o genial organizador do Exército vermelho e brilhante orador e prosador que pretendia encarnar as esperanças de triunfo da revolução mundial e que, para isso, fazia avançar a legitimidade de sua aspiração a governar o partido e o Estado.

Stalin, porém, era a encarnação do poder legal-tradicional que procurava penosamente tomar forma: ao contrário de Trotsky – ligado tardiamente ao bolchevismo – ele representava a continuidade histórica do partido protagonista da revolução e, em seguida, detentor de nova legalidade; para além disso afirmando a realizabilidade do socialismo mesmo em um único (grande) país, Stalin infundia uma nova dignidade e identidade à nação russa que, assim, superava a crise assustadora – fictícia mais do que concreta – irrompida a partir da derrota e do caos da 1ª Guerra Mundial, e reencontrava a sua continuidade histórica.

Mas exatamente por isso os adversários gritavam “traição”, enquanto traidores aos olhos de Stalin e de seus partidários surgiam todos com seu aventureirismo facilitando a intervenção de potências estrangeiras, colocavam em perigo, em última análise, a sobrevivência da nação russa – que era na mesma época o destacamento de vanguarda da causa revolucionária. O choque entre Stalin e Trotsky é um conflito não apenas entre dois programas políticos, mas também entre dois princípios de legitimação” (p. 150).

Em certo ponto, diante da radical novidade do quadro nacional e internacional, Trotsky se convence (sem razão) de que em Moscou havia uma contrarrevolução e age em conformidade a isso. No quadro traçado por Marie, ao contrário, Trotsky e seus partidários – apesar de terem conseguido se infiltrar na GPU e em outros setores vitais do aparato estatal – sem lutar deixaram-se vencer e massacrar pela contrarrevolução criminosa e idiota que foi instalada no Kremlim. Não há dúvida, é essa a leitura – para ridicularizar particularmente Trotsky, apequenando e para tornar medíocres e irreconhecíveis todos os protagonistas da grande tragédia histórica que se desenvolveu na esteira da Revolução Russa (como em todas as grandes revoluções).

Com o objetivo de compreender de modo adequado tal tragédia, é preciso fazer apelo a uma categoria de contradição objetiva estimada por Hegel (e por Marx). Desgraçadamente, porém – adverte o meu livro –, Stalin como Trotsky compartilham a mesma pobreza filosófica: não conseguem avançar para além dessa troca recíproca de acusação de traição: “De uma parte e de outra, mais do que se empenhar na análise laboriosa das contradições objetivas, e das opostas opções e dos conflitos políticos que se desenvolvem sobre tal base, prefere-se recorrer com ligeireza à categoria de traição e, em sua configuração extrema, o traidor se torna agente consciente e corrompido pelo inimigo. Trotsky não se cansa de denunciar ‘a conspiração da burocracia stalinista contra a classe operária’, e a conspiração é tão mais abjeta pelo fato de a ‘burocracia stalinista’ não ser nada além do que ‘um aparato de transmissão do imperialismo’. É apenas o caso de dizer que Trotsky vem generosamente recebendo o troco na mesma moeda. Ele se lamenta de ter sido tachado como ‘agente de uma potência estrangeira’, mas, por sua vez, tacha Stalin como ‘agente provocador a serviço de Hitler’” (p. 126).

Menos que nunca, Marie – que efetivamente ironiza minha frequente citação de Hegel – dispôs-se a problematizar a categoria de “traição”. No debate ora em curso quem é, pois, o “stalinista”?

4- O comparativismo como instrumento de luta contra as fraudes da ideologia dominante

Até aqui vimos no grande especialista de “trotskismo-logia” um esforço de erudição como fim em si mesma ou utilizada como cortina de fumaça. E, no entanto, em Marie é preciso reconhecer um raciocínio, ou melhor, uma tentativa de raciocínio. No momento em que faço uma comparação entre os crimes de Stalin – ou a ele atribuídos – e aqueles cometidos pelo Ocidente liberal e seus aliados, Marie contesta: “Então, na pátria triunfante do socialismo (porque para Losurdo o socialismo surgiu na URSS) e que concretizou a unidade dos povos é normal que sejam utilizados os mesmos procedimentos dos chefes de países capitalistas ou de um obscurantista feudal e até do czar Nicolau II”. Examinemos essa refutação. Até deixamos de lado as imprecisões, os exageros ou os verdadeiros e próprios mal-entendidos. Em nenhuma parte falo da URSS ou de outro país como “a pátria triunfante do socialismo”; em meus livros escrevi, pelo contrário, que o socialismo é um “processo de aprendizado” difícil e de maneira nenhuma concluído.
Mas concentremo-nos no essencial. Da Revolução de Outubro até nossos dias constante é a tendência de a ideologia dominante demonizar tudo aquilo que tem alguma relação com a história do comunismo. Como fiz notar em meu livro, por algum tempo Trotsky foi tachado de ser (a exemplo de Goebbels) aquele que “talvez em sua consciência tenha o número de crimes mais alto que nunca antes pesou sobre um homem” (p. 343); sucessivamente essa obscura primazia foi atribuída a Stalin e hoje a Mao Tsetung; estão por ser igualmente criminalizados Tito, Ho Chi Minh, Castro etc. Devemos suportar essa “demonização” que – como sustento no último capítulo de meu livro – é apenas a outra face da “hagiografia” do capitalismo e do imperialismo?

Vejamos de que maneira a essa manipulação maniqueísta reage Marx. Quando a burguesia do seu tempo – aceitando motivo para o assassinato dos reféns e para o incêndio espalhado pelos Communards – denuncia a Comuna de Paris como sinônimo de infame barbárie, Marx responde que as práticas de tomada (e de eventuais assassinatos) de reféns e de ateamento de incêndios foram inventadas pelas classes dominantes e que, de qualquer modo, pelo que diz respeito a incêndios, seria preciso distinguir entre “vandalismo por uma defesa desesperada” (aquele dos communards) e “vandalismo por prazer”.

Marie me faz muita honra quando polemiza comigo sobre esse ponto: ele faria bem em fazer o mesmo diretamente com Marx. Ou, se pudesse, com Trotsky, que age também do mesmo modo com que fui censurado: no libreto A sua moral e a nossa, Trotsky se refere a Marx, já citado por mim, e – para rebater a acusação segundo a qual os bolcheviques, e apenas eles, se inspiram no princípio segundo o qual “o fim justifica os meios” (violentos e brutais) – chama em causa o comportamento não apenas da burguesia do século XIX e XX, como também (…) o de Lutero, protagonista da guerra de extermínio contra Müntzer e os camponeses.

Mas, agarrado como está ao culto à erudição, Marie não reflete nem mesmo sobre textos dos autores por ele mais estimados. E, na verdade, me ironiza dando à sua intervenção o título “O socialismo de Gulag!”. Naturalmente, com essa mesma ironia por aí poderiam ser feitas chacotas da Rússia soviética de Lênin (e de Trotsky): “O socialismo (ou a revolução socialista) da Ceka”, ou “o socialismo (ou a revolução socialista) da tomada de reféns” (tenha-se presente que, em A sua moral e a nossa, Trotsky é obrigado a defender-se até da acusação de ter recorrido a essa prática). Na realidade, com a ironia cara a Marie pode-se liquidar qualquer revolução. Temos então: “A Comuna dos reféns fuzilados”, “a liberdade e a igualdade da guilhotina”, etc. De outra parte, não se trata de exemplos imaginários: foi assim que a tradição de pensamento reacionária liquidou a Revolução Francesa (e, sobretudo, o jacobinismo), a Comuna de Paris, a Revolução Russa etc.

Marx resumiu a metodologia do materialismo histórico na afirmação segundo a qual “os homens fazem sua história sozinhos, mas não em circunstâncias escolhidas por eles”. Ao invés de pegar os gestos dessas lições para investigar os erros, os dilemas morais, os crimes dos protagonistas de cada grande crise histórica, Marie indica essa simples alternativa: ou os movimentos revolucionários são soberanamente superiores – e, antes, milagrosamente transcendentes em relação ao mundo histórico, e às contradições e aos conflitos do mundo histórico – no âmbito em que eles se desenvolvem, ou aqueles movimentos revolucionários são uma completa ruína e um engano completo. E assim a história dos revolucionários em seu conjunto se configura como a história de uma única, ininterrupta e miserável ruína e engano. E mais uma vez Marie se coloca na vala da tradição do pensamento reacionário.

5- O socialismo como processo de aprendizado trabalhoso e incompleto

Eu disse que a construção do socialismo é um processo de aprendizado trabalhoso e incompleto. Mas exatamente por isso é preciso empenhar-se em dar respostas: o socialismo e o comunismo comportam a total eliminação de identidades e até de idiomas nacionais, ou tem razão Castro quando diz que os comunistas tiveram culpa por subestimar o peso que a questão nacional continua a exercer mesmo depois da revolução anti-imperialista e anticapitalista?

Na sociedade do futuro previsível não haverá mais lugar para nenhum tipo de mercado e nem para o dinheiro, ou devemos tirar proveito da lição de Gramsci, segundo a qual é preciso ter presente o caráter “determinado” do “mercado”? Em relação ao comunismo Marx fala algumas vezes de “extinção do Estado”, e outras de “extinção do Estado no atual sentido político”: são duas fórmulas entre si sensivelmente diferentes; em qual das duas pode-se inspirar? São esses problemas a provocar entre os bolcheviques, primeiro um ríspido conflito ideológico e depois a guerra civil; e a esses problemas é preciso responder se se quiser restituir credibilidade ao projeto revolucionário comunista, evitando as tragédias do passado. Com esse espírito é que escrevi primeiro Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa hoje e, depois, Stalin – História Crítica de uma Lenda Negra.

Sem confrontar tais problemas, não se poderá nem compreender o passado nem projetar o futuro. Sem confrontar tais problemas, aprender de memória até os mínimos detalhes da biografia (ou da hagiografia) deste ou daquele protagonista de Outubro de 1917 servirá apenas para confirmar a profundidade do lema caro a Clemenceau: como a guerra é uma coisa muito séria para ser entregue a generais e especialistas da guerra, também a história da própria tragédia de Trotsky (para não falar da grande e trágica história do movimento comunista em seu conjunto) é uma coisa muito séria para ser entregue a especialistas e generais da trotskismo-logia.

*Domenico Losurdo (1941-2018) foi professor de filosofia na Universidade de Urbino (Itália). Autor, entre outros livros, de Liberalismo: entre civilização e barbárie (Anita Garibaldi).

Tradução: Lucilia Ruy para o site Vermelho .

Referência


Domenico Losurdo. Stalin: História crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro, Revan, 2020.

Revista Crítica Marxista

 

Engels 200 anos
O trabalho na
dialética da natureza

 
JOÃO QUARTIM DE MORAES*

 
Ontólogos contra naturam

 
Em seu importante estudo sobre a ecologia de Marx, John Bellamy Foster
assinalou a deriva filosófica dos pensadores ocidentais das ciências humanas,
marxistas e não marxistas, que na ânsia de esconjurar os assustadores espectros do
mecanicismo, determinismo, positivismo, biologismo e outros avatares, rejeitaram
o materialismo para sustentar que “o mundo social construía-se, na integralidade
de suas relações, pela prática humana [...] negando pois simplesmente os objetos
de conhecimento [...] que são naturais e existem independentemente de seres
humanos e construções sociais”. Essa “guinada numa direção idealista” consistia
em opor Engels, culpado de “uma concepção materialista da natureza”, a Marx,
para o qual a dialética só se relacionaria com a práxis, portanto “com o mundo
humano-social” (Foster, 2005, p.21-22).
Exemplo peculiar dessa operação ideológica é o oferecido por Nicolas Tertulian
num artigo consagrado à apresentação da pleonástica “ontologia do ser social”
(literalmente: teoria do ser do ser social) de Lukács” (Tertulian, 1996, p.54-69).1
O autor anuncia “o objetivo de distinguir o pensamento autenticamente ontológico
de Marx da interpretação dada por Engels”, acusado de “responsável, de certa
forma, pela deformação staliniana do marxismo” e reproduz uma passagem de
Lukács que não deixa dúvidas a esse respeito: “Eu acredito [...] no fato de que
* Professor titular aposentado colaborador do Departamento de Filosofia da Unicamp. E-mail: jqmoraes
@gmail.com
1 Sobre a origem neoescolástica do termo ontologia, ver Quartim (2005, p.36, nota 14).
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58 Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
Engels e depois dele alguns social-democratas interpretaram o desenvolvimento da
sociedade em termos de necessidade em contraste com aquelas conexões sociais
de que fala Marx” (ibid., p.58-59). A frase pode sugerir posições revolucionárias,
mas um autor que em todos os aspectos merece mais crédito do que o ontólogo
romeno, assim se pronunciou a respeito de Lukács:
Há três sintomas dessa doença (infantil do comunismo) na excelente revista O
comunismo. O n.6 (de 1º de março de 1920) contém um artigo do camarada G.L.
intitulado “A questão do parlamentarismo” [...] do qual se dissocia nitidamente
o camarada B.K., autor do artigo “A questão de pôr em prática o boicote do
parlamentarismo” (n.18, de 8 de maio de 1920) [...]. Esse artigo de G.L. é muito
esquerdista e muito ruim. Seu marxismo é puramente verbal, a distinção que faz
entre a tática “ofensiva” e a tática “defensiva” é totalmente imaginária; nela não
achamos análises concretas de conjunturas históricas bem definidas [...]. (Lenin,
1961, p.167) 2
Que o “camarada G.L.” e seu discípulo romeno tenham aproximado Engels de
“alguns social-democratas” não tem importância maior do que a distinção entre
tática “ofensiva” e tática “defensiva”. O discípulo Tertulian garante, entretanto,
que o “pôr teleológico”, “célula geradora” da “vida social”, de Lukács “torna
impossível a confusão entre a vida da natureza e a vida da sociedade: a primeira é
dominada pela causalidade espontânea, não teleológica por definição, enquanto a
segunda é constituída através dos atos finalísticos dos indivíduos” (Tertulian, 1996,
p.63). Essa volatilização do marxismo, que o reduz, na acima referida expressão de
Foster, “ao mundo humano-social”, em última análise, portanto, a uma doutrina das
relações intersubjetivas, prosperou na vertente dita existencialista do idealismo do
século XX, em especial na filosofia da consciência de Sartre, que também gastou
tinta para desqualificar Engels. Tentativas semelhantes têm reaparecido em auto-
res anticomunistas do chamado “marxismo ocidental” contemporâneo. Quanto à
compulsão de salvar o homem de sua animalidade, dissipando a confusão “entre
a vida da natureza e a vida da sociedade”, ela sugere motivações metafísicas e
teológicas (o homem não se reduz à natureza, é composto de matéria e espírito, é
um animal racional; um intelectual cristão acrescentaria: é atormentado por uma
sede de transcendência).
Vale, entretanto assinalar que o próprio Lukács (2004) não manifestava
desapreço por Engels, reconhecendo-lhe o grande mérito de ter mostrado que o
homem se autoproduziu pelo trabalho e que nem todos os seus epígonos repeliram
a natureza para longe das relações intersubjetivas e da esfera da dialética. Como
2 A data deste comentário de Lenin é 12 de junho de 1920. O comunismo era a revista da Interna-
cional Comunista em língua alemã para o sudeste europeu. G.L. é Georg Lukács e B.K. Bela Kun,
o “organizador e dirigente do poder dos sovietes da Hungria em 1919” (Lenin, 1961, p.566 e notas58 Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
Engels e depois dele alguns social-democratas interpretaram o desenvolvimento da
sociedade em termos de necessidade em contraste com aquelas conexões sociais
de que fala Marx” (ibid., p.58-59). A frase pode sugerir posições revolucionárias,
mas um autor que em todos os aspectos merece mais crédito do que o ontólogo
romeno, assim se pronunciou a respeito de Lukács:
Há três sintomas dessa doença (infantil do comunismo) na excelente revista O
comunismo. O n.6 (de 1º de março de 1920) contém um artigo do camarada G.L.
intitulado “A questão do parlamentarismo” [...] do qual se dissocia nitidamente
o camarada B.K., autor do artigo “A questão de pôr em prática o boicote do
parlamentarismo” (n.18, de 8 de maio de 1920) [...]. Esse artigo de G.L. é muito
esquerdista e muito ruim. Seu marxismo é puramente verbal, a distinção que faz
entre a tática “ofensiva” e a tática “defensiva” é totalmente imaginária; nela não
achamos análises concretas de conjunturas históricas bem definidas [...]. (Lenin,
1961, p.167) 2
Que o “camarada G.L.” e seu discípulo romeno tenham aproximado Engels de
“alguns social-democratas” não tem importância maior do que a distinção entre
tática “ofensiva” e tática “defensiva”. O discípulo Tertulian garante, entretanto,
que o “pôr teleológico”, “célula geradora” da “vida social”, de Lukács “torna
impossível a confusão entre a vida da natureza e a vida da sociedade: a primeira é
dominada pela causalidade espontânea, não teleológica por definição, enquanto a
segunda é constituída através dos atos finalísticos dos indivíduos” (Tertulian, 1996,
p.63). Essa volatilização do marxismo, que o reduz, na acima referida expressão de
Foster, “ao mundo humano-social”, em última análise, portanto, a uma doutrina das
relações intersubjetivas, prosperou na vertente dita existencialista do idealismo do
século XX, em especial na filosofia da consciência de Sartre, que também gastou
tinta para desqualificar Engels. Tentativas semelhantes têm reaparecido em auto-
res anticomunistas do chamado “marxismo ocidental” contemporâneo. Quanto à
compulsão de salvar o homem de sua animalidade, dissipando a confusão “entre
a vida da natureza e a vida da sociedade”, ela sugere motivações metafísicas e
teológicas (o homem não se reduz à natureza, é composto de matéria e espírito, é
um animal racional; um intelectual cristão acrescentaria: é atormentado por uma
sede de transcendência).
Vale, entretanto assinalar que o próprio Lukács (2004) não manifestava
desapreço por Engels, reconhecendo-lhe o grande mérito de ter mostrado que o
homem se autoproduziu pelo trabalho e que nem todos os seus epígonos repeliram
a natureza para longe das relações intersubjetivas e da esfera da dialética. Como
2 A data deste comentário de Lenin é 12 de junho de 1920. O comunismo era a revista da Interna-
cional Comunista em língua alemã para o sudeste europeu. G.L. é Georg Lukács e B.K. Bela Kun,
o “organizador e dirigente do poder dos sovietes da Hungria em 1919” (Lenin, 1961, p.566 e notas
28 e 29).
Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 58Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 58 04/11/2020 13:53:4304/11/2020 13:53:43O trabalho na dialética da natureza 59
assinalou pertinentemente Silva (2016, p.322) em sua bem elaborada síntese so-
bre ontologismo e “antiengelsismo”, István Mészáros, o mais conhecido, senão
o mais importante continuador da linha de pensamento dita lukacsiana, observou
com ironia que
uma das maneiras pelas quais se procurou alijar do marxismo a objetividade das
determinações dialéticas consistia em declarar que eram uma criação de Engels, o
qual falava sobre dialética não apenas na história, mas, horribile dictu, também na
natureza. Isto, insistiam, devia ser rejeitado como incompatível com os próprios
escritos de Marx. No entanto, os próprios fatos, mais uma vez, dizem outra coisa.
Se alguém é “culpado” nesse aspecto certamente é o próprio Marx, que escreveu
a Engels, quase dez anos antes de este último começar a escrever sua Dialética da
natureza: “Você também perceberá, pela conclusão do meu capítulo III [do Capital],
[...] que no texto eu afirmo que a Lei que Hegel descobriu, de mudanças puramente
quantitativas se transformando em mudanças qualitativas, vale tanto na história
como nas ciências naturais”. (Mészáros, 1996, p.330-331, apud Silva, 2016, p.322)
A carta a que Mészáros se refere está datada de 22 de junho de 1867, pouco
menos de três meses antes da publicação do primeiro volume do Capital (em 14
de setembro). Em carta que lhe enviara em 16 de junho, Engels tinha comentado
a “nova teoria química” de August von Hoffman, que trouxe
grande progresso em relação à antiga teoria atomística, mostrando que a molécula,
enquanto a menor categoria da matéria capaz de ter uma existência autônoma, é
uma categoria inteiramente racional, um “nó” como diz Hegel, na série infinita
de partículas, em que ela não põe um termo, mas na qual ela marca uma diferença
qualitativa. O átomo (outrora representado como limite da divisibilidade) nada
mais é agora do que uma relação. (Marx; Engels, 1981, p.387-388; os grifos são
do original)
Em sua resposta de 22 de junho, após dizer que concordava inteiramente com
o amigo a respeito de Hoffman, Marx relacionou a lei hegeliana da transformação
das mudanças quantitativas em qualitativas à “teoria molecular”, e reitera que ela
é válida, tanto na história como nas ciências naturais (ibid., p.390-391).
É à luz da dialética da transformação das mudanças quantitativas em qualita-
tivas, que Marx, alheio à retórica do idealismo intersubjetivo (“pôr teleológico”,
“célula geradora da vida social” etc.), expõe sinteticamente no Capital a tese
de que o uso e a criação dos meios de produção caracterizam especificamente o
trabalho humano. Evidentemente, não cabia numa crítica da economia política
burguesa proceder ao estudo aprofundado das modalidades pré e extra-humanas
do trabalho; por isso, o ponto de partida do Capital é a forma de trabalho própria
à espécie humana, mas o leitor é advertido de que
Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 59Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 59 04/11/2020 13:53:4304/11/2020 13:53:4360 Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
a situação (Zustande) em que o trabalhador se apresenta no mercado como ven-
dedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos
a situação em que o trabalho humano ainda não se tinha desfeito [grifos nossos,
JQM] de sua primeira forma instintiva. Pressupomos [Wir unterstellen; grifos
nossos] o trabalho numa forma em que ele pertence exclusivamente ao homem.
(Marx, 1983, p.149)
A categoria pressuposição tem sentido forte em Marx. A despeito do estágio
elementar dos conhecimentos arqueológicos de seu tempo, ele deixou aberta a
perspectiva de uma história natural da hominização ao assinalar que, no “fundo
dos tempos primitivos”, os hominídeos ainda não haviam ultrapassado a “primeira
forma instintiva” do trabalho. Longe de inventar um cordão sanitário separando
metafisicamente o “pôr teleológico” da técnica rudimentar de muitas espécies de
viventes, Marx observa que “o emprego e a criação dos meios de trabalho, embora
se encontrem em germe (im Keim) em algumas espécies animais (grifos nossos,
JQM), caracterizam o processo de trabalho especificamente humano” (ibid.,
p.151). Com efeito, a capacidade de fabricar instrumentos, que “levou Franklin a
definir o homem como ‘a tool making animal’”, embora se encontre também em
germe em algumas outras espécies animais (inclusive o chimpanzé), caracteriza
o modo humano de trabalhar (ibid.).
A difícil assimilação do darwinismo
A ideia de que o homem se autoproduziu pelo trabalho, de origem hegeliana,
incorporou-se à formação filosófica de Marx e de Engels. Nos Manuscritos de
1844, Marx fala em “engendramento do homem pelo trabalho” (Marx, 1962, p.99)
e saúda a “grandeza da Fenomenologia de Hegel”, que concebe “o homem como
resultado de seu próprio trabalho. Mas o único trabalho que Hegel conhece e
reconhece é o trabalho abstrato do espírito” (ibid., p.132-133; grifos do original).3
A história concreta da autoprodução concreta do homem estava ainda para ser
escrita. Coube ao transformismo conferir materialidade ao princípio hegeliano de
que o real é intrinsecamente processual.
Até a passagem do século XVIII para o XIX, predominara inconteste no estudo
da vida a concepção dita fixista das espécies orgânicas. Com exceção de Buffon
(1707-1788), que anteviu a transformação das espécies no século XVIII,4 os gran-
des biólogos seus contemporâneos, notadamente Cuvier e Lineu, continuaram a
aceitar o princípio, até então um dogma entre filósofos e médicos (além do senso
comum), de que as espécies eram imutáveis. Foram os estudos de Jean Baptiste
Lamarck, consolidados em sua Filosofia zoológica (1809), que romperam com o
3 B. Naccache (1980, p.68) reuniu e comentou estas passagens a propósito da produção da mão pelo
trabalho.
4 Ver logo adiante a avaliação da obra de Buffon por Darwin.
Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 60Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 60 04/11/2020 13:53:4404/11/2020 13:53:44O trabalho na dialética da natureza 61
dogma do “fixismo”, introduzindo na história natural o princípio de que as espécies
se transformam. As ideias de Lamarck, sobre cujo alcance revolucionário não nos
parece necessário insistir, difundiram-se nos círculos intelectuais esclarecidos da
Europa durante as primeiras décadas do século XIX.
Embora tenha, com razão, atribuído muito mais importância à obra de Darwin
do que à de Lamarck, Engels elogiou o grande naturalista francês no Anti-Dühring
(1878), salientando seus “grandes méritos”, mas ressalvando que
no tempo dele a ciência estava longe de dispor de materiais suficientes para poder
responder à questão da origem das espécies de outra maneira que não fossem as
antecipações, quase profecias. Além dos imensos materiais reunidos desde então
nos domínios da botânica e da zoologia descritivas e anatômicas, vimos aparecer,
após Lamarck, duas novas ciências [...] o estudo do desenvolvimento dos germes
vegetais e animais (embriologia) e o dos vestígios orgânicos conservados nas di-
versas camadas da crosta terrestre (paleontologia). [...] Mas a teoria da evolução é
ainda muito jovem e não devemos duvidar de que as pesquisas futuras modificarão
muito sensivelmente as ideias atuais. (Engels, 1963, p.107)
Darwin consagrou a Lamarck uma página do prefácio (“historical sketch”) da
Origem das espécies, em que expõe sinteticamente as primeiras ideias científicas
modernas sobre a transformação das espécies orgânicas. Ele se refere inicialmente
a Buffon, o primeiro autor moderno “que tratou a questão com espírito científico”,
mas
como suas opiniões flutuaram muito em diversos períodos e ele não trata das cau-
sas ou meios da transformação das espécies, não preciso entrar aqui em detalhes.
Lamarck foi o primeiro homem cujas conclusões sobre o assunto atraíram muita
atenção. [...] ele foi o primeiro a prestar o eminente serviço de despertar atenção para
a possibilidade de que toda mudança no mundo orgânico, bem como no inorgânico,
era resultado de lei e não de miraculosa interposição. (Darwin, 1968, p.xxi-xxii)
Dentre as ressalvas que faz em seguida a Lamarck, duas teriam muito impacto
no pensamento da evolução. A primeira concerne aos “meios de modificação”
(das espécies): além da “ação direta das condições físicas” e do “cruzamento de
formas já existentes”, a mais importante era “o uso e desuso”, isto é, “os efeitos
do hábito”. A este último meio, “ele parece atribuir todas as belas adaptações na
natureza, tais como o pescoço longo da girafa, que lhe permite alcançar os ramos
das árvores”. A segunda remete aos princípios filosóficos do conhecimento da vida:
Lamarck “acreditou também numa lei do desenvolvimento progressivo”; todas as
formas deveriam então progredir, mas para dar conta da “existência, em nossos
dias, de produções simples” (= organismos que não progrediram), ele sustenta
Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 61Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 61 04/11/2020 13:53:4404/11/2020 13:53:4462 Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
que estas são “geradas espontaneamente” (ibid., p.xxii). Essa crítica darwiniana
da teleologia assume a firme defesa da objetividade científica.
É provável que Engels só tenha estudado Lamarck após a leitura da Origem das
espécies. O impacto dessa obra maior de Darwin, publicada em 24 de novembro
de 1859, foi enorme. Os 1.250 exemplares da tiragem inicial esgotaram-se naquele
mesmo dia. Engels logo comprou o seu: em 11 ou 12 de dezembro ele escreveu
a Marx de Manchester dizendo que
este Darwin, que estou lendo, é inteiramente sensacional. Havia ainda um lado
pelo qual a teleologia não tinha sido demolida; a coisa agora está feita. Além disso,
nunca havia sido levada adiante uma tentativa de tal envergadura para demonstrar
que há um desenvolvimento histórico na natureza. (Marx; Engels, 1975, p.445)
Um ano depois, em carta de 19 de dezembro de 1860, Marx conta ao amigo que
tinha lido, entre outros, “o livro de Darwin sobre a Natural Selection”; a despeito
da “bem inglesa falta de fineza no desenvolvimento, esse é o livro que contém,
no plano da história natural, o fundamento de nossa concepção” (Marx/Engels,
1978, p.248; grifos nossos, JQM). Em carta de 21 de janeiro de 1861 a Ferdinand
Lassalle, ele diz que o livro “é extremamente importante e me convém como
embasamento científico da luta de classes histórica” (ibid., p.265-266). Nos anos
seguintes, entretanto, criticando as pretensas “leis” de Malthus sobre a população,
ele e Engels assinalaram o que lhes parecia uma influência do malthusianismo no
pensamento de Darwin. Em carta a Engels de 18 junho de 1862, Marx observou
ironicamente que a seleção natural “reconhece nos animais e nas plantas sua própria
sociedade inglesa [...] e sua luta malthusiana pela vida” (Tort, 2007, p.97). Engels
retomou a questão em carta a F. A. Lange de 29 março de 1865, declarando ao
grande historiador do materialismo que os elementos de malthusianismo no estudo
que este publicara em 1865 sobre a questão operária mostravam “quão grande
vergonha para a sociedade burguesa moderna era não ter se elevado acima das
formas econômicas que encontramos nos animais” (Naccache, 1980, p.118-119).
Vale lembrar que a pretensa “lei” de Malthus sobre a diferença entre a taxa
meramente aritmética de crescimento da produção dos meios de consumo e a ta-
xa geométrica de crescimento da população estava provocando acirrado debate.
Darwin constatou, na trilha de Malthus, que a capacidade reprodutiva de cada
espécie tende a gerar mais indivíduos do que a capacidade de sobreviver. Este
“excesso” está inscrito na própria lógica da seleção natural: as espécies de fraca
capacidade reprodutiva tendem a ser eliminadas. Mas a ruptura do equilíbrio eco-
lógico de uma população, pondo em risco sua sobrevivência, pode advir dos mais
diversos fatores. Para muitas espécies, as maiores ameaças não provêm da escas-
sez de alimentos, mas do excesso de predadores. No caso da espécie humana, o
domínio (sempre relativo) que ela adquiriu sobre as forças naturais permite con-
trabalançar o crescimento populacional pelo aumento da produtividade agrícola.
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Como em muitas outras espécies, os comportamentos migratórios podem ter
efeitos análogos. Nem a capacidade reprodutiva, nem o ambiente, são dados está-
ticos; as leis da população são históricas, condicionadas pela evolução econômica,
notadamente pela produtividade do trabalho. Por apegar-se unilateralmente ao
descompasso entre a mecânica genética e a massa de alimentos disponíveis, Mal-
thus é incapaz de levar em conta a adaptação de uma espécie ameaçada a novas
condições mais propícias.5
Engels e depois Marx criticaram com acerto as “leis” malthusianas, por separar
abstratamente demografia e economia. Mas bem menos razão tiveram ao amal-
gamar as teses de Darwin com as de Malthus, aproximando-as também da guerra
de todos contra todos de Hobbes e da concorrência econômica de Adam Smith.6
Isso os levou a avaliar inadequadamente o conteúdo da descoberta científica
darwiniana, como ficou claro na carta que Engels enviou em 12 de novembro de
1875 ao escritor Piotr Lavrov, um dos teóricos do populismo russo. Sintetizando
sua visão do darwinismo, ele frisou que aceitava “a teoria da evolução”, mas
considerava o “método de demonstração (luta pela vida, seleção natural), apenas
uma primeira expressão [...] de um fato que vinha de ser descoberto” (Marx; En-
gels, 1971, p.309).7 Essa avaliação não leva em conta que são muitas as doutrinas
evolucionistas, mas as que importam, do ponto de vista do conhecimento, são
as que contribuem para explicar o fato básico a que Engels se refere: a transfor-
mação das espécies. A contribuição científica fundamental de Darwin consistiu
exatamente em mostrar qual é a mecânica da transformação. Vale examinar mais
de perto esse ponto decisivo.
A seleção natural articula a transmissão do código genético de uma geração a
outra às condições ambientais. Darwin não estava a par das leis da hereditariedade
descobertas por seu contemporâneo Mendel (que só post mortem foi reconhecido
como pioneiro da genética científica8); mesmo, porém, que delas tivesse notícia,
isso não teria afetado sua teoria: vantagens seletivas não são qualidades intrín-
secas dos indivíduos, mas relações entre eles e o meio ambiente. Não é preciso
5 Foi exatamente essa incapacidade de pensar a complexidade da evolução que marcou o limite da
influência inicialmente exercida por Malthus sobre Darwin. Vale ler as observações de J. Bellamy
Foster (2005, p.255-263) sobre esse tópico.
6 Naccache (1980, p.86-98 e 118-119) expõe pormenorizadamente as dificuldades, oscilações e
equívocos na assimilação do darwinismo por Marx e Engels, notadamente a respeito dos supostos
modelos de Hobbes, de Adam Smith e de Malthus.
7 Engels desenvolveu essas ponderações na Dialética da natureza (onde estão reunidos estudos de
1870 a 1882, publicados somente em 1927 por Riazanov).
8 Só no final do século XIX a importância das descobertas de Mendel tornou-se consensual nos meios
científicos. Elas foram confirmadas pelo colossal desenvolvimento da genética nos últimos 150 anos,
apoiado na biologia molecular, notadamente pela descoberta e identificação do ADN, iniciada em
1869 e progredindo passo a passo ao longo do século XX. (Não há de configurar excesso de zelo
patriótico designar por ADN o ácido desoxirribonucleico, em vez de empregar a sigla em inglês
DNA, como faz a maioria por aqui. Os portugueses, que defendem melhor do que nós o próprio
idioma, escrevem Sida e não Aids, como no Brasil, para designar a doença transmitida pelo vírus
da imunodeficiência.)
Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 63Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 63 04/11/2020 13:53:4404/11/2020 13:53:4464 Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
saber como se explicam as variações individuais para constatar que, deixando de
lado as malformações congênitas (sempre desvantajosas), é o meio ambiente que
determina, em cada situação ecológica, quais diferenças são vantajosas, desvan-
tajosas ou indiferentes (trifling na expressão de Darwin, isto é, irrelevantes para
a seleção natural). Uma espécie se transforma quando concentra uma “massa
crítica” de portadores de variações individuais que propiciam melhor adaptação.
Com efeito, não são os indivíduos tomados isoladamente que se adaptam, e sim
as populações: em milhares de anos, as vantagens seletivas tornam-se norma da
espécie; é ela quem evolui.
Nos questionamentos e oscilações da opinião de Engels e Marx a respeito do
darwinismo houve uma notável discrepância entre eles, suscitada pelos escritos
de Pierre Trémaux, um autor hoje esquecido, mas cuja obra Marx considerou
apressadamente, em carta a Engels de 7 de agosto de 1868, “importantíssima”,
chegando a dizer que ele corrigia e aprimorava Darwin (Marx; Engels, 1981,
p.304). Engels, mais atento, respondeu em 2 de outubro ao “Querido Mouro”,
que a teoria de Trémaux “é desprovida de conteúdo, porque ele não entende de
geologia, nem é capaz da mais trivial crítica histórico-literária” (ibid., p.318-319).
Eles voltaram ao tema nas cartas seguintes, Marx em 3 de outubro, Engels dois
dias depois, sem alterar substancialmente suas posições respectivas. O interesse
dessa discrepância entre os dois amigos está bem menos nos escritos de Trémaux,
que a posteridade julgou tão severamente quanto o havia feito Engels, do que em
ilustrar como eles acompanhavam com atenção as grandes questões científicas
de sua época.9
A mão, o cérebro, a linguagem
A pré-história natural do homem, que Marx deixou pressuposta no Capital,
porque seu ponto de partida era o processo de trabalho especificamente huma-
no, foi reconstituído, em seus traços fundamentais, na obra pioneira de Engels
(1968)10 sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem
(Menschwerdung). As descobertas arqueológicas que se acumularam depois de
1876 (quando ele redigiu seu estudo) retificaram algumas de suas hipóteses, que
ele tinha apresentado com prudente espírito científico:
Há milhares de anos atrás [sic], em um tempo ainda impossível de determinar com
certeza desta era da história da Terra que os geólogos chamam de terciária, prova-
9 Há uma boa síntese do caso Trémaux, buscando elucidar as implicações teóricas do debate, em
Dória (2007, p.110-127).
10 O papel do trabalho na transformação do macaco em homem (Anteil der Arbeit an der Menschwer-
dung des Affen, escrito por Engels em 1876 e publicado post mortem, em 1896, em Die Neue Zeit,
órgão da Internacional Socialista. Foi mais tarde incorporado à Dialética da natureza. Citamos a
versão eletrônica, tradução francesa de Émile Bottigelli (Paris: Éditions sociales, 1968). A referência
da edição padrão é: Karl Marx; Friedrich Engels. Werke (Band 20. Berlin: Dietz Verlag, 1962).
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velmente no final, viveu em algum lugar na zona tropical, presumivelmente em um
vasto continente submergido hoje no Oceano Índico, uma raça de macacos antro-
poides que tinha atingido um desenvolvimento particularmente elevado. Darwin
nos deu uma descrição aproximada desses macacos que seriam nossos ancestrais.
Eram completamente peludos, tinham barbas e orelhas pontudas e viviam em bandos
nas árvores. (ibid., p.152-153)
É provável que a hipótese do continente submerso tenha sido sugerida para
explicar porque até então não se conheciam espécies intermediárias entre os
macacos peludos e o Homo faber. Não foi encontrado nenhum continente nas
profundezas do Oceano Índico, mas em compensação foram descobertas, a partir
dos anos 1930, não longe da costa africana, na Tanzânia e no Quênia, as espécies
fósseis do muito dialético Australopithecus (que já não era mais macaco, mas
ainda não era homem), bem como do Homo habilis.
No essencial, entretanto, as teses centrais de Engels não foram desmentidas.
Ao contrário, continuam a oferecer, um século e meio após terem sido enunciadas,
a mais consistente linha de explicação da hominização. O ponto de partida é a
conexão da diferenciação funcional das mãos com a marcha vertical:
Em razão de seu modo de vida, que exige, para subir nas árvores, que as mãos
exerçam funções diferentes das dos pés, esses macacos começaram a perder o
hábito de se apoiar nas mãos ao caminhar no solo, adotando cada vez mais uma
postura vertical. Foi essa a etapa decisiva da passagem do macaco ao homem.
(Engels, 1968, p.153; itálico no original)
Evidentemente, há lacunas nessa explicação, que até hoje são objeto de dis-
cussão: o que levou aqueles macacos barbudos e orelhudos a abandonar a vida
arborícola? Não faltam hipóteses plausíveis (a começar da escassez relativa de
árvores), mas a lógica objetiva da evolução é clara: ao arriscar-se pelas savanas
infestadas de grandes felinos, eles desenvolveram a postura vertical. Ao se con-
solidar nos hominídeos, essa postura permitiu-lhes liberar plenamente as mãos.11
Engels menciona as capacidades manuais dos chimpanzés, mas enfatiza a diferença
que as separa da mão humana, “altamente aperfeiçoada por milhares de séculos
de trabalho”, ponderando que “jamais a mão de um macaco fabricou a mais rudi-
mentar faca de pedra”. Liberadas, as mãos puderam se especializar, tornando-se
“não apenas o órgão do trabalho, mas também o produto dele” (ibid., p.153-154).
Engels supõe, muito razoavelmente, que entre a aquisição da postura ereta
liberando as mãos (segundo ele, o “passo decisivo” da hominização) e a primeira
11 Na trilha de Engels, Tran-Duc-Thao considera “essencial notar que a mudança fundamental não
consiste na aquisição da bipedia em geral, mas da bipedia enquanto ela libera a mão. Tanto assim
que os gibões andam muito bem sobre os dois pés, mas são obrigados a estender os braços para
manter o equilíbrio: não há, pois, liberação da mão” (Tran-Duc-Thao, 1973, p.68, nota 2).
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66 Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
moldagem de um fragmento de pedra para fabricar uma faca, transcorreu um lon-
go período, comparado ao qual “o período histórico que nós conhecemos parece
insignificante” (ibid., p. 154). Não há teleologia imanente na lógica materialista da
evolução: o condicionante (bipedia) viabiliza o condicionado (destreza manual),
mas não o contém em embrião como os ovos contêm a ninhada.
Stephen Jay Gould, um dos maiores biólogos estadunidenses, profundo co-
nhecedor do darwinismo, reconheceu o alcance e a consistência do princípio de
explicação de Engels, ao defender a tese de que “a postura fez o homem” (Gould,
1997, p.207-213). Criticando frontalmente a ideia muito arraigada de que nos-
sa evolução foi impulsionada por um cérebro em expansão (ibid., p.207-208),
contrapõe aos que insistem dogmaticamente no integral primado evolutivo da
expansão cerebral, o “brilliant exposé” de Engels sobre os fatores principais da
hominização (ibid., p.210), do qual cita uma passagem célebre:
a mão não é apenas o órgão do trabalho, mas também o produto dele. Foi somente
pelo trabalho, pela adaptação a operações sempre novas e novas funções, pela
transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido por múscu-
los, ligamentos e, em um período mais longo, também por ossos, e pela aplicação
sempre renovada dessas habilidades herdadas para funções novas e cada vez mais
complexas, a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que o tornou capaz
de dar vida, como por magia, às pinturas de Rafael, às estátuas de Thorwaldsen e
à música de Paganini. (Engels, 1968, p.154)
Ao reproduzir aprobativamente a afirmação de que a mão do homem atingiu
a sublime perfeição das grandes obras de arte graças à “transmissão hereditária”,
desde a mais longínqua pré-história, dos aperfeiçoamentos sucessivos que a
adaptaram a “operações sempre novas e novas funções”, Jay Gould não julgou
ser o caso de entrar na secular controvérsia sobre a “leis” do uso e desuso e da
transmissão hereditária das características adquiridas formuladas por Lamarck.
Entretanto, mesmo não admitindo essas “leis” e considerando cientificamente
estabelecido que mudanças no fenótipo não afetam as células germinativas, a
explicação de Engels é compatível com a perspectiva darwiniana: a destreza
manual traz uma vantagem seletiva que aumenta a capacidade de sobrevivência
e, portanto, de transmitir o genótipo aos descendentes.
Evidentemente, ao sustentar que a postura ereta e a habilidade manual cons-
tituíram os mais decisivos fatores da hominização, Engels não estava perdendo
de vista a complementaridade da mão e do cérebro na dinâmica evolutiva. Quem
nega essa complementaridade são os continuadores da velha concepção metafísica
segundo a qual a inteligência é a essência congênita do homem, sua diferença
específica. Esse velho preconceito está refletido na consagrada fórmula classifi-
catória de Lineu: Homo sapiens. Perante a revolução transformista, que relegou a
crença na perenidade das espécies ao museu das ideologias pré-científicas, a defesa
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O trabalho na dialética da natureza 67
unilateral da definição do Homo pela sapiência teve de se deslocar para o terreno
científico, mantendo, porém, nesse deslocamento, a tese de que a hominização
foi impulsionada pela expansão do cérebro.
Sem dúvida, o crescimento gradual e constante da caixa craniana, exemplo
recorrente para ilustrar a formação do gênero humano, é um fato cientificamente
comprovado. Ele acompanha o desenvolvimento concomitante da capacidade cere-
bral: o crânio dos australopitecos variava entre 400 e 500 cm3; o do Homo habilis
tinha em média 600 cm3, o do Homo ergaster atingia entre 750 e 1.050 cm3; o
Homo sapiens, cerca de 1.400 cm3. Mas está também cientificamente comprovado
que essa concomitância é apenas parcial. O Homo neanderthalensis foi a espécie
do gênero Homo que atingiu o maior volume craneano: 1.700 cm3, ao passo que
o do Homo sapiens não foi muito além de 1.400 cm3. O que não impediu aquele
de desaparecer e este de dominar o planeta.
Os paleoantropólogos estimam que os mais antigos fósseis de neanderthalen-
sis até agora encontrados têm cerca de 400 mil anos e que a extinção da espécie
ocorreu há cerca de 25 mil anos. Mas não há acordo sobre as causas da extinção:
são várias as hipóteses, todas expressando a pesada carga de contingência que
pesa sobre a história natural da vida. Deles sabemos com certeza que produziram
artefatos não somente líticos, mas também ósseos, notadamente alisadores de
peles e couros. Há, porém, incerteza quanto a saber se a anatomia do aparelho
fonador de que dispunham permitiria apenas uma protolinguagem (como espécies
anteriores do Homo) ou uma fala articulada.
O debate entre arqueólogos, primatólogos, paleolinguistas e outros especialis-
tas permanece aberto, mas nada do que até agora eles descobriram ou formularam
desmente a linha de explicação proposta por Engels, vinculando a aquisição da
linguagem articulada ao “desenvolvimento do trabalho”, que
necessariamente contribuiu para estreitar os vínculos entre os membros da socie-
dade multiplicando os casos de ajuda mútua, de cooperação comum [...] os homens
em devir (die werdenden Menschen) chegaram ao ponto em que passaram a ter
algo a dizer. A necessidade cria para si o órgão de que precisa (Das Bedürfnis
schuf sich sein Organ): a laringe não desenvolvida do macaco se transforma lenta,
mas seguramente, de modulação em modulação mais elevada, e pouco a pouco
os órgãos da boca puderam exprimir sílabas articuladas, umas depois das outras.
(Engels, 1968, p.137)
A tese de que a necessidade cria o órgão tem forte ressonância lamarckiana,
mas não é incompatível com o darwinismo, sobretudo se por “necessidade de se
comunicar” entendermos a vantagem evolutiva que traz para uma população a
eficácia de seus meios de trocar informações. Os indivíduos dotados de órgãos
fonadores mais aptos a articular os sons transmitem essa vantagem a seus des-
cendentes, que tendem a se tornar mais numerosos do que os que não a têm, já
Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 67Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 67 04/11/2020 13:53:4404/11/2020 13:53:4468 Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
que suas possibilidades de sobreviver e de gerar, por sua vez, mais numerosos
descendentes, serão maiores. Reforça-se assim, de geração em geração, a evolução
adaptativa do órgão, até configurar mudança de qualidade anatômica. O exem-
plo da laringe, referido por Engels, mostra que a necessidade de se comunicar
criou o órgão de que carecia, modificando o suporte anatômico de uma função
orgânica já existente (controlar a entrada de ar) para torná-lo apto a exercer uma
nova função (emissão de sons articulados), seletivamente vantajosa na luta pela
sobrevivência. Engels acertou, pois, duplamente ao discernir na postura vertical o
passo decisivo da hominização. Primeiro, porque ela liberou as mãos, permitindo
que se especializassem na utilização de instrumentos, mais tarde na produção de
ferramentas. Segundo, porque combinando-se à diminuição do volume do maxilar
inferior, ela abaixou a faringe e alongou a laringe, permitindo o desenvolvimento
das cordas vocais, fortemente estimulado pela vantagem seletiva proporcionada
pela capacidade de articular sons.
A conexão dinâmica do aumento da capacidade cerebral com a aquisição da
linguagem articulada, viabilizada pela mudança anatômica que criou o aparelho
fonador, é um fato filogenético cientificamente estabelecido. Mas a nos atermos
a essa constatação, estaríamos apenas transferindo a dificuldade. Qual foi a di-
nâmica dessa conexão evolutiva? Darwin procurou explicá-la em A filiação do
homem, sustentando que a linguagem se origina “da imitação e modificação [...] de
vários sons naturais, das vozes de outros animais e dos próprios gritos instintivos
do homem” (Darwin, 1871, p.56). Ele atribuiu principalmente à sexualidade o
impulso à imitação que teria originado a linguagem. “Uma analogia largamen-
te difundida” na natureza viva permite-lhe afirmar que os homens primitivos
produziam cadências musicais “especialmente exercidas durante o cortejo dos
sexos”; “a imitação por sons articulados dos gritos musicais pode ter dado origem
a palavras que expressavam várias emoções complexas” (Darwin, 1871, p. 56).
Evidentemente (salvo para as espécies que se reproduzem sem combinação de
gametas), as pulsões sexuais são condições sine qua non da natureza orgânica.
Admitindo, com Darwin, que a emissão de sons desempenha papel importante no
cortejo sexual, mas considerando que as emoções libidinais costumam se expressar
por emissões guturais não articuladas, ficamos sem entender porque articular os
sons teria constituído um vantagem na seleção sexual suficiente para explicar o
salto formidável da história natural do Homo, que consistiu em passar do grito,
do uivo, das demais vocalizações emocionais e da troca de sinais pela expressão
corporal à transmissão de mensagens por palavras.
É de Engels o mais consistente princípio de explicação daquele salto formidá-
vel: a passagem das formas pré-humanas à forma humana do trabalho. O Homo
se tornou faber ao inventar ferramentas que lhe permitiram impor aos materiais
e meios de subsistência extraídos imediatamente da natureza ambiente uma
configuração útil em conformidade com o esquema funcional que sintetizara no
cérebro. A sinergia da destreza manual e da capacidade cerebral foi intensificada
Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 68Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 68 04/11/2020 13:53:4404/11/2020 13:53:44O trabalho na dialética da natureza 69
pelo caráter cooperativo do trabalho, que torna a comunicação indispensável não
somente para coordenar ações coletivas (a caça de grandes animais, por exemplo),
mas também para a transmissão da experiência acumulada de geração para gera-
ção. Associando um signo sonoro às atividades laboriosas mais comuns (“raspar”,
“cortar”, “furar”, “esmagar”, “lançar”, “moer”, “polir” etc.), os homens primordiais
inventaram seus modos próprios de trabalhar e de se comunicar, revolucionando
suas forças produtivas. Foi este o ponto de chegada da Menschwerdung des Affen
e o ponto de partida da história social da humanidade.
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Resumo
Autores antinaturalistas, que pretendem encapsular o marxismo no âmbito das
relações intersubjetivas, procuram desqualificar a original e decisiva contribuição
de Engels à dialética da natureza. Não obstante, alguns dos mais eminentes cien-
tistas e pensadores contemporâneos têm reconhecido a extraordinária importância
de sua explicação evolucionista da autoprodução do homem pela tese de que a
mão não é apenas o órgão do trabalho, mas também o produto dele. Discutimos
também a assimilação crítica do darwinismo pelo pensamento evolucionista de
Engels e de Marx.
Palavras-chave: Engels, Marx, darwinismo, mãos, cérebro.
Abstract
Anti-naturalist authors, who intend to encapsulate Marxism in the context of
intersubjective relations, seek to disqualify Engels’ original and decisive contri-
bution to the dialectics of nature. Nevertheless, some of the most eminent con-
temporary scientists and thinkers have recognized the extraordinary importance of
his evolutionary explanation of man’s self-production by the thesis that the hand
is not only the organ of the work, but also the product of it. We also discuss the
critical assimilation of Darwinism by Engels’ and Marx’s evolutionary thought.
Keywords: Engels, Marx, darwinism, hands, brain.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.