100 objetos que contam histórias de um século de vida do PCP
Da caixa de fósforos da casa clandestina ao jogo de xadrez feito com pão, da bicicleta do funcionário ao violino construído na prisão, da marmita para esconder o “Avante!” à máquina de escrever silenciosa, da bandeira hasteada no Barreiro em 1935 à primeira pedra arremessada no ataque ao Centro de Trabalho de Aveiro em 1975, o livro “Vozes ao Alto!” conta 100 histórias contidas na história do PCP. Neste artigo, contamos - e mostramos - uma vintena delas
2 setembro 2021 12:27
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É um mergulho profundo num mar de histórias materializadas a partir das narrativas contidas nos objetos mais díspares e inimagináveis. Intitulado “Vozes ao alto!”, o livro a lançar esta sexta-feira na festa do “Avante!” propõe-se, com base num intenso trabalho de recolha de objetos, alguns óbvios, outros de presença e importância inesperada, contar os múltiplos caminhos seguidos pela vivência dos comunistas portugueses durante um século.
Dividido em três períodos distintos, começa em 1921 e abrange os primeiros cinco anos de existência do PCP, numa legalidade precária que corresponde à crise final da Primeira República. Segue pelos 48 anos de resistência na clandestinidade, entre 1926 e 1974. E conclui com os já 45 anos de vivência em regime democrático.
Projeto coletivo concretizado através de financiamento colaborativo ao qual aderiram centenas de pessoas através das redes sociais, o livro foi elaborado com fotografias dos premiados Adriano Miranda, Egídio Santos e Paulo Pimenta, e textos de Cristina Nogueira, doutorada em Ciências da Educação e investigadora de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Isabel Nogueira, psicóloga, Maria Alice Samara, doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, e Vanessa de Almeida, licenciada em História e com mestrado em Antropologia. Não são todos comunistas, ou militantes do PCP. Como escreve o historiador Manuel Loff no prefácio, “não é preciso ser-se militante comunista para partilhar uma parte da cultura da sociabilidade comunista, mesmo que apenas, como fazem todas/os estas/es autoras/es, na afirmação pública do reconhecimento das motivações e dos valores que fundamentaram a conceção e a preservação de cada um destes objetos”.
Um vestido em Caxias
Começaram a envolver-se nesta aventura aos poucos, inspirados por fragmentos, ideias dispersas, curtas passagens de leituras diversas, como quando alguém chamada Conceição disse ter feito um vestido em Caxias. Ou a partir dos múltiplos significados e inimaginável importância de um objeto tão comum como uma caixa de fósforos, percepcionada durante a leitura de um artigo assinado por uma “Leonor”, publicado em “A Voz dos Camaradas”.
Depois começam as perguntas. Por exemplo, porque era tão importante uma caixa de fósforos numa casa clandestina? “Leonor” era Margarida Tengarrinha e dá a resposta no tal artigo, que se intitulava “A caixa de fósforos do Partido”. Ao referir-se àquele objeto afinal tão discreto, Tengarrinha, citada no livro, escreveu: “Acreditem que isto não é dar excessiva importância aos objetos, nem mesmo querer tornar simbólica uma questão de pormenor. Mas a ‘caixa de fósforos do Partido’ representa ainda hoje para mim a disciplina constante que se educa nas pequenas como nas grandes coisas”.
O primeiro comunicado
A viagem de um século proporcionada por este livro é impressionante. Abre com a reprodução de uma folha de papel de 104 por 76 centímetros encontrada na Torre do Tombo. É uma proclamação intitulada “Ao País”, data de 1921 e é tido como o primeiro comunicado do PCP. Foi apreendido pela polícia na algibeira de um jovem barbeiro oriundo do Porto, José Carlos Rodrigues Frias, às 7 horas da manhã do dia 13 de março de 1922 numa morada na Calçada de S. Vicente, em Lisboa.
Depois, é um constante navegar por uma verdadeira galáxia de objetos, alguns icónicos, outros apenas reflexo de um quotidiano vernacular. Podem incluir o cartão de militante, datado de 1925 e ainda chamado “bilhete de identidade”, a bandeira do PCP hasteada no Barreiro no dia 28 de fevereiro de 1935, depositada na Torre do Tombo e referente a um processo em que os réus são acusados do crime de "propaganda revolucionária". Naquele dia, pelas 22h15, é cortada a luz elétrica na vila e impõe-se a escuridão total. Militantes comunistas aproveitam para espalhar materiais de propaganda e são içadas oito bandeiras vermelhas, uma delas de grandes dimensões, no topo da chaminé de 36 metros de altura das Oficinas Gerais dos caminhos de ferro.
Um violino construído no campo de concentração
Há objetos inusitados, como um violino construído no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, por um comunista da Marinha Grande, algures entre 1936 e 1953. Se há um elemento icónico da clandestinidade comunista é a bicicleta utilizada por funcionários nas deslocações pelo país. Também lá está representada, tal como uma das brochuras mais míticas de quantas foram criadas pelo PCP: “Se Fores Preso, Camarada...”. O livro reproduz a primeira edição, de 1947, com capa azul e a foice e o martelo. Não é indicado o autor, mas sabe-se ter sido Álvaro Cunhal a perceber a necessidade absoluta de escrever um texto com recomendações para melhor ser enfrentada a duríssima prova da prisão e tortura. Como se explica no livro, “a leitura e a discussão desta obra eram obrigatórias. Nesta revela-se aquilo que o preso devia esperar, os métodos de tortura aplicados, bem como as alucinações daí resultantes. Descrevem-se os espancamentos ‘durante horas e horas a cavalo-marinho com grossas tábuas’, os ‘apertos de testículos, queimaduras com faíscas elétricas e com cigarros, pancadas brutais nas plantas dos pés descalços’, a tortura do sono, a estátua, assim como a incomunicabilidade”, a representação de papéis pela PIDE, com o polícia bom versus o polícia mau, bem como as permanentes ameaças e calúnias.
Por tudo isto, a brochura termina com um apelo ao orgulho do resistente: “Se fores preso, camarada, e souberes vencer as torturas e as horas difíceis, e se souberes honrar o teu nome de comunista, e se não prestares à polícia fascista, a esses inimigos do povo, quaisquer declarações prejudiciais ao Partido -, sentirás uma profunda alegria pelo teu próprio comportamento, ficarás profundamente satisfeito pela tua firmeza, pela confiança em ti próprio, e pela confiança e consideração do Partido, dos teus camaradas, da classe operária, dos trabalhadores, de todos os portugueses honrados.”
Uma coisa estranha
Os autores deixam bem claro não pretenderem com este livro elaborar uma história do PCP. Quando muito, serão contributos para uma melhor compreensão do universo comunista ao longo de vários períodos históricos. Na sua diversidade, os objetos representados – e são estes como poderiam ser muitos outros – abrem espaços de reflexão, não apenas para a história do PCP, como para a do mundo em que o partido nasceu, cresceu e se solidificou. Como escreve Manuel Loff, “estes cem anos confundem-se inevitavelmente com a história do país e do mundo em que o PCP existiu e existe, mas para o observador desatento, muito do que aqui se mostra, se explica, se recorda, pode parecer ter uma natureza estranha – porque, á luz da cultura política dos últimos quarenta anos, a clandestinidade é estranha, é estranha a decisão de dedicar uma vida inteira à luta política (quer a clandestina, quer a da democracia, como muitos comunistas, desde há quase meio século dedicam), estranha é a experiência da prisão política, que fica absolutamente longínqua da imaginação que a grande maioria de nós e dos nossos contemporâneos tem do que faz parte do campo do possível, do provável na vida colectiva dos portugueses”.
A história de uma pedra de calçada
Há objetos, sublinha o historiador “que quase marcam a continuidade entre dois ciclos de resistência – a resistência antifascista contra a ditadura e a resistência antifascista face á contrarrevolução. Em ambas esteve o PCP na primeira fila. É aqui que aparece uma pedra da calçada” conservada por um militante de Aveiro como prova material do ataque aos Centros de Trabalho (CT) do PCP perpetrados, sobretudo no norte do país, no Verão Quente de 1975, com destruição de Centros de Trabalho, ataques bombistas, assassinatos.
Esse é um passado, sublinha Loff, “de que quase não se fala quando se faz a história da Revolução Portuguesa. Aquelas pedras da calçada, eram pedras preparadas para matar, como se escreve no livro e constituíam apenas um dos elementos do imenso manancial de artefactos usados, escreve o historiador, pelo sortido mundo da contrarrevolução, “nessa bizarra (mas reveladora) coligação que ia da extrema-direita ao PS, passando pela hierarquia da igreja católica, ex-combatentes organizados e caciques locais”. Tentaram, e em muitos casos conseguiram, destruir “centenas de espaços que os comunistas e militantes de outros partidos e de sindicatos de esquerda tinham transformado nas suas sedes políticas e espaços de convívio”.
O livro tem duas formas de leitura, ou duas capas. A primeira, a azul, abrange a curta existência legal, entre 1921 e 1926, e o período de clandestinidade, de 1926 a 1974. A capa vermelha remete para o tempo da liberdade, entre 1974 e 2021.
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