“O Juízo Final”, Giotto. Imagem: Wikimedia Commons
Por Bruna Della Torre
Você não pode matar o que já está morto.
— Propaganda do filme O retorno dos mortos-vivos (2006)
O apocalipse está por toda parte: no cinema, na literatura, nos videogames, nas plataformas de streaming, nos museus, na televisão e nos memes das mídias sociais. Eventos que não contenham algum sinônimo de “catástrofe” em seu nome parecem não estar up to date; em poucos anos, liberais como Petra Costa passaram da vertigem diretamente ao apocalipse, e a própria imaginação apocalíptica converteu-se, em muitos casos, em tecnologia de governo. Intelectuais como o francês Jean-Pierre Dupuy, especialista em colapso, são convocados por órgãos públicos como consultores do fim do mundo. “Scenario building” [construção de cenários] — um exercício especulativo originado na ficção científica — hoje faz parte do currículo da Ciência Política (já resignada a tentar prever ao invés de explicar ou transformar qualquer coisa). Mais do que um tema, o apocalipse constitui o que se poderia chamar de novo campo de sensibilidade. Ou seja, uma maneira de experimentar o mundo, ou de imaginá-lo. Não se trata do conjunto de ideias ou de comportamentos que marcam uma época apenas, mas de algo que os configura e conforma.
Diante da hiperglobalização da guerra e da constante intensificação da ameaça nuclear; da crise climática que projeta a extinção da humanidade e de incontáveis outras espécies; da ascensão do fascismo e do esgotamento terminal do capitalismo, não poderia ser diferente: o mundo está, evidentemente, acabando. A catástrofe não é uma exceção, mas a própria dinâmica de reprodução do capitalismo hoje. Nesse contexto, até mesmo a pergunta a respeito da adequação de nossa imaginação ao presente histórico parece ociosa. Por isso mesmo, vale a pena investigá-la.
Por séculos, o apocalipse tem sido um objeto privilegiado da estética. Foi pintado por Giotto (“O Juízo Final”, 1303-1310), por Albrecht Dürer (série de gravuras “Apocalipse”, 1496-1498) e Bosch (“Tríptico do Juízo Final”, 1482); reescrito por Dante Alighieri (Divina Comédia, 1304-1321), William Blake (Matrimônio do Paraíso e o Inferno, 1790-1793), Toni Morrison (em Amada, de 1998, os quatro cavaleiros reaparecem), Svetlana Alexijevich (Vozes de Chernobyl, 1997 e O fim do Homem Soviético, 2013); musicado por Gustav Mahler (2ª Sinfonia, Ressurreição, 1894); dramatizado por Igor Stravinsky (O dilúvio, uma peça musical, 1962) e por Samuel Beckett, cuja obra pode ser considerada quase que integralmente como uma figuração das várias dimensões desse imaginário, só para citar alguns poucos exemplos.
Hoje, no entanto, o apocalipse se tornou uma espécie de consenso cultural — e como acontece com grande parte da doxa, sua função como ideologia parece ter sido deixada de lado. Especialmente no âmbito da indústria cultural, chegamos a um ponto em que não se trata de dizer que imaginar o fim do mundo é mais fácil do que conceber o fim do capitalismo — como fizeram Fredric Jameson e Mark Fisher na formulação já estilhaçada pelo clichê, hoje presente até mesmo em séries de televisão como em Um homicídio no fim do mundo (2023). Ao contrário, imaginar o fim do mundo nunca foi tão fun. O apocalipse fascina. O modo como esse campo conforma e orienta a indústria cultural, como gostaria de discutir a seguir, intensifica uma sensibilidade insensibilizada.
Não é novidade que a imaginação apocalíptica presente na indústria cultural sempre esteve ligada ao Zeitgeist. A década de 1920 na Alemanha foi um período de monstros, marcada pelos filmes de horror que anteciparam o nazismo, como O gabinete do Dr. Caligari (1920), O Golem: como ele veio ao mundo, e Nosferatu: uma sinfonia de horror (1922). Nos Estados Unidos na década seguinte, eles foram sucedidos por Dracula (1931), Frankenstein (1931), A múmia (1932), Zumbi Branco (1932), King Kong (1933). Essas produções expressavam o apocalipse da subjetividade diante do monstro sedutor, a destruição da cidade grande pelo gigante descontrolado, a revolta catastrófica do passado, a perda de controle da sociedade sobre aquilo que ela mesma produziu. Nas décadas de 1950 e 1960, foi a vez da ficção científica, com A conquista do espaço (1955), Guerra dos mundos (1953), O dia que Marte invadiu a terra (1963), A noite dos mortos vivos (1968) — um dos filmes de zumbi mais interessantes feitos até hoje, com um desfecho extremamente atual. Zumbis, alienígenas, meteoros evocavam o trauma da aniquilação em massa produzida pela bomba atômica e o medo da invasão do inimigo externo promovida pela Guerra Fria. (Do lado do cinema experimental, por exemplo, de Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Glauber Rocha, a crise da sociedade burguesa apresentava-se de outra maneira; tratava-se de apocalipse como forma, não como tema — mas esse ponto fica para depois, já que o assunto aqui é a indústria cultural.)
Na década de 1980, os filmes Mad Max (1981 e 1985) conjuravam a distopia da crise do petróleo e da crise ecológica, enquanto Blade Runner (1982), O Exterminador do Futuro (1984) e Robocop (1987) exprimiam a perda de memória histórica, o colapso urbano, a emergência de novas grandes corporações e a aniquilação do indivíduo sob o neoliberalismo, bem como a inauguração da prisão como modelo institucional da sociedade. Os anos 1990, com o boom do dot.com, inundaram a indústria cultural com as distopias digitais e de vigilância. O já clássico Matrix (1999) antecipava um mundo dominado por máquinas (e pela inteligência artificial), eXistenZ (1999) tratava do apagamento da realidade pelo mundo virtual.
Da crise de 2008 até aqui, com o que tem se convencionado chamar de “policrise”, temos visto crescer o gênero apocalíptico na indústria cultural, que combina, de uma forma ou de outra, todas as tendências acima descritas: monstros (aliens, zumbis, fungos, mutações de todos os tipos), luta pelo território ocupado pelo inimigo, ameaça nuclear, vingança das máquinas e/ou da natureza contra a humanidade, colapso tecnológico, bem como invasões virais (uma tendência que já existia, mas se acentuou brutalmente com a pandemia de Covid-19) e crises reprodutivas. O algoritmo que reúne as preferências dos usuários indica que apenas um desastre de cada vez não é mais suficiente. Agora são pandemias ou desastres naturais/tecnológicos que produzem zumbis/monstros/máquinas que dominam as pessoas (dois desastres de uma vez, seguidos por um terceiro, o colapso da ordem social). Vivemos num capitalismo ensopado de uma consciência religiosa, que de alguma maneira reencanta a imaginação histórica há muito fraca em esclarecimento. A imaginação do desastre só cresce e a indústria cultural é uma de suas principais profetas. A apocalipse é seu grande tropo hoje.
Os scripts não mudam muito em relação aos que os precederam, mas a qualidade do material se transforma. Acontece com os produtos da indústria cultural o que aconteceu com o restante das mercadorias nas últimas décadas: da mesma maneira que eram produzidos, apesar da suposta baixa tecnologia para os padrões atuais, com uma duração razoável (um rádio durava 60 anos e uma lâmpada, um século), agora essas mercadorias são fabricadas em catadupas, com alta tecnologia, mas totalmente descartáveis. Elas revelam também a decadência da indústria americana como um todo. Os filmes (e séries) da indústria cultural, que antes sustentavam décadas de interesse, hoje são resultado da tecnologia mais avançada, inundam as plataformas de streaming e são, em sua esmagadora maioria, tão descartáveis quanto as quinquilharias que caracterizam o estágio atual do capitalismo em outros âmbitos. Se um dia, ainda que na chave da indústria cultural, foi possível falar de um bom gosto no interior do mau gosto no que se refere a esses filmes (vale lembrar como vários deles eram considerados “filmes b”), hoje a situação vai de mal a pior — e aqui a ênfase é mesmo na indústria cultural blockbuster, que é a mais consumida mundo afora.
A relação com o espírito do tempo se mantém. Filmes e séries como Madrugada dos mortos (2004), Planeta Terror, Guerra Mundial Z (2013), Nós (2019), Exército dos mortos (2021), a franquia Resident Evil (2002-2021) – derivada do videogame japonês – e séries de grande público como “The Walking Dead” (2010-2022), bem como seus cinco spin offs, e inúmeros filmes e séries orientais de mesma temática, como os sul-coreanos Trem para Busan (2016) e Península (2020), em geral, evocam as ansiedades geradas pelo “cada um por si e todos contra todos” da ordem neoliberal atual. A figura do zumbi, comum a esses filmes, alude a um medo fundamental hoje, produzido pela atomização e pelo isolamento incrementados pelo capitalismo de plataforma: o do contato. A relação com o outro pode ser fatal (também um tópico dos filmes e séries que têm em seu centro a infecção viral): o contato ou mata, ou contamina, extingue a individualidade e transforma em zumbi.
O estado de morto-vivo (de corpo sem consciência) do zumbi é uma metáfora da alienação e da catatonia que marca a individualidade contemporânea — aparentemente bastante cool, reencenada nas zombie walks, eventos nos quais as pessoas passeiam em grupo pelas cidades fantasiadas como zumbis. Em alguma medida, pode também ser considerada uma expressão tanto da epidemia autodestrutiva de consumo (os zumbis têm uma fome insaciável e são antropófagos) quanto da epidemia de drogas como fentanil (o apelido de Baltimore, hoje, é zombie town), além de reiterar o medo da despersonalização e da perda da consciência do indivíduo em meio à massa. Em sua figura, expressa-se a desumanização do capitalismo. O zumbi nunca está sozinho, anda sempre numa multidão perigosa. Para alguns, constitui uma imagem da classe trabalhadora, expropriada de seu livre arbítrio pelo capitalismo, mas insurgente e revoltada (em contraposição à figura de outro morto-vivo, o vampiro, seu doppelgänger aristocrático e solitário — a grande alegoria do capital utilizada por Marx). Talvez, contudo, faça mais sentido imaginar essa multidão como a malta de extrema direita — não tem como não pensar a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, e da Praça dos Três Poderes, no Brasil, como um filme de George Romero (ou, talvez melhor ainda, de Robert Rodriguez ou Rob Zombie — Rejeitados pelo Diabo (2005) não é um filme de zumbi, mas cai bem como referência dessas cenas de terror). A invasão zumbi nesses produtos quase sempre é também uma fantasia da derrubada da ordem liberal burguesa e de seus bons modos e costumes (bem como de suas regras “politicamente corretas”). Nesse sentido, basta pensar em The Walking Dead, por exemplo, quando Rick Grimes a certa altura profere com gosto e autoridade para seu grupo: “this is not a democracy anymore” [Isso não é mais uma democracia].
O apocalipse nesses filmes sugestiona também todo o imaginário da prep ideology [preparacionismo], do armamento da população civil e do survivalism [sobrevivencialismo]. O campo de sensibilidade apocalíptico — embora possa ser interessante em outros âmbitos —, sob a indústria cultural, é caracterizado por uma mistura de conteudismo político multiespectral, referências explícitas e imagens espetaculares. A ficção apocalíptica ou pós-apocalíptica é, muitas vezes, a ocasião para a expressão de um libertarianismo coletivista no qual a maior virtude é a força, em que o individualismo normalmente é pago com a morte (aquele que não se une a um grupo perece — torna-se zumbi, por exemplo) e que muitas vezes restaura o heroísmo masculino, ainda que com verniz moderninho. Vale notar a deprimente euforia em torno do personagem do ator Pedro Pascal — e de seu caráter de slutty daddy — na série The last of us, também baseada em um videogame. Aliás, essa é outra tendência: o refluxo desse meio cujo mercado já ultrapassou em muito o do cinema, e que é despido de uma narrativa digna do nome para os filmes e séries. Muda-se de um meio a outro para encontrar os mesmos temas e histórias — isso sem mencionar a onda de remakes, outro sintoma do esgotamento da imaginação contemporânea.
Outra vertente importante é o apocalipse biopolítico, que expressa também todo o investimento neoliberal no disciplinamento e administração de corpos. A Ilha (2005), Biohackers (2021) e Black Mirror (2011-2023) trabalham com ansiedades ligadas à manipulação genética corporativa. Filhos da esperança (2006) e a série O conto da Aia (2017-2025) giram em torno do pânico ligado aos direitos reprodutivos que marcaram a política nas últimas décadas. Em um dos episódios da série, a protagonista June — uma aia, sistematicamente estuprada e obrigada a entregar ao estuprador e sua família o bebê resultante do estupro —, fugindo da ordem autoritária produzida pela crise de infertilidade que libera o apocalipse autoritário, encontra refúgio num DVD da série Friends e na escuta de música pop, que aparece para ela como uma lembrança dos tempos de liberdade. O “se isso continuar…” da ficção científica distópica no cinema muitas vezes tem o efeito reacionário reverso do “ainda bem que ainda não chegamos lá”.
O antropoceno (com suas catástrofes atômicas e tecnológicas) também é onipresente nas telas. Depois de O dia depois de amanhã (2004), filmes como Fim dos tempos (2008), O livro de Eli (2010), Terremoto: a Falha de San Andreas (2015), Tempestade: planeta em fúria (2017), Aniquilação (2019), o enfadonho e hiper discutido Não olhe para cima (2021), Estação 11 (2021), Deixe o mundo para trás (2023) e a série O Expresso do Amanhã (2020-2023) nos oferecem as imagens da catástrofe climática: cidades arrasadas, desertificadas, inundadas, congeladas — mundos em que é preciso comer insetos, queimar livros para sobreviver, nos quais nos deparamos ou nos tornamos seres híbridos e pós-humanos (na trilha de imaginários como o suscitado pelos escritos de Donna Haraway).
Esses produtos seguem, na maior parte das vezes, uma fórmula pronta, que varia pouco:
- Há um evento (o surgimento de um vírus, um vazamento radioativo ou químico, o aparecimento de um monstro, a descoberta de que o meteoro vai colidir com a terra etc.);
- Alguém que enxerga ou descobre esse evento antes de todos é desacreditado, ou enfrenta a solidão de quem sabe antes de todos;
- Uma crise é desencadeada pelo evento, e mobiliza o Estado e as forças militares e/ou policiais, bem como instituições científicas. Todas falham;
- Multidões entram em pânico e o herói deve se virar sozinho até reencontrar sua família ou constituir um grupo — que cada vez mais imita a família nuclear;
- Há um desenlace final com a vitória do bem contra o mal, e o mundo se reconstrói ou, tendência mais forte ultimamente, enfrenta-se a derrota niilista diante do inevitável.
A Terra torna-se inóspita por calor extremo, poeira nuclear, falta de água ou ar poluído, há uma migração forçada pelo evento na paisagem de cidades destruídas — muitas vezes há uma busca por um refúgio que só aparece ao final, ou nem aparece. São recorrentes os refúgios de elite (cúpulas, bunkers, colônias em outros planetas…). Ou surgem monstros, zumbis ou vírus que derrubam democracias liberais e destroem a normalidade da vida cotidiana. Há luta por recursos que se tornam escassos e projeta-se uma espécie de novo estado de natureza — aqui vale notar passagem das distopias do Estado planificado do pós-guerra (que normalmente evocava Estados que se tornam autoritários para conter o caos) para as distopias do Estado neoliberal e do novo capitalismo monopolista, em que sobrevivem apenas indivíduos atomizados que lutam entre si (normalmente divididos entre sobreviventes ricos e moribundos pobres), milícias privadas e corporações. Etc. Um dado curioso é que, se esses filmes e séries muitas vezes retratam romances (embora estejam cada vez mais centrados na família), neles o sexo raramente aparece, revelando que o apelo sexual — um dos principais instrumentos da indústria cultural — subjaz, talvez, na fantasia de aniquilação que esses filmes mobilizam.
Quando olhamos para a indústria cultural — mais do que utopias, como defendia Fredric Jameson —, podemos observar uma série de ansiedades e fantasias (reacionárias, em sua maioria) que se expressam em seus produtos. Diante dessa nova imaginação apocalíptica, a crítica cultural enfrenta hoje dificuldades. Os estudos culturais, agora mais media studies do que qualquer outra coisa, especializaram-se em olhar para essas mercadorias culturais conferindo centralidade a seu conteúdo mais imediato e no que ele revela de uma perspectiva política, social, psíquica. Eles se tornaram uma poética da indústria cultural. Hoje, já se pode observar o surgimento de, por exemplo, uma “zumbiologia” nas humanidades. É inacreditável o número de livros e artigos especializados na figura zumbi (dedicados não à sua origem africana ou a investigar sua presença, por exemplo, no imaginário da revolução haitiana, mas nos filmes de Hollywood).
Às vezes essas leituras podem ser interessantes, e é inegável que os estudos culturais solucionam um problema no interior da crítica cultural marxista. Seus dois conceitos mais importantes, se pensarmos o marxismo como teoria crítica, são os de “crítica imanente” e de “indústria cultural”. No entanto, não é possível estudar a indústria cultural um produto por vez, já que ela é um sistema no interior do qual mesmo as obras de arte um dia consideradas autônomas mudam de função. Tampouco a crítica imanente serve para pensar produtos como os acima descritos, porque ela exige densidade e, de uma perspectiva formal, esses objetos são profundamente superficiais. Nesse caso, os estudos culturais ajudam, embora sejam, na esmagadora maioria das vezes, completamente complacentes com o caráter de mercadoria de seus objetos e se vejam, de alguma forma, obrigados a defendê-los. O que fizeram, por exemplo, Jameson, Fischer e Slavoj Žižek, apesar dos resultados individuais muito instigantes, fez encolher consideravelmente nossa disposição crítica diante da indústria cultural como sistema. Além disso, o close reading de obras unidimensionais muito raramente resultará numa crítica mais profunda. Para que a crítica vá além da superfície, é preciso que seus objetos também o façam. Por isso, queria terminar propondo que, embora os estudos culturais possam ser um momento importante da crítica cultural — e devamos, sim, absorvê-los como momento da crítica dialética —, a imaginação apocalíptica também deve ser observada a distância, como parte de um sistema no qual ocupa uma função como ideologia. Uma investigação da sensibilidade pode ajudar a escapar do conteudismo dos estudos culturais.
Hoje, nos sentamos diante das telas comendo pipoca e assistindo ao apocalipse, como as crianças de Admirável Mundo Novo, que eram colocadas diante dos moribundos e presenteadas com guloseimas para que perdessem o medo da morte e a associassem a uma experiência doce. Se um ou outro filme ou série pode até ser mais ou menos interessante, a exposição constante a esse conjunto de filmes deve ter algum efeito na subjetividade moldada por essa imaginação. A extensa exposição ao horror como espetáculo é a principal mercadoria da indústria cultural nos tempos que correm — não é fortuito que a principal forma de engajamento nas redes sociais seja justamente a violência. Será que essa sensibilidade apocalíptica não está funcionando como um exercício de preparacionismo psíquico em massa para a catástrofe? Será que não estamos consumindo imagens do fim como quem estoca alimentos enlatados numa espécie bunker mental?
Não se trata aqui de julgar a ficção com critérios morais, mas de refletir sobre a função e o impacto na subjetividade que esse imaginário da indústria cultural produz. Vale lembrar que uma das funções dessa última é reconciliar as pessoas com as suas más condições de vida, como destacava Theodor W. Adorno. Tomados em conjunto e à distância, os produtos culturais apocalípticos contemporâneos não apenas expressam ansiedades sociais legítimas, mas também suscitam um imaginário político profundamente problemático, marcado por uma consciência estacionária — é só pensar o quanto alguém como Donald Trump encarna essas fantasias apocalípticas. Seria preciso se perguntar qual é a influência da indústria cultural na construção, por exemplo, dessa sociedade do bunker que se tornou os Estados Unidos. E mais: mesmo quando levantam questões importantes, esses produtos intensificam a reificação da sensibilidade, acostumando-nos à fantasia de vivenciar a destruição de cidades, do planeta e, no limite, nossa própria aniquilação. Ao neutralizá-lo, esses produtos são cúmplices — e parte — do horror que estamos vivendo. Os entusiastas da televisão um dia pensaram que, se uma guerra ou genocídio fossem transmitidos ao vivo, eles seriam impedidos. Hoje, olha-se para a destruição de Gaza, para a aniquilação de sua população, com a mesma distância tecnológica e apática com a qual se assiste a um filme de zumbi. A televisão ou o cinema, como meios, não são culpados por isso. A indústria cultural, como forma social cultural capitalista, sim.
A sensibilidade apocalíptica da indústria cultural é uma resposta estética e política reacionária que repõe o tempo de esperar o tempo do fim. Esses filmes cultivam um caráter estacionário, uma espécie de novo realismo apocalíptico (ideológico também porque produz um quiproquó entre o que está distante e o que está próximo) que não projeta futuro algum. A literatura cada vez mais acompanha essa tendência — o maior índice de sucesso de quem escreve é ver seu livro transformado numa série da Netflix. A alegoria do zumbi nunca foi tão verdadeira e, ao mesmo tempo, tão clichê. A cultura, cada vez mais, é a mimesis do que está morto, um invólucro sem consciência que nos persegue em todos os lugares — e nos devora.
É preciso romper com duas ideias que hoje dominam a crítica cultural. A primeira é a assunção de que “se as pessoas consomem, deve ter algum interesse”. Esse é um erro fatal para quem se considera marxista, uma forma de naturalização de necessidades “retroativas” criadas pela publicidade capitalista. Não fazemos isso, por exemplo, com a alimentação que adoece as pessoas. Não há nenhum marxista por aí defendendo a Coca-Cola, o Burger King ou o McDonald’s (embora essas marcas muitas vezes sejam sonhos de consumo das classes populares); por que fazer isso com a cultura? Além disso, não se trata de abordar o problema como um problema de consumo. Não se trata de condenar as pessoas pelo que consumimos — tampouco é interessante defender a qualidade ou complexidade dos produtos porque eles são amplamente consumidos —, mas de repensar o que é a produção cultural hoje e o que ela, por sua vez, produz. O segundo consenso que precisa ser revisado, é a ideia de que há sempre um conteúdo utópico na indústria cultural e que isso justifica, por si só, não só a existência desses produtos, como o investimento da crítica cultural neles. No caso da sensibilidade apocalíptica, não falta imaginação de fim de mundo, mas imaginar qual mundo precisa, sim, acabar…»
in Blog da Editora brasileira Boitempo

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