Por minha vontade eu ia-me embora
Estive a ler umas coisas sobre as Cruzadas. Nem tudo foi novidade para mim pois já havia lido não poucas páginas de História, e aqui refiro-me às aulas no Liceu dessa disciplina (que nome engraçado!) e de uma professora que chegava depois do intervalo das dez da manhã toda lambuzada de pasteis no buffet, eu dizia para mim que era acometida por aqueles ataques devoristas a que as grávidas são presas fáceis já que ela engravidou pelos menos três vezes desde o meu terceiro ano até ao quinto. Além dessa senhora eu lia muito sobre assuntos relacionados com a História Universal e tudo que lia naquele tempo era a favor dos europeus cristãos e brancos, portanto nós “descobrimos” o Brasil, Cristóvão Colombo “descobriu” um continente julgando que chegara às Índias, que as Cruzadas foram heroicas campanhas da fé cristã contra os fanáticos, infiéis, muçulmanos bárbaros. Onde nós europeus chegávamos, “descobríamos” o que sempre lá esteve. Provavelmente à nossa espera, mil ou quatro mil anos. À espera da “civilização”.
As Cruzadas tiveram como finalidade primeira, dizia-se, libertar a Palestina da ocupação muçulmana. Claro que tiveram outros motivos : controlar rotas comerciais milenárias valiosas, impondo tributos de passagem, importando e exportando mercadorias a bem ou a mal ; diminuir os filhos nas famílias dos servos da gleba poupando na comida, permitir aos filhos não primogénitos dos nobres aplicarem a ferro e fogo expropriações de terras e outras riquezas pois que, pelos costumes de então, não eram herdeiros de património nenhum. Claro que há sempre estes e mais outros motivos, todos somados. Muitos anos depois dessas aulas dessa professora que matava pelo tédio o melhor estudante do planeta qualquer que fosse, constatei que afinal os cristãos voltariam a guerrear muçulmanos não para libertar a Palestina mas para varrê-la do mapa e que os bons da história eram os judeus que nos reinos europeus eram mortos à pedrada nos pogroms. A Palestina mítica dos Cavaleiros Teutões e dos Templários é agora uma multidão de pessoas que precisam de ser eliminadas por serem muçulmanas. E ser muçulmano é uma espécie de mácula, labéu, mancha negra de nascença, genética. Gentes inclinadas para o sacrilégio, para o crime, preguiçosos criadores de cabras, guerreiros bárbaros do império de Saladino, esse estratega impiedoso e triunfante, gentes que ocuparam o Santo Sepulcro e não acreditam que o Messias já veio uma vez. O curioso desta história é que foram, ou são, os judeus que “libertaram” o Santo Sepulcro quando na verdade também eles não creem que Deus já veio na forma do Filho Homem.
Os livros de história dizem que foram cinco as cruzadas, que pela primeira os cristãos ainda se aguentaram pelo Oriente uns tempos até que foram escorraçados pelo grande chefe militar, o referido sultão Saladino, e que a quinta ficou conhecida como a Cruzada das Crianças, sendo que, afinal, esta última não foi uma mas duas e que nem da Europa chegaram a sair as crianças, morrendo de fome ou vendidas como escravos.
Quando eu era estudante do Liceu tive muita admiração pelo povo judaico que havia encontrado finalmente uma terra e uma casa após tantos séculos de sofrimentos e uma tentativa de extermínio total. Assim rezava a história que ouvi e os compêndios que tive de decorar. Até vi um filme que me comoveu intitulado “Êxodo”, de Otto Preminger (1960) cuja epopeia era interpretada por aquele ator e aquela atriz inesquecíveis que foram Paul Newman e Eva Marie Saint. Fui logo ler o livro em que o filme se inspirou escrito nos anos cinquenta e que narra, com um fraco nível literário reconheci, a viagem dos pioneiros colonizadores. Contudo isto de qualidade dos filmes e livros pouco importa, de facto foram ambos de uma eficácia absoluta aqui na Europa, e isso, como propaganda da Guerra Fria, era o que mais importava. A finalidade nunca fora outra nos filmes e nos livros que se viam e liam. Nem sequer me perguntei : e os habitantes da Palestina?
Somente mais tarde, talvez no sétimo ano do Liceu, é que acordei.
Há sempre muito mais gente que ficou apenas com a leitura da história dos vencedores. E jamais verificaram que os vencedores podem ser amanhã os vencidos.
Numa coisa a história é sempre igual : ou começa pela violência ou acaba nela.
----------------------N. P. --20/07/2025------------------------------
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