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quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

 

Um elogio à liberdade do prazer

Cristhiano Aguiar escreve sobre "Da Erótica: muito além do obsceno", de Manuel Maria de Barbosa du Bocage: "Do sentimento amoroso idealizado ao mais obsceno, dos afetos, racionalizados como uma pedagogia dos sentidos, à mais crua das dimensões corporais humanas, a poesia do poeta português prova que tanto o sexo quanto o desejo estão entre os mais importantes temas da literatura."

ILUSTRAÇÃO: TINUS VAN DOORN

Por Cristhiano Aguiar

Quais são os limites, ou os critérios, que tornam um texto literário? O que significam os conceitos de bom ou de mau gosto nesse campo? Existem temas mais adequados ou menos adequados para a literatura? Da Erótica: muito além do obsceno, deliciosa reunião da poesia erótica de Manuel Maria de Barbosa du Bocage organizada de forma brilhante por José Paulo Netto, pode suscitar estes e outros questionamentos. Do sentimento amoroso idealizado ao mais obsceno, dos afetos, racionalizados como uma pedagogia dos sentidos, à mais crua das dimensões corporais humanas, a poesia do poeta português, grande voz da literatura do século XVIII em seu país, prova que tanto o sexo quanto o desejo estão entre os mais importantes temas da literatura.

E nada melhor que sermos orientados com precisão nesse encontro com um poeta distante de nós trezentos anos no tempo, mas ainda assim tão presente. Soma-se ao substantivo prefácio do escritor português Francisco Louçã uma introdução alentada à vida e à obra do poeta, elaborada por José Paulo Netto. Mais conhecido como ensaísta político, neste trabalho Netto retorna ao campo da crítica literária, no qual é igualmente voz de destaque. Seu estudo introdutório vem acompanhado de um arsenal de notas explicativas sobre a poética bocagiana e sobre outros temas que tangenciam seu universo. Como complemento, uma cronologia da vida e da obra do poeta português.

À literatura interessa tudo o que é humano. É a nossa humanidade, às vezes literalmente despida, que corremos o risco de encontrar sempre que lemos um conto, um romance ou um poema. E a poesia de Bocage é um elogio à liberdade do prazer.

Uma de suas maiores qualidades consiste em apontar as diferentes dimensões do desejo. Encontramos nela sexo explícito e descrito sem meias palavras. Há cenas de prazer solitário, outras de intensa imaginação amorosa, platônica, outras ainda que representam jogos de sedução entre enamorados. Em Bocage, o corpo desejante é turbilhão de emoções, excitação, ansiedade e – por que não? – crueldade. A trilha do desejo que seus versos sugerem nos conduz a um ponto de chegada: o da descoberta e da afirmação de nós mesmos, em plenitude.

Em tempos difíceis como os que vivemos, há mais de uma lição a ser aprendida com o erotismo escrito de um poeta do século XVIII. É o próprio Bocage quem nos avisa: “Então sentimos comoções insólitas,/ Que origem são dos males que te oprimem,/ Do amor que te domina, melancólico,/ Da forte agitação que em ti pressentes./ Mas tudo tem remédio, eu hei de dar-to;/ Feliz serás, se o trilho me seguires”.

***

Um dos maiores estudiosos do marxismo no Brasil, José Paulo Netto retoma em Da Erótica: muito além do obsceno, seu talento igualmente reconhecido de crítico literário. Na obra, além de selecionar e organizar o material, apresenta ao leitor, em um alentado ensaio, o universo da vida e da arte de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, autor português do século XVIII. Sua seleção e comentários destacam o aspecto libertino do controvertido poeta, sem deixar de ressaltar sua qualidade literária, cada vez mais reconhecida, que lhe garante lugar seguro entre os clássicos da literatura portuguesa.

A apresentação consiste assim em um ensaio de fôlego que estabelece uma linha histórica da literatura portuguesa da época, situando nela o poeta, sua vida e sua obra. E de quebra exibe, nas muitas notas de rodapé, uma profusão de informações por si só igualmente interessantes, compondo um variado e valioso painel. Complementam a edição uma cronologia relativa ao poeta português, referências bibliográficas e um útil índice onomástico.

“A compilação que José Paulo Netto organizou oferece os textos quiçá mais relevantes desse caminho, incluindo obras maiores da poética bocagiana, também alguns dos seus atrevimentos pícaros, discutindo nuns casos a autoria, noutros garantindo a origem, sempre comentando e ilustrando aqueles versos com notas detalhadas, sem as quais nos perderíamos no labirinto de alusões e diversões do poeta”, escreve Francisco Louçã no prefácio da obra.

Já Netto afirma em sua apresentação: “Penso que Bocage deve ser abordado, explicado e compreendido como um libertino […] – e notadamente sua erótica (mas não só ela), na sua essencialidade, como amostra privilegiada e mais expressiva da concepção libertina possível no Portugal da última década do século XVIII. Resumindo, tenho a erótica bocagiana como exemplar privilegiado e ímpar da literatura libertina portuguesa do seu tempo”.

Fruto de rigorosa pesquisa documental, Da erótica é uma seleção inédita dos poemas de Bocage, acompanhados de um texto de apoio que, ao mesmo tempo que o desvenda para o leitor, salienta sua inegável condição de autor clássico. A apresentação é também marcada pelo ineditismo, já que nunca antes a obra desse autor tinha sido objeto de uma apreciação marxista, algo que José Paulo Netto executa de forma brilhante ao mesmo tempo que apresenta uma seleção da produção bocagiana e um painel do ambiente e da época em que ela foi desenvolvida. 

“Bocage deve ser compreendido como um libertino – e sua erótica, na sua essencialidade, como amostra privilegiada e mais expressiva da concepção libertina possível no Portugal da última década do século XVIII.”
José Paulo Netto

“Descobrimos com José Paulo Netto que a poesia de Bocage, mesmo a obscena, trata de outro modo
de eternidade, aquela que nem mesmo as normas repressivas ou os poderes asfixiantes conseguem
domesticar – a pulsão erótica, o amor como liberdade essencial –, aquilo que não é uma ilusão, mesmo
que possa iludir. Talvez isso seja eternidade.”
Francisco Louça
 

Da Erótica: muito além do obsceno, de Manuel Maria de Barbosa du Bocage tem seleção, organização e apresentação de José Paulo Netto, prefácio de Francisco Louçã, capa e projeto gráfico de Maikon Nery, texto de orelha de Cristhiano Aguiar, ilustrações de Tinus van Doorn.

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